Valter Hugo Mãe

A Márcia


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Entendo que a música da Márcia me diz respeito porque assume tudo quanto se perde, e tantos amores que falham, mas não há derrota. Transforma-se em frontalidade, essa lucidez, outro futuro. Mas sempre mais futuro.

Imagino a Márcia a cantar num quadro de Hopper, como aquela figura no balcão longo do café que subitamente imita sozinha, sempre calma, uma multidão. Certamente acontece pela intimidade de sua expressão, algo que começou na fase voz e violão e não se afasta nem nos arranjos mais complexos e acompanhados. A mim, a Márcia traduz-me a ideia de alguém que se esclarece a si mesma, alguém cuja lucidez é orientação e lugar fundamental, uma mulher de luz própria. É como uso as suas canções, educadas para uma alegria ou uma dor entendidas e arrumadas na melodia perfeita. Uma sapiência.

Houve um tempo em que viajava com os seus três primeiros álbuns. Foi uma obstinação que me deu. O carro não se mexia se não fosse ao seu som, acompanhando suas letras numa disciplina de sintonia espiritual que se me tornava estruturalmente necessária. As minhas paixões são todas descontroladas, por isso não ponho o coração na rua. Ando cada vez mais avaro para sobreviver.

De todo o modo, são mais ou menos seguras todas as maravilhas pela música. E agora saiu o novo álbum da Márcia, “Picos e vales”, e volta tudo ao mesmo. É o Hopper que se acende e se faz de cristais. Um Hopper que começasse a cintilar nos vidros e nos copos onde o sol quisesse incidir para criar a caleidoscópica cor no ar. Estamos todos a beber um licor branco ou rosado, deambulamos pelas mesas e sabemos que nos comprometemos aos pares, talvez reparando como outras mulheres são tão bonitas também, e sanamos de tudo, confessando o que nos dói de quem nos deixa, quem não nos quer, o tempo que já não serve, o sonho que não era de verdade.

Talvez este disco seja mais duro, sem sucumbir a tragédia alguma, é sobretudo adulto. Movemo-nos no café de charme mais velhos, detendo um património emocional mais denso, complexo, e sem tão grande sobressalto. Como se fosse importante manter o foco e o sorriso bravo, claríssimo, diante de tudo quanto nos agrediu mas não nos derrotou. Entendo que a música da Márcia me diz respeito porque assume tudo quanto se perde, e tantos amores que falham, mas não há derrota. Transforma-se em frontalidade, essa lucidez, outro futuro. Mas sempre mais futuro.

Alguém dizia que os vencedores não são aqueles que chegam primeiro, são os que se voltam a levantar depois de qualquer queda. Cada canção da Márcia me diz isso. Todas me dizem isso. Como todos os dias são depois da queda. Todos os dias são um modo de vencer.

“Meu amor bem sabes”, “Vai passar tudo amanhã” ou “Esse mundo teu” ficam para a já extensa colecção de maravilhas sem mácula que a Márcia oferece à música do mundo. Sempre capaz de ser uma das melodistas mais preciosas da contemporaneidade.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)