Venha para fora lá dentro
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Passeios em família, uns correm bem, outros não. Foi longa a viagem: Miguel apanhou o avião na Suíça e tinha Paulo à sua espera no aeroporto. Não se conheciam (e agora não se podem ver). Miguel descobrira um jipe no OLX, era só comprá-lo e levá-lo para Barcelos, a sua terra natal. A seguir, voltar para a Suíça para a construção civil e um dia, novamente, regressar para as férias em Portugal. Anos depois, a vítima de burla respondia à juíza por vídeo, desde Barcelos. Paulo, o arguido, observava-o no ecrã, de ar zangado, fervendo em óleo escuro.
– O senhor celebrou algum negócio com um jipe?
– Sim, fizemos o negócio do carro. Tenho um grupo de amigos que faz passeios por Portugal, cada qual com o seu jipe. Vivia na Suíça e queria comprar um. Vi este belo anúncio.
Iam os amigos e as mulheres e a vida era uma aventura pelos caminhos de Portugal, viam tantas coisas lindas, viam um Mundo sem igual.
– Tenho um primo que tem um jipe, muito bonito, suspirou Miguel.
Só que o novo jipe em segunda mão – que lhe custara nove mil francos suíços, ou 8500 euros – estava todo quitado. Era um chaço, como o seu vendedor: há palavras que são peças com vários usos técnicos e figurados, incluindo as defeituosas. A juíza dirigia os problemas do jipe: segundo a Polícia e a peritagem, não podia andar na estrada, só em caminhos de todo-o-terreno. Ou melhor, poderia se o número do motor coincidisse com os documentos e, melhor ainda, se o motor original não tivesse sido mudado, provavelmente com grua, de um carro de marca mais barata! Já agora, se os pneus e os bancos fossem dali, se a quilometragem não tivesse sido viciada, se a própria chapa de matrícula não estivesse “em divergência” com o registo do carro. Miguel, de Barcelos para Lisboa, parecia falar do espaço, má ligação.
– Sentiu que havia alguma coisa anormal, que não batia certo?
– Agora sim, pelo que sei agora de jipes, tinha muita coisa de anormal.
– Mas na altura!…, quis saber a juíza.
Revelou-se uma comédia rodoviária, como termos um furo e descobrirmos que não se leva pneu sobresselente nem macaco.
Primeiro, cumprimentos felizes entre os dois homens. Depois, ver o tal jipe impecável e lavadinho nos arredores de Lisboa. Dar duas voltecas num parque de estacionamento, irem à conservatória fazer a mudança do registo de propriedade, pagar, terminar a compra. Tudo sobre rodas. Miguel, agora, ia destravar a língua.
– Eu peguei no carro e arranquei para Norte. A meio, mais ou menos, ali pela Mealhada, dei conta que o carro estava a perder muito óleo. Liguei para o senhor Paulo e até foi ele que me chamou o reboque…
E ali estava Miguel, sujeito ao Sol e à chuva, sem poder sequer comer leitão, esperando reboque. O resto do caminho no reboque a pensar na vida. Miguel escolheu a garagem de um mecânico amigo. Este olhou, abriu o capô e disse: “Ó Miguel, meteste-te num grande sarilho. Este motor nem sequer é deste carro!”.
Queixa na Polícia, telefonemas a bem que azedaram (recusa de Paulo em devolver o dinheiro), e o lastro bruto destes acontecimentos. Miguel descreveu a viagem do seu espírito:
– Houve uma altura em que me apeteceu bater em mim próprio. Porque ele disse ao colega que estava com ele: “Vês como consegui vender o carro?”. Ele pensa que eu não ouvi, mas ouvi!
O carro, vá-se lá saber como, reprovou no centro de inspecção. Mas o vendedor Paulo, na sala, estava indignado. Também fora enganado, porque o comprara de boa-fé! Só tinha arranjado o carro para o revender. Papéis sempre em ordem! Era indigno acusarem-no de burla. Em conversa com a procuradora, a magistrada encontrou uma falha no histórico de circulação do jipe. De 2012 a 2014, estava em branco.
– De 2012 a 2014 estive fora, resmungou Paulo.
– Esteve fora onde?
Ponto de embraiagem na conversa. Mete a primeira velocidade.
– Estive preso.
– Ah, fora da liberdade.
– É isso.
Ou isto: esteve dentro. Mete a segunda mudança, mete a terceira, acelera estrada fora.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)