Romances nascidos na pandemia

Catarina e Paulo conheceram-se no Tinder e já juntaram os trapinhos. Jorge e Adriana fizeram juras de amor virtuais e casaram com um oceano pelo meio. Leandro e Margarida esbarraram um no outro no trabalho e venceram a covid. Rosalina e Eduardo despistaram a idade e apaixonaram-se à primeira vista. São amores que nasceram acelerados por um confinamento forçado e que lhes marcará o primeiro S. Valentim.

Quando a pandemia aterrou no país e no Mundo, qual terramoto, as vidas deram cambalhotas em confinamentos difíceis de digerir e começar a namorar parecia uma ideia remota. Pelo menos para Catarina Simões, a quem o vírus roubou as saídas à noite, a vida social. O amor estava longe de acontecer. Aos 30 anos, rendeu-se e decidiu instalar o Tinder no telemóvel. “Não havia mais nada que me proporcionasse conhecer pessoas”, desabafa. Na plataforma de encontros, os cabelos longos da portuense acabaram a fazer “match” com Paulo Silva, de 35 anos. Estávamos em setembro, as medidas do Governo ainda permitiam jantares fora, idas ao cinema, passeios sem fim.

Do Tinder saltaram para o Instagram em conversas que não duraram muito no mundo virtual e que rapidamente se fizeram cara a cara, máscara com máscara. Catarina não precisa de ir buscar a data ao baú da memória, sabe-a de cor. “Tomámos o primeiro café a 8 de setembro e logo a seguir ele convidou-me para jantar. Ainda fugi e não fui.” Um compromisso de trabalho deu-lhe o álibi perfeito, mas o jogo do gato e do rato não iria, afinal, aguentar muito tempo. Remarcaram. Num almoço que se estendeu do meio-dia às seis da tarde, perdeu a bússola das horas, mas o clique só se deu no dia seguinte, quando ele a desafiou para um passeio de mota até à Régua. Era domingo. Para uma fã de motas, o percurso desde o Porto, pela Estrada Nacional 222, é um ícone a que Catarina não resistiu. Nunca o tinha feito. “A verdade é que mal pus o pé fora da mota já tinha um convite para ir ao cinema no dia a seguir.”

Numa catadupa de encontros, que começaram a ser cada vez mais caseiros, no Porto, empurrados por uma pandemia que se fazia desconfortável lá fora, o namoro foi ficando sério. “Face às nossas idades, cada um tem a sua casa, acabou por haver essa disponibilidade”, conta ela. A coragem de Paulo para o pedido chegou à boleia de um fim de semana em Lisboa, depois de um croissant em Belém, em que os dois decidiram, entre brincadeiras, largar o Tinder. “Agora namoramos”, disse-lhe ele. A data? 11 de outubro. Mesmo com um trabalho – é engenheiro mecânico em refinarias – que o deixa muitas vezes à distância, em viagens pelo Mundo fora, que chegam a estender-se por seis semanas, Catarina embarcou.

Catarina e Paulo já vivem juntos, no Porto, depois de se terem conhecido em setembro no Tinder
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

“Nunca tinha vivido uma relação à distância e ele tornou tudo fácil de ser vivido. Embora ele passe cá quinze dias e eu esteja sempre a sofrer por antecipação, a prever o dia em que ele vai embora outra vez.” Quatro meses depois daquele dia em Belém, os dois juntaram trapinhos para aproveitar o tempo que lhes foge das mãos de cada vez que Paulo está em Portugal. E o confinamento também acelerou a mudança. “Acabamos por desfrutar mais intensamente dentro de portas. Por passar 24 horas juntos. Não podemos ir ao restaurante, sair com amigos, e isso obriga-nos a uma vida só de casal.” Um acelerador que se divide entre as videochamadas da distância e a vida caseira da presença, e onde começam a desenhar-se planos de vida a dois. Hoje, é o primeiro Dia de S. Valentim juntos, ou melhor, separados por um ecrã. Sentada no sofá da casa que já é dos dois, junto à janela que espreita o Mundo lá fora, Catarina confessa ser “lamechas” e “romântica”, mas não liga muito à data. Ainda assim, arrisca deixar um recado: “Espero que ele não se esqueça de me comprar uma caixa de chocolates”.

Casar para vencer a distância

Jorge Pereira não vai esquecer, de certeza. Já prometeu prendas para o primeiro Dia dos Namorados que vai passar com a brasileira Adriana Campos, por quem se apaixonou, mesmo com um oceano pelo meio. Mas o resto que tem preparado na casa que agora partilham, diz, é surpresa. Os dois desafiaram as estatísticas de um 2020 que fez disparar divórcios no pós-confinamento e trocaram alianças à distância numa loucura que só o amor pode explicar. Um amor que nasceu entre Fortaleza e Oliveira de Azeméis. Entre o nordeste brasileiro e o norte de Portugal. Em plena pandemia. Ele tem 48 anos, ela 46. Um pedido de amizade no Facebook foi o gatilho perfeito para meter conversa, em junho.

“Sentimos logo que havia química. Duas semanas depois, já estávamos a namorar. Coração para cá, coração para lá”, relata Adriana. As mensagens escritas deram lugar às videochamadas. “E as coisas começaram a encaixar, somos parecidos em muitas coisas”, partilha ela com sotaque brasileiro carregado e sorriso gigante a contrastar com o metro e 49 de altura. Fizeram do longe perto e não deixaram o fuso horário intrometer-se. Enquanto ele almoçava, ela tomava o pequeno-almoço. Na verdade, nem eles conseguem explicar bem o caminho de uma paixão tão avassaladora até ao casamento forçado pela pandemia. “Sabemos o que sentimos um pelo outro, o amor que temos”, confessa Adriana.

Um voo em agosto marcado para Portugal e Adriana estava já de malas no aeroporto quando esbarrou no SEF, que não a deixou viajar por causa das restrições. No Consulado, disseram-lhe que “a única forma de vir era ter um contrato de trabalho ou casar”. Ela e Jorge não pensaram duas vezes, os olhos claros e o cabelo loiro iluminam-se mais ainda ao recordar. “Decidimos casar, e eu disse mil vezes sim.” À distância, Jorge pediu a mão de Adriana aos sogros. E tratou de tudo por cá. Teve “de enviar uma procuração, deu trabalho, muita burocracia, mas foi rápido”, lembra ele. Adriana preparava-se para deixar o país onde nasceu e onde há dois anos perdeu o marido. Para largar as irmãs, os pais, os sobrinhos, a filha mais velha, de 24 anos. A mais nova, de 15, embarcou com ela. Tudo por amor. Cá, tem duas irmãs e uma prima, o que lhe deu a segurança para mergulhar num romance que parece loucura, mas que sabe querer para a vida toda.

Ainda teve direito a despedida de solteira e ao casamento em que reuniu a família, no Brasil, com o noivo do lado de cá do oceano em videochamada. “Comprei vestido, tudo. O sim foi por vídeo. O bolo até tinha um bombeiro em cima.” Jorge é bombeiro em Espinho. Foi a 11 de setembro que trocaram juras de amor, três meses depois de se conhecerem. E a 29 do mesmo mês Adriana já estava a entrar no avião.

Adriana Campos e Jorge Pereira conheceram-se em junho, através do Facebook
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Mal aterrou em Lisboa, passou “40 minutos fechada na casa de banho a ganhar coragem”. “Estava muito nervosa. Quando finalmente saí, nem sabíamos bem como agir, o que dizer, fiquei paralisada.” Acabaram por se beijar e abraçar. Jorge é de parcas palavras, mas o sorriso fala por ele. “Ela é tal e qual eu imaginava. Só conseguia focar nos olhos verdes.” Houve tempo para uma lua de mel em Cascais, um fim de semana regado a champanhe. Agora, Adriana está a viver com Jorge e a filha em Oliveira de Azeméis. Tem sido o apoio para cuidar dos pais dele, a mãe sofre de Alzheimer e o pai tem problemas de saúde. O confinamento acabou por facilitar a adaptação, aproximou-os. “Claro que sentimos falta de podermos ir jantar fora, comemorar estas datas especiais”, admite ela, que ainda se está a habituar “ao frio do frio”.

“O Jorge é o meu príncipe, é tudo o que eu queria para a minha vida”, confessa Adriana, numa competição de declarações de amor em que ele não se deixa à margem, para lhe apontar “a dedicação, o carinho, a meiguice”.

Do trabalho para a casa em conjunto

A meiguice não foi, definitivamente, o despertador para um amor que nasceu no trabalho, em Paredes. Pelo contrário. Quando Margarida Vilaça, 25 anos, começou a trabalhar no mesmo hospital veterinário de Leandro Rocha, 31, no início do ano passado, os dois estavam longe de se apaixonar. “Ele era muito duro, até tinha um bocado de medo dele”, recorda, em jeito de brincadeira. “Achava que tudo o que eu fazia estava mal, que demorava muito tempo, que era demasiado simpática e feliz.” O sentido de humor dela, com um sorriso rasgado que se faz de olhos pequeninos, desconstrói um Leandro mais sisudo que acabou por se render e dar o primeiro passo. Quando a pandemia empurrou Margarida para o desemprego, em março, ele mandou-lhe mensagem a dar-lhe força. Mas ela haveria de voltar a ser contratada, em junho. E a trabalhar lado a lado com ele.

Nessa altura, mudou a morada de Vila do Conde para Paredes, o pretexto para começarem a passar algum tempo juntos depois do trabalho. “Comecei a ver o lado bom do Leandro, um lado com uma certa piada.” O primeiro encontro teve pouco de convencional: foi no IPO do Porto para darem sangue. Mas numa história que não se desenhou à volta de clichés, também os houve. A ponte da Misarela, no Gerês, onde os dois foram passar uns dias, em julho, tem tanto de mitos como de encanto. É a ponte do diabo, que separa Trás-os-Montes do Minho, também há quem diga que é da fertilidade. Sobre o rio Rabagão, entre vegetação e penedos, serviu de palco ao pedido oficial. “Fui cavalheiro e pedi-a em namoro”, realça Leandro. E Margarida, no desassossego da idade, tenta desconcertá-lo: “Fomos todos os dias a algumas cascatas. E numa delas, ele achou que o sítio era tão bonito e quis pedir-me outra vez”.

Leandro e Margarida talvez comprem um eletrodoméstico para a casa nova no Dia dos Namorados
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

As pessoas mais próximas foram sabendo, no trabalho só mais tarde anunciaram. E, na felicidade dos primeiros passos do namoro, Margarida foi apanhada pela covid-19. Ela infetada, ele – que testou negativo – em isolamento profilático. Separados, cada um em sua casa. Durante 14 dias. Um teste, “uma prova dos nove”, como ela diz. “Apesar de estarmos juntos há pouco tempo, o Leandro esteve lá sempre, conseguiu tornar um momento difícil em algo mais leve.” Um desafio nada fácil, porque Margarida não passou ao lado dos sintomas. Teve “falta de ar, perda de olfato, dores de cabeça”, num susto em que ele a ajudou a manter-se “calma”.

As videochamadas foram salvando a amargura dos dias intermináveis para o casal que, entretanto, já encontrou teto para partilhar. Vão mudar-se em março. Vão partilhar o local de trabalho e a casa. Na verdade já o fazem, ele tem passado os dias em casa dela. “Conseguimos separar bem as coisas no trabalho e tentamos que a conversa em casa seja o mínimo possível sobre trabalho”, observa ele. Num confinamento que os obrigou a uma vida de trabalho-casa, a relação evoluiu à velocidade da luz. “Sinto que a conheço bem por causa disso mesmo. Estamos juntos há seis meses e é como se estivéssemos há um ano e meio”, atira Leandro.

Pelo caminho, até já conheceram os sogros. Margarida preparou “os pais para um Leandro que não fala, que não é muito expressivo”, pintou o quadro tão negro que “acabou por superar as expectativas e eles adoraram-no”. Para Leandro, a tarefa estava mais facilitada, frisa, porque “ela é muito fácil de gostar”. No primeiro Dia dos Namorados dos dois, Margarida brinca entre gargalhadas sonantes: “Provavelmente vamos comprar um eletrodoméstico para a casa”.

Encontrar a cara-metade depois dos 60

Se Rosalina Almeida pudesse saltar as barreiras da pandemia passava o primeiro S. Valentim com Eduardo Vieira em passeios sem-fim de mãos dadas, a vê-lo aventurar-se no mar, a desafiar-lhe os olhos azuis num amor que não tem idade nem conhece distância e que mais parece um regresso a uma juventude desencontrada. Andam num vaivém constante, que é como quem diz entre Oeiras e a Maia, entre a casa dela e a dele, desde que se conheceram, em agosto. Em viagens de autocarro que descobriram a bom preço. Ela tem 64, ele 63, e o número não lhes rouba energia.

Para quem passou a meninice em Luanda, Angola, e frequentou o mesmo cinema, as mesmas matinés, soa quase impossível nunca se terem cruzado. Mais ainda porque Eduardo viveu um ano em Oeiras, no pós-25 de Abril. “Ao fim destes anos todos, conhecemo-nos e houve logo uma química”, conta Rosalina, que perdeu o marido há quase três anos após uma doença prolongada. Foi num almoço em casa dela, no sul, que uma amiga em comum os apresentou. Quase não precisou. “Quando a conheci foi como um flash, como um fósforo”, solta Eduardo. Já perdeu a conta aos anos em que é divorciado, mas para o mais velho praticante de kitesurf do país não há impossíveis. E voltar a encontrar o amor também não foi. No ziguezaguear da vida acabou a descobrir quem afinal bem podia ter conhecido desde sempre.

A paixão à primeira vista uniu Eduardo e Rosalina. Agora, sonham passar o resto da vida juntos
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Quando ele voltou à Maia, depois do primeiro encontro, falavam-se por Skype. “Nós somos muito para a frente.” Rosalina, de cabelos loiros bem penteados, deixa já tudo em pratos limpos. A idade não os define, é “um estado de espírito”, como explica Eduardo. Não demorou muito a ela ir visitá-lo, a render-se às praias do norte, a percorrer a Foz do Douro na mota dele. E deram as mãos para a vida. Já vivem juntos, o poiso mais fixo é em casa dela, onde também vive um dos seus filhos gémeos de 42 anos – o outro está emigrado no Brasil – e um neto. O filho só a quer “ver feliz”. Rosalina não esquece os seis anos de uma luta ingrata até ficar viúva, mas encontrou em Eduardo, que está reformado da TAP, o “companheiro” de que precisava. Não olhou para trás.

A alegria de viver dele também não a deixa cair em arrependimentos. Além do kitesurf, já praticou tai chi, fez teatro na Universidade Sénior, é um “maluco” que não se está a ver sentado no banco de jardim a jogar cartas. “Estou mortinho que ela apanhe o vírus do kitesurf”, brinca. Talvez quando o outro vírus que agora inunda as vidas der descanso e lhes permita voltar a sair de manhã à aventura e só regressar à noite. O confinamento tirou-lhes isso, Rosalina admite as saudades. Mas não lhes atrapalhou o romance. Longe disso. “Há uma atração mútua muito forte. Só quem nasceu em Angola é que sabe, ela é das minhas. Há uma vivência comum. Conhecemos o mesmo tipo de vida. Há sempre muita conversa”, salienta Eduardo, para logo interromper a conversa séria e atirar que ela “é uma gata giríssima”: “Até faz parar o trânsito, tem 64 mas vale mais do que duas de 32”. Ele é “uma desgraça com datas”, talvez por isso diga que o Dia dos Namorados “é todos os dias”. Mas Rosalina antecipa, entre suspiros, “um jantar romântico em casa e uma troca de presentes”.

Para os casais nascidos na pandemia, o vírus não só não travou o amor, como o acelerou para poderem estar juntos sem confinamentos nem restrições pelo meio. Eduardo e Rosalina não têm muitos planos, se não viver a vida e viajar. Para Catarina e Paulo, o próximo passo é adotar um cão. Jorge e Adriana já trabalham para concretizar o sonho de um filho em comum. E Leandro e Margarida anseiam vir a casar e ter filhos, depois de despistarem os cinco anos e meio que os separa na idade.