Num mar de parangonas ecológicas e alegações de “amigo do ambiente”, que se multiplicam por todas as lojas, há um sem-fim de dúvidas na hora de comprar. Até porque existem cada vez mais empresas a fingir consciência ambiental. Afinal, quem é que certifica? E quem é que fiscaliza?
Nos escaparates das lojas, nos supermercados, no mundo virtual. Dos equipamentos tecnológicos à roupa, dos detergentes à comida, do mobiliário aos automóveis ou à cosmética. Os produtos que se vestem de sustentabilidade multiplicam-se. Em todos os setores, as marcas erguem cada vez mais bandeiras verdes e ecológicas, amigas do ambiente. Mas será mesmo assim?
“Antes de mais, não há produtos sustentáveis, produtos sem qualquer tipo de impacto, seja agrícola ou industrial, não existem. Quando falamos de um produto mais sustentável, com menor impacto ambiental, estamos sempre a falar em comparação com outros idênticos, analisando todo o ciclo de vida, desde a produção, o transporte, o uso e o seu destino final.” Elsa Agante, team leader da área da Energia e Sustentabilidade da Deco Proteste, deixa já a questão a limpo. E a sustentabilidade vai para além das preocupações ambientais, também engloba a área social – as condições de trabalho dos funcionários, por exemplo – e se o produto é economicamente viável.
Certo é que, numa era em que o ambiente está na ordem do dia, o Mundo se encheu de parangonas ecológicas. Umas que são declarações ambientais autodeclaradas, feitas pelas próprias marcas, “em que não há nenhuma validação”. Outras, que são rótulos atribuídos por entidades independentes. E há cada vez mais entidades a certificar a sustentabilidade. Elsa faz as contas rápidas: atualmente, há 450 rótulos ecológicos a nível mundial, aos quais as empresas candidatam produtos que têm de cumprir uma série de critérios exigentes. Dos mais genéricos – como o certificado europeu EU Ecolabel, o alemão Blue Angel ou o nórdico Nordic Swan – aos mais específicos.
E há uma razão simples para os rótulos de sustentabilidade proliferarem, basta ver os números do questionário europeu em que a Deco Proteste participou. “Concluiu-se que 57% dos consumidores europeus são influenciados pelas alegações ambientais nas suas compras, que 60% prefere comprar um produto ecológico e 66% até está disponível a pagar mais.” Em Portugal, os números não são tão expressivos, a sustentabilidade ainda só influencia 16% dos consumidores. Mas para lá caminha, é essa a tendência.
A própria Deco criou o selo “Escolha Verde” no ano passado, que testa o impacto ambiental de produtos, sem as marcas saberem. Abrange, até agora, detergentes, papel higiénico e pneus. Testam toxicidade, embalagem, material, durabilidade. “O nosso selo faz testes à função do produto, como sempre fizemos. E só naqueles que cumprem com o fim a que se destinam é que avançamos para testar o impacto ambiental. Não interessa ter um aspirador todo feito de material reciclado se depois não aspira.” E a associação portuguesa de defesa do consumidor quer estender a mais produtos, “para ajudar o cliente a fazer escolhas mais sustentáveis, com informação fiável”.
O fenómeno do “greenwashing” a crescer
Até porque nem todas as alegações de sustentabilidade das marcas correspondem à verdade. É o que se chama de “greenwashing”, que serve para atrair clientes usando conceitos ambientais falsos como argumento de venda. Um fenómeno em clara ascensão. Basta recuar ao início de 2020, ao caso da Ryanair, no Reino Unido, que usou informações desatualizadas para alegar que era a companhia aérea com menos emissões poluentes nesse território. “Outro exemplo é o de um sabonete líquido que dizia que era ecológico porque a embalagem era feita de cartão, abriu-se o cartão e lá dentro estava a embalagem de plástico normal. Ainda foram criar uma embalagem extra”, relata Elsa Agante. Também há linhas de produtos chamadas “Eco”, propositadamente sugestivas de sustentabilidade.
Um estudo recente da Comissão Europeia, que analisou páginas web de marcas de todo o continente, revelou que 42% dos sites fazem declarações exageradas, falsas ou enganosas ao usar conceitos como “eco”, “consciente” ou “amigável”. “Há muitas alegações de produtos naturais, feitos de plásticos dos oceanos, com embalagens a partir de materiais 100% reciclados, que depois vamos a ver e não é verdade”, aponta Susana Fonseca, da associação ambientalista Zero. Há empresas que o fazem de forma consciente, “para tentar fazer parecer algo que não são”. “E há empresas que substituem o plástico por outros materiais e nem sabem que a solução que têm agora não é melhor do que a que tinham antes.”
A fiscalização: nove processos
No meio de tanto ruído, a fiscalização parece estar a despertar. A Direção-Geral do Consumidor (DGC), tutelada pelo Ministério da Economia, tem nove processos de contraordenação a decorrer sobre falsas alegações ambientais, ligadas à etiquetagem energética, ao setor automóvel, ao setor energético e ao setor têxtil. A própria Deco identificou três casos passíveis de branqueamento ecológico à DGC, a quem cabe fiscalizar, a par da ASAE. “Mas os processos de contraordenação ainda são poucos. No próximo ano vamos ativamente comprar produtos, ver as alegações, testar e verificar”, promete Elsa Agante. A Deco vai trabalhar em parceria com outras associações de defesa do consumidor da União Europeia. E anseia por legislação europeia em matéria de “greenwashing”. Em Portugal, um decreto-lei de 2008 já prevê as práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, incluindo a publicidade enganosa.
“Era importante haver mais fiscalização. Não podemos estar à espera que os consumidores sejam detetives ambientais de cada vez que vão comprar um produto, até porque não são especialistas em rótulos e pegadas ecológicas”, defende Susana Fonseca, da Zero. A melhor forma de não cair na esparrela, avisa, é procurar produtos com rótulos ecológicos reconhecidos. “E são tantos agora que as próprias empresas têm dificuldade em perceber a qual se devem candidatar.” Além dos generalistas, há muitos outros. Entre os mais populares, surgem no papel e no mobiliário o FSC (Forest Stewardship Council) ou o PEFC, que indicam materiais provenientes de florestas sustentáveis. Na agricultura biológica, o Agrobio. Nos têxteis, o GOTS (Global Organic Textile Standard), o Textile Exchange ou o Oeko-Tex (etiqueta para produtos testados à presença de substâncias nocivas).
Dos têxteis aos biológicos
Em Portugal, os rótulos Oeko-Tex e o Textile Exchange são atribuídos pelo CITEVE – Centro Tecnológico da Indústria Têxtil e do Vestuário. “Somos os únicos portugueses que o fazem, mas há outras empresas estrangeiras a operar em Portugal”, refere Braz Costa, diretor-geral do CITEVE. Ali, testa-se a segurança dos couros, dos têxteis, de conteúdos reciclados, de algodão orgânico, o uso de substâncias nocivas, o nível de sustentabilidade da transformação têxtil nas fábricas, desde a gestão da água à energia.
Se olharmos para o estudo da Comissão Europeia, entre os 42% de sites com alegações ambientais enganosas, quase 25% fazem referência ao setor da moda. “O ‘green washing’ é uma realidade, sobretudo no retalho. Há imensos casos em que os produtores e os retalhistas dizem barbaridades”, reconhece Braz Costa. O próprio CITEVE faz de polícia dos rótulos que atribui. “No sistema Oeko-Tex, todos os anos vamos ao mercado, às lojas, comprar produtos para verificar se estão de acordo com a certificação que foi atribuída. Isto é muito importante, porque as empresas não podem ter uma certificação e depois fazerem o que lhes der na cabeça.” Também há fiscalização europeia, pelo menos em matéria de produtos químicos.
Mas, se é verdade que as alegações ecológicas falsas abundam, Braz Costa também admite que “as empresas estão a explorar um vazio legal”. “Como isto é uma coisa nova e não há ainda regras claras, os marketeers procuram o que lhes dá mais resultados. Os consumidores estão à procura disto e compram com emoção, a maioria nem as etiquetas lê.” Quando rebobinamos a cassete do tempo até 2016, vemos grandes marcas, como a Zara e a Mango, que gritavam aos sete ventos não terem trabalho infantil nas suas fábricas e fornecedores, a serem desmentidas por uma investigação da BBC na Turquia.
O problema, sustenta, começa na etiquetagem legal. “O que é que é obrigatório colocar na etiqueta? O made in e a composição. Saber que uma peça é 100% de algodão não diz nada em termos de sustentabilidade. Não diz que algodão é, se tem organismos geneticamente modificados, se tem pesticidas, se foi feito por uma agricultura sustentável, se atentou contra as pessoas e o ambiente.” Mas o diretor-geral do CITEVE transpõe o problema para todos os setores: “De repente, os sistemas de certificação também já são tantos que o consumidor tinha de fazer um curso para compreender todos. Devíamos ter um sistema transversal, como é a etiqueta energética. O consumidor olha para um frigorífico e vê logo que é mais barato, mas que vai consumir mais energia. Neste momento, isso não existe, é uma selva”.
Segundo António Dinis Marques, professor na área do têxtil da Universidade do Minho, o “tracking”, que identifica o percurso do produto, desde a produção até chegar à loja, também é uma boa alternativa. “Há empresas que já o fazem, mas ainda está longe de ser a regra.”
E se viajarmos, por exemplo, até ao mundo da alimentação, aos produtos que se dizem biológicos, o cenário não é diferente. Há casos onde são detetados, em testes, pesticidas não permitidos. Uma investigação da revista “Visão”, em 2017, já revelava que um em cada cinco alimentos “bio” tinha vestígios de pesticidas sintéticos. “Isso já aconteceu nos testes que fazemos. Mas não é muito recorrente”, sublinha Elsa Agante, que dá uma dica: “No ano passado, fizemos testes com maçãs e peras bio e, além do produto em si, também fizemos o estudo associado ao impacto do transporte da fruta. As maçãs biológicas disponíveis naquela época eram de Itália, Holanda, Argentina. E, nesses casos, mais vale comprar nacional, mesmo não sendo biológicas, porque não tem o impacto ambiental associado ao transporte”.
Uma coisa é certa: um produto é tão mais sustentável quanto mais recorrer a materiais renováveis, quanto menos água, energia e outros recursos consumir na produção e transporte, quanto menos produtos químicos utilizar, quanto mais reciclável for o material, quanto mais durável for. Resta fazermos o caminho das pedras em direção à confiança nos rótulos dos produtos que nos chegam às mãos.