Pinto da Costa: a chama de um dragão também se escreve

O jogo em que ficou com o nariz enfiado no casaco do senhor da frente e o tempo em que no Estádio do Lima havia invariavelmente uma claque a torcer pelo adversário. A “emboscada” que o fez chegar a presidente e a primeira final europeia. A noite em que acordou com um telefonema a anunciar uma desgraça e todas as alegrias que se seguiram. O mais recente livro assinado por Pinto da Costa conta a história do F. C. Porto e chega às bancas esta quinta-feira, 25 de novembro.

Estávamos em 1945, o ano da libertação de Auschwitz do jugo nazi, da morte de Hitler, dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, do mais que ansiado fim da Segunda Guerra Mundial. Jorge era um catraio de oito anos, a perder-se de amores pelo F. C. Porto, quando assistiu ao primeiro jogo. Um encontro com o Sp. Braga, disputado no Campo da Constituição. Jorge, Jorge Nuno, e o irmão, José Eduardo, foram para o peão, a zona onde se assistia aos jogos de pé. O catraio não cabia nele de entusiasmo. Como chegaram cedo, tinham uma visão ampla para todo o campo. Só que, à medida que a hora do jogo se aproximava, a perspetiva de assistir à partida com vista privilegiada foi por água abaixo. A clareira deu lugar a uma multidão robusta e o rapaz acabou com o nariz colado ao casaco do senhor da frente, limitado a ver a bola a passar unicamente quando havia cantos ou chutões para o ar. Ainda se quis embora, mas o irmão não acedeu. Ou a inusitada história de como a primeira experiência de Jorge, Jorge Nuno Pinto da Costa, num jogo do F. C. Porto, foi afinal pouco mais do que “traumática”. Este e muitos outros episódios estão contados no mais recente livro do presidente portista, “A chama do nosso dragão”, que chega às livrarias esta quinta-feira, 25 de novembro.

Um livro em que as vivências do dirigente azul e branco, presidente há quase 40 anos, se cruzam com a história dos momentos altos do clube. “A ideia foi criar um livro absolutamente inédito no contexto internacional, em que é a figura mais importante do clube a contar a história desse mesmo clube”, partilha Rui Couceiro, editor da Contraponto e mentor da publicação deste livro, como assume o próprio Pinto da Costa. “A ideia nasceu porque o Rui [Couceiro] viu uma entrevista que dei ao Porto Canal, no meio do estádio, em que contei umas quantas histórias da evolução do F. C. Porto, e achou que seria interessante pôr isso em livro”, conta o dirigente portista à “Notícias Magazine”. Na premissa de os adeptos serem o interlocutor por excelência. “A base do F. C. Porto tem de ser sempre constituída pelos adeptos, os sócios. Já quando em 1982 me candidatei, o slogan era o de devolver o clube aos sócios. Porque tudo se passava e eu como associado nada sabia.”

O Campo da Constituição, onde, em 1945, com oito anos, Pinto da Costa assistiu ao seu primeiro jogo do F. C. Porto (Foto de 1995)

Por isso, é aos adeptos que fala quando recorda a “azia” com que ficou quando os dragões foram derrotados pelos “encarnados de Lisboa” na inauguração das Antas. Ou quando lembra o presidente portista (Cesário Bonito) que chegou a ter problemas com a PIDE por questionar a Federação Portuguesa de Futebol, que tinha decidido adiar um F. C. Porto-Sporting pelo simples facto de José Travassos, célebre jogador leonino, ter ficado retido em Madrid e não poder estar presente. Ou quando lamenta os penosos 19 anos de jejum. Ou, mais tarde, quando conta como chegou a diretor de futebol, depois de passagens pelo hóquei em patins e pelo boxe. E de ter sido diretor das atividades amadoras.

Montagem em que Pinto da Costa surge com a equipa do F. C. Porto de 1937, ano em que o dirigente portista nasceu

Era outro daqueles dias de azia, desta vez porque os portistas tinham sido eliminados da Taça de Portugal por uma equipa de segundo plano. Para cúmulo, o Boavista tinha conseguido uma vitória gorda frente à CUF. Pelo que naquela noite, no café Orfeu, os dragões foram motivo de chacota. “Levei um baile”, rebobina, com uma memória à prova de bala. Valentim Loureiro chegou ao ponto de dizer que enquanto estivesse no Boavista, Pedroto (que na altura era treinador dos axadrezados) nunca iria para o F. C. Porto. “Aquilo começou a moer-me”, admite Pinto da Costa. Foi então que soltou a célebre frase “largos dias têm cem anos”. E que decidiu repensar o convite que o então presidente do clube, Américo de Sá, lhe tinha feito, para ser diretor do futebol. Não só aceitou como a primeira façanha que conseguiu foi, imagine-se, levar Pedroto para os dragões. “Assinou contrato em janeiro e mantivemos isso em segredo até junho.”

Pinto da Costa foi o grande responsável pela ida de José Maria Pedroto para o F. C. Porto (Foto: Arquivo)

Rui Couceiro, que se desfaz em elogios ao presidente azul e branco, destaca o facto de as todas as histórias serem contadas “com aquela maneira absolutamente inconfundível, com o humor, a ironia, a capacidade de provocar e a memória enciclopédica de um indivíduo cultíssimo e muito inteligente”. Mas “A chama do nosso dragão” é também uma porta de entrada para um lado mais pessoal de Pinto da Costa, como o papel que a mãe teve na decisão de aceitar assumir a presidência do emblema portista, quando um conjunto de notáveis o encaminhou para a presidência contra a sua vontade. O dirigente azul e branco, hoje com 83 anos, recorda o episódio num misto de carinho e boa disposição. “Aos sábados ia sempre almoçar à minha mãe e, num desses dias, ela perguntou-me: ‘Sempre vais para o F. C. Porto? Ouvi na ‘Bola Branca’ que querem muito que tu vás.’ E quando estava à espera que ela me dissesse que eu estava maluco ela disse: ‘Acho que tens de ir. Desde pequenino que só vês o F. C. Porto. É o teu destino’. E eu disse: ‘Até a mãe?’ Aquilo foi uma martelada na cabeça”. De tal forma que acabou por aceitar. E por se tornar no dirigente desportivo com mais títulos a nível mundial. Uma história de sucesso que está plasmada ao longo de todo o livro.

Maria Elisa Pinto, mãe de Pinto da Costa, falecida em 1997, com o neto Alexandre, primogénito do presidente portista (Foto: Arquivo)

Da primeira final europeia à consagração em Viena, da neve de Tóquio ao caminho do pentacampeonato, de Mourinho a Villas-Boas, de Kelvin até, mais recentemente, aos campeonatos de Sérgio Conceição, que contratou com a convicção de ter pela frente um “novo Pedroto”. No livro, há ainda um capítulo dedicado ao futuro que conta “poder ver por mais alguns anos”, mas que um dia, “naturalmente”, deixará de poder acompanhar. Um futuro que se escreverá com mais um livro, provavelmente o mais polémico de todos eles. “Estou a escrevê-lo. Ainda não posso revelar, mas posso dizer que será o meu último livro, em que vou abrir o meu coração, em que vou dizer toda a verdade, a propósito de muita coisa que circula como verdade e que é mentira, em que vou falar de pessoas, as melhores que conheci, e em que não vou falar de inimigos, mas de pessoas que gostava de não ter conhecido.”

Pré-publicação: A noite em que o Estádio das Antas não ruiu

Em “A chama do nosso dragão”, Pinto da Costa recorda um episódio relacionado com o rebaixamento do Estádio das Antas que lhe ficou como lição para a vida: “Certas notícias apocalípticas, quando envolvem o F. C. Porto, tendem a ser um grande exagero”.

O projeto de rebaixamento do nosso estádio fazia parte dos meus planos para o Clube desde a minha primeira candidatura, e era, quanto a mim, indispensável para o nosso projeto de conquista de um título europeu. O Estádio das Antas só dispunha de 30 mil lugares. Com o FC Porto a disputar competições europeias, ou subíamos o preço dos bilhetes para valores inacessíveis para a maioria dos adeptos, ou então víamo-nos obrigados a aumentar a lotação do estádio. Muitos, sobretudo os mais velhos, diziam-me ser impossível rebaixar o estádio, pelos motivos mais disparatados. Uns alegavam que corria lá um rio subterrâneo; outros, que havia um cemitério sob as estruturas. O Presidente do conselho fiscal de então, Manuel Borges, um amigo que entretanto já desapareceu, chegou ao ponto de se demitir, num gesto de grande dramatismo, alegando que o estádio iria cair e não queria ser conivente com uma desgraça.

Contudo, o meu diretor de obras, Óscar Cruz, tinha feito um estudo rigoroso e garantira-me que a obra era possível. Não havia rio nenhum a correr sob as Antas, nem tão pouco nenhum cemitério. O rebaixamento era uma obra possível, embora complicada e a exigir muitas precauções. Elaborámos um pedido, baseado nos estudos que tínhamos, e apresentámo-lo à DGERU (Direção-Geral do Equipamento Regional e Urbano, que fazia parte do então Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações). Passou-se um ano, um ano e meio, e não recebíamos resposta. A informação oficiosa que tínhamos era a de que, quando o nosso pedido chegava ao topo, voltava lá para baixo, sem sequer ser analisado. Foi então que, acompanhado pelo engenheiro Armando Pimentel e pelo Óscar Cruz, me reuni com o engenheiro Valente de Oliveira, na altura ministro no governo do professor Cavaco Silva. Explicámos-lhe tudo, desde os motivos para o rebaixamento do estádio até à demora inexplicável na análise do nosso pedido.

O engenheiro Valente de Oliveira prometeu que o assunto seria averiguado e que em oito dias teríamos uma resposta. Na manhã seguinte à da reunião, telefonou a dizer que tínhamos razão; o nosso pedido estava a ser boicotado por burocracias incompreensíveis, mas, no prazo de uma semana, obteríamos resposta. De facto, em oito dias, foi-nos concedido o subsídio que tínhamos solicitado e a que tínhamos direito por lei. E as obras começaram.

“A Chama do nosso Dragão”, livro editado pela Contraponto (chancela do Grupo BertrandCírculo), chega às livrarias esta quinta-feira, 25 de novembro

Claro que o processo teve percalços. Houve uma altura em que os engenheiros da dita DGERU vieram inspecionar o estaleiro e começaram logo a levantar problemas. O Óscar Cruz ia rebatendo as objeções com muita paciência, explicando o que era possível e o que não era, e a dada altura, quando o responsável máximo da DGERU se virou para ele e o tratou por «senhor engenheiro», respondeu: «Atenção, eu não sou engenheiro; sou pedreiro. Engenheiros são os meus empregados.» Foi o suficiente para pôr o técnico em sentido, pois percebeu que estava a lidar com uma pessoa terra a terra, mas que sabia bem o que estava a fazer.

Não havia sepulturas nem rios a correr sob o relvado das Antas, mas ainda houve um grande susto. Uma madrugada, acordei estremunhadamente com o toque do telefone. Era o engenheiro Armando Pimentel, a anunciar-me, em pânico, que o Estádio das Antas tinha ruído. Por breves segundos, senti uma dor a atravessar-me o peito e imaginei o estádio em escombros. Mas mantive a calma. «E agora, Jorge?», perguntava-me, aflito, o engenheiro Pimentel. «Agora? Se o estádio ruiu, vamos pô-lo de pé. Pelo menos a esta hora não está ninguém a trabalhar, por isso de certeza que não morreu ninguém.» O dia amanhecia. Tomei um duche rápido, enfiei-me no carro e conduzi apressadamente. Mas, quando cheguei aos semáforos junto da Igreja de Santo António das Antas, avistei logo, ao longe, a bancada da maratona, bem erguida. E pensei: se a maratona está de pé, o estádio não ruiu. Chegados ao estádio, o engenheiro Pimentel e eu pudemos constatar que todo aquele alarme fora exagerado. Nem sequer tinha aluído um pedaço da bancada, apenas um degrau em cimento. Que grande alívio.

Pelos anos fora, apanhei outros tantos sustos ou quase sustos noturnos, como quando, nas vésperas de um jogo contra o Feyenoord, o Reinaldo Teles e alguns funcionários do hotel onde a nossa equipa estava instalada bateram à porta do meu quarto em plena madrugada, alertando-me para uma ameaça de bomba e avisando-me de que a polícia solicitava a nossa saída das instalações. Nessa altura, reagi com ironia: «Ai há uma bomba? Pois ela que expluda. No Clube já vivemos todos juntos, por isso morremos todos juntos. Até que é um final bonito». E expliquei ao meu amigo Reinaldo Teles que não faria sentido nenhum, caso a ameaça fosse para levar a sério, que a polícia solicitasse amavelmente a nossa saída. Digamos que eu já sabia, desde a noite em que o Estádio das Antas não ruíra, que certas notícias apocalípticas, quando envolvem o FC Porto, tendem a ser um grande exagero.

“Nem na ditadura este país era tão centralista”

O livro é também um espelho de muito do que têm sido o discurso e as bandeiras de Pinto da Costa ao longo de quase 40 anos de presidência. A luta pela afirmação de um clube durante largos anos desprezado, a revolução de mentalidades, a batalha contra o centralismo que, defende, está mais presente do que nunca. “Se ainda faz sentido? Cada vez faz mais sentido.” O presidente portista concretiza com um exemplo específico. “Nem nos apercebemos mas há situações aberrantes. Por exemplo, eu posso estar no Porto, em Mogadouro ou em Chaves que quando faço o Euromilhões o lucro desse boletim vai sempre para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Para mim isto é uma aberração. Mas as pessoas nem pensam nisso. É tão natural na mentalidade de quem dirige este país que isto fica assim e vai correndo”, aponta, com um sarcasmo inconfundível.

“Depois vêm enganar-nos de vez em quando. O primeiro-ministro foi agora inaugurar um teatro todo contente, numa terra [Covilhã] onde há graves problemas com as populações que ignorou, porque para eles isso não conta. Este país está no cúmulo do centralismo, nem na ditadura era tão centralista como agora.”

Pinto da Costa, presidente do Futebol Clube do Porto

A tendência, considera, resvala também para o âmbito desportivo. “Vi escrito em vários jornais que a ‘final’ com a Sérvia ia ser disputada no estádio-talismã da seleção, o estádio da Luz. Eu acho é que é o talismã dos adversários da seleção. A maior derrota que a seleção teve foi perder a final do Euro 2004 com a Grécia e aconteceu no Estádio da Luz. Mas para os senhores de Lisboa e da Federação, a Luz é que é talismã. Em março vamos ter novo jogo de apuramento e vai ver que vai ser na Luz. Quanto mais perdemos mais talismã é.” Um cenário que, garante, é uma prova cabal de um centralismo que prevalece. “Não admitem que um jogo como aquele que se disputou recentemente com a Sérvia pudesse ser no Dragão. Porque fica mais perto para o primeiro-ministro, para o presidente da República, para o ministro da Educação. Ir ao Porto dá muito trabalho.” Mas queria que o jogo tivesse sido no Dragão? “É evidente que sim. E aqui ganhávamos. Este é que é o talismã.”

No livro, recorda ainda um tempo em que se criou o “clube dos presidentes”. “Reuníamos uma vez por mês, num jantar, seguido de reunião e criou-se um espírito de camaradagem tal que ninguém se sentia à vontade para fazer algo incorreto contra um adversário, porque sabíamos que passado uns dias nos íamos encontrar todos. Esse foi o melhor período de relacionamento entre todos os clubes, aquele em que o futebol realmente teve sossego.” A lembrança serve de pretexto para mais umas bicadas.

“Não havia cá ligas nem federações, eram presidentes que se reuniam, que se respeitavam e em muitos casos até se ganharam grandes amizades. Hoje, quando a Liga faz as reuniões dos presidentes cheira tudo… olhe, cheira tudo mal. Não há aquele espírito de respeito e amizade”, atira, corrosivo, Pinto da Costa, admitindo que, com os atuais protagonistas, a replicação do tal clube dos presidentes “não é viável”.

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