Paredes de Coura
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Os lugares onde ainda se cuida do plantio e dos animais são de memórias exuberantes, férteis em tudo quanto nos grandes centros já virou impaciente, cínico ou postiço.
Passaram dois homens muito feios à minha varanda e começou a chover. Eu sei que não é educado falar da beleza das pessoas, e logo eu que pioro as vistas em toda a parte, mas eram mesmo dois homens muito feios a passar, desgrenhados e com ar de quem viera de dormir torto, e começou logo a chover e eu senti que foi causa e efeito à medida de meu espanto.
Em Coura tem andado a chover e até de surpresa. Fui caminhar para o Taboão confiado na boa noite que se pusera, e já regressei debaixo da intempérie, desabrigado pelo caminho a subir até à vila. Isto é um tormento para caminhar porque ninguém mora na mesma cota. Cada casa tem uma distância única em relação ao céu. É tudo à moda das ladeiras, o que favorece os glúteos e acaba com a minha bravura, acaba com os meus pulmões.
Fico a ver as montanhas. Vou ao cimo para espiar a lonjura e gosto muito que haja terra a perder de vista, com caminhos que nunca percorri e que me sugerem linguajares, lendas e encontros improváveis. A cada passo se contam as mais fantásticas coisas. De moiras encantadas a santos nas árvores, sinos de ouro e mamoas que os ciprianistas assombram. O povo imagina, as terras ficam ricas pela imaginação.
Quando fui à reserva natural de Corno do Bico, a senhora que me disse acerca de aquilo agora ser muito visitado por gente de fora também se queixou do fresco e da chuva. Eu confessei que acredito ser culpa de dois homens feios que passam na vila e zangam as nuvens. Ela exclamou: por serem feios. E eu reiterei: muito feios. Pusemo-nos a rir e eu senti que já nem seria preciso rir. A amplitude do Mundo que ali se expunha era uma alegria quase eufórica. Uma maravilha bastante. E ela acrescentava: o pior são as noites. Que se faz frio pela tarde, à hora de dormir é inverno de morte.
Meto conversa com todos porque ninguém sabe que sou um chato à procura de bizarrias que se possam dizer, como inverno de morte. O que sabem as pessoas é normalmente uma fortuna para a imaginação e para a literatura. Os lugares onde ainda se cuida do plantio e dos animais são de memórias exuberantes, férteis em tudo quanto nos grandes centros já virou impaciente, cínico ou postiço. Aqui, nas ladeiras de Coura, o que há é genuíno. Enquanto forasteiros somos levados sem cerimónias nem peneiras por uma frontalidade que nos dá sentido. Sentidinho, como alertam os galegos aqui mais acima.
Vejo pela minha varanda se dou com os dois feios novamente. Se der, prometo, desço e vou atrás para saber onde se metem, o que conversam, que raio de sonhos terão homens que tumultuam as condições climáticas. Todos me confirmam que em Coura tudo é possível. Existe uma predisposição para o que se liberta da normalidade para ser melhor, muitíssimo melhor do que a normalidade. Comecei por pensar que me mudava para aqui de maneira a criar uma rotina sem sobressalto, mas foi ingenuidade ou intenção inconsciente de o esconder, porque o sobressalto está em toda a parte. Desde logo pelos pássaros gordos que nas manhãs chegam rentes aos meus vidros e cantam. Se era para não me distrair com nada, errei. Aqui, tudo é apelo. É intenso apelo.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)