Uns já traziam a ideia embrulhada há muito tempo, outros viram a oportunidade à espreita e agarraram-na com unhas e dentes. Em comum, têm a ousadia de quem faz gato-sapato da incerteza. Histórias de sucesso de negócios nascidos quando a pandemia tomava conta do Mundo.
Há muito que Francisca Lobão, 33 anos, levava a vida ao ritmo de uma roda-viva. No bar de tapas que abriu em 2016, na baixa do Porto, era uma espécie de faz-tudo. Contabilidade, reservas, compras, eventos, atendimento, não havia nada que não passasse por ela. Depois veio a pandemia. Os confinamentos e tudo a fechar à força. A azáfama a fazer-se só tédio dos dias de agenda vazia. Ela a acusar a súbita quietude. “É muito complicado quando se trabalha demasiado e se pára de repente.” Soube logo que teria de arranjar com que ocupar a cabeça. Agarrar-se à ideia que já andava ali a marinar há muito, de abrir uma mercearia de bairro, surgiu, pois, como solução óbvia. “Achava que aqui na zona do Pinheiro Manso, onde eu vivo, faltava algo assim. Que tivesse produtos regionais, coisas frescas e diferentes. Que tivesse um bocadinho de tudo o que temos na nossa despensa.” A semente da Pasto Fino começava a germinar aí, à medida que Francisca ia convencendo a irmã Benedita para se juntar a ela e espreitando os anúncios para desencantar uma loja livre. Benedita convenceu-se ainda durante o verão (do ano passado), a loja que magicara apareceu em setembro.
Depois, foi pôr pés ao caminho, ao ritmo de um sprint. “Em meados de outubro começámos a planear tudo, em novembro assinámos o contrato de arrendamento, em dezembro abrimos.” Ao todo, investiram 15 mil euros, dinheiro de família. E assim nasceu um espaço onde se pode encontrar requeijão de Gouveia, queijo fresco da Guarda, pão de Mirandela, chás do Alentejo, bolachas Paupério, chocolates da Avianense e da Arcádia ou mesmo frescos de uma sociedade agrícola de Ermesinde. Mas o espaço das irmãs Lobão foi-se fazendo bem mais do que isso. “Sempre quisemos que as pessoas se sentissem à vontade connosco, que pudessem contar-nos as histórias do seu dia, que também nos vissem como uma companhia.”
E a pandemia serviu-lhes o propósito da bandeja. “Com o isolamento as pessoas sentiam-se muito sozinhas. Os mais velhos diziam-nos muitas vezes que não iam aos grandes supermercados, mas que se sentiam seguros connosco. Este sítio deu-lhes alguma independência. Além de que tinham mais tempo. Podiam parar e conversar sem pressa.” Ou como a praga de covid-19 que desatinou o Mundo as ajudou a criar laços com a vizinhança. “Também tínhamos muitas mães que não podiam sair porque estavam em casa sozinhas com os filhos e que nos pediam para fazer entregas em casa.” Pelo meio, foram crescendo e diversificando a oferta: fazem cabazes (só no Natal foram mais de 200, mas também preparam cabazes semanais com frutas e legumes), têm duas funcionárias, procuram adaptar-se aos desejos dos clientes – “por exemplo, houve uma cliente que nos disse que gostava de levar umas pencas e nós passámos a encomendar pencas” – e até já têm serviço de esplanada. Quanto ao próximo passo, também está definido: começar um serviço de take-away, com marmitas saudáveis.
Entregas de vento em popa
Aproveitar as lacunas insufladas pela pandemia foi também a ideia de Emanuel Cabral, 30 anos, e Joana Melo, 26, casal de namorados que em setembro do ano passado criou o primeiro serviço de entregas da Guarda. “Eu já trabalhava na área e tinha noção que era algo que estava em falta na cidade, até já tinha a ideia há alguns anos”, explica Emanuel. Depois, a imposição de ficar em casa, o medo do vírus a complicar as compras, a pandemia a acelerar-lhes o desejo antigo. O sonho ganhou forma a 14 de setembro. Emanuel tem a data na ponta da língua. “A ideia foi criar uma empresa com bastante diversidade a nível de entregas ao domicílio.” Desde os produtos – sejam os alimentos, os medicamentos, as botijas de gás – aos serviços, como limpezas ao domicílio, baby-sitting, massagens. “E também temos um serviço de entregas-surpresa, que é muito requisitado.” Isto em toda a cidade da Guarda e nas aldeias dos arredores.
A princípio, confessa, não se livraram do medo. Tanto mais tratando-se de um investimento considerável feito em tempos de areias movediças. Passo a passo, pois. “Quando abrimos só tínhamos uma mota e uma carrinha. E trabalhávamos a partir de casa. Hoje, já temos um escritório físico, seis motas e três carros.” Além de 14 funcionários. “Desde que abrimos que o negócio tem sido sempre em crescendo. Numa primeira fase, a pandemia ajudou. E o facto de os restaurantes estarem a passar por dificuldades também, porque aderiram ao serviço e ajudaram-nos a divulgá-lo. Isso permitiu-nos cimentar o negócio. Hoje as pessoas já se habituaram, já temos muitos clientes que pedem coisas diariamente, um bocadinho de tudo, mas as comidas continuam a ser o que sai mais.” E, ao contrário do que se possa pensar, os jovens nem representam a esmagadora maioria dos clientes. “A faixa etária dos 30 aos 60 anos também faz muitos pedidos. Até mais do que os jovens, quer-me parecer.” Os números atestam o sucesso. A média de entregas mensal da Vamos Já anda hoje entre as 2500 e as 3500. Tanto que o prognóstico não podia ser mais positivo: esperam recuperar já no próximo ano o investimento feito até ao momento, que já anda na ordem dos 50 mil euros.
Francisca Lobão e Emanuel Cabral foram dois entre dezenas de milhares de empresários portugueses que arregaçaram as mangas e abriram portas em 2020, o primeiro ano da pandemia, o mais incerto também. Ao todo, segundo dados da empresa Informa D&B, cuja base de dados abrange mais de 1,7 milhões de empresas, houve 37 558 novos negócios a surgir no ano passado. O número soa generoso, mas a comparação com o ano anterior trata de desfazer o equívoco: em relação a 2019, houve uma quebra de 24%. E é preciso recuar até 2016 para encontrar um ano com um valor tão baixo. Os setores do alojamento, da restauração, dos transportes e dos serviços gerais foram aqueles em que se agudizaram os recuos percentuais. Já o retalho conta uma história distinta. O setor passou a ser o terceiro maior em número de constituições, muito graças às empresas de retalho online, onde as novas empresas subiram quase 50% em relação ao ano de 2019.
Reagir em tempo recorde
Foi precisamente por perceber a explosão do e-commerce e da área digital que Pedro Barbosa, fundador e CEO da Wise Pirates, empresa de tecnologia e marketing digital fundada em 2017, se aventurou, no ano passado, em dois novos negócios. “O digital já antes era, na teoria, a coisa mais importante. Mas só passou a ser, na prática, primeira prioridade durante a pandemia. As operações pararam ou reduziram e as administrações das empresas tiveram mais tempo para se focar nisso. Só para lhe dar um exemplo, um CEO de uma empresa com quem trabalhamos pediu-nos para reunir duas vezes por semana para fazermos coaching direto de digital acelerado. Ou seja, para perceber tudo o que era possível fazer no digital e acelerar essa transição.”
Pedro era, por isso, o homem certo no lugar certo. Mas não, não foi tudo um mar de rosas. “Sofremos no início. Perdemos clientes, outros deixaram de pagar. Tivemos uma pequena crise de liquidez. Conseguimos pagar salários, mas foi difícil.” O segredo, defende, foi saber reagir à velocidade da luz. “Quando fomos para casa, a 12 de março, toda a equipa se comprometeu a trabalhar o fim de semana todo, para preparar uma nova estratégia para os clientes, adaptada à nova realidade, em apenas quatro dias.” A resposta pronta deu frutos. Não só porque o negócio que já tinha começou a crescer a 200% ao ano, mas também porque a torrente de solicitações que lhes iam chegando motivou a criação de dois novos negócios.
“Começámos a perceber que havia duas áreas com potencial para um projeto próprio. Uma relacionada com a criação de sites de e-commerce e outra ligada à ‘big data’.” Ou seja, um projeto de digital analytics. Para os menos entendidos, Pedro Barbosa traduz em exemplos mais práticos. “Fazemos estimativas em relação às vendas, identificamos os clientes de acordo com determinados grupos-tipo, entre outras coisas. Por exemplo, no Natal passado, fizemos para uma grande marca portuguesa um estudo que estimava, através do número de pessoas em loja e no centro comercial, qual seria a loja mais segura para as pessoas se dirigirem.” Eis uma parte do trabalho feito pela Inner Data, que deverá chegar ao final do primeiro ano com três funcionários e 100 mil euros em volume de negócios.
Já no caso da Shopping Builders, a tal empresa que se dedica à criação de sites de e-commerce, o sucesso é ainda mais evidente. Criada em junho de 2020 (“Fomos os mais rápidos do mercado a reagir à procura”, garante o responsável), deverá fechar o ano com um volume de negócios na ordem dos 300 mil euros. E a empresa só não triplica o número de funcionários (sete) porque, assegura Pedro Barbosa, não há mão de obra disponível. “Há mais ou menos um mês que temos todo o projeto de crescimento em standby porque não temos gente para aceitar mais orçamentos.” Por causa disso, o portuense até já tem mais um projeto na algibeira: em outubro, conta lançar a Wit Academy, para dar formação na área do digital.
Os números comprovam a recuperação que se vai sentindo no tecido empresarial português. No primeiro semestre deste ano, e ainda segundo dados da Informa D&B, foram criadas 24 312 empresas, o que se traduz num crescimento de 13,1% face a igual período do ano passado. A consultora destaca que “o empreendedorismo mostra capacidade de adaptação, com alguns subsetores a ultrapassar mesmo os valores de 2019”. É o caso das atividades imobiliárias, do retalho e dos transportes.
Trocar a noite pelo padel
Bruno Coelho, 29 anos, residente em Santa Maria da Feira, é um desses empreendedores que dão corpo à tendência de recuperação vivida no primeiro semestre deste ano. A 4 de janeiro, abriu um clube de padel na cidade em que vive. Mas perceber os contornos do investimento que fez implica recuar uns quantos anos. Formado em Educação Física e Desporto, com mestrado na área do Alto Rendimento, ainda foi treinador de futebol na formação do Feirense, mas depressa enveredou pela organização de eventos e se fez DJ. Foi nesse contexto de uma relação estreita com o mundo da noite e das discotecas que, há seis anos, lhe surgiu a primeira oportunidade de negócio: propuseram-lhe adquirir 50% da Cool Disco. Ele atirou-se de cabeça. Como não tinha dinheiro em caixa, e os pais não tinham meios de o ajudar, pediu um empréstimo. Um ano depois, com os capitais que foi acumulando ao longo desses meses, novo investimento. Tornou-se então sócio maioritário de outra discoteca da terra, a Forever Club. Tudo corria sobre rodas quando em março de 2020 o vírus lhe fechou à força os dois negócios.
Ele deixou-se ficar uns meses em standby. Aproveitou o tempo – que antes nunca existiu – para jogar padel. E do hobbie se fez uma nova oportunidade. “Nessa altura, tive de tomar uma decisão: ou iria trabalhar para alguém ou abria um negócio meu.” Decidiu-se pela segunda hipótese. “Como vi que o padel já estava a ser um sucesso noutras cidades, decidi juntar-me ao meu melhor amigo, que está ligado à área da construção, para abrir um clube de padel.” Em agosto do ano passado, puseram mãos à obra. Definir o projeto, pedir orçamentos, ver pavilhões, fazer um estudo que lhes permitisse aferir a viabilidade do projeto, encontrar um diretor técnico. Foi durante esse processo que de dois passaram a quatro sócios. Poucos meses depois, a 4 de janeiro, abria o Padel Plus, fruto de um investimento a rondar os 200 mil euros.
Os primeiros tempos não foram fáceis. Entre meados de janeiro e abril, com a imposição de um novo confinamento, estiveram fechados. Depois, reabriram, mas tinham de fechar às 21 horas. “E o horário de pico é entre as 18 e as 23 horas, por isso ainda perdíamos muita gente.” Nada que lhes tenha levado o fôlego. “Felizmente, o clube está a trabalhar muito bem. Acima das nossas expectativas.” São em média 900 jogos por mês. E até já têm quatro funcionários fixos. Sinais que os levam a acreditar que algures em janeiro de 2023 será possível recuperar todo o investimento feito. E que já os fazem pensar na expansão. “Estamos em negociações para abrir um novo Padel Plus noutra cidade.” Tudo por culpa… da pandemia. “Foi o que me levou a sair da roda onde eu estava e que me ajudou a abrir horizontes. Senão provavelmente não o teria feito. Foi simultaneamente uma necessidade e uma oportunidade.”
O primeiro talho veggie
A premissa é comum às histórias que aqui lhe contamos. A dos primos Diogo Borges, 34 anos, e Frederico Neves, 35, não é exceção. Diogo já era empresário, mas os negócios que tinha, nas áreas dos eventos e do turismo, ficaram emperrados. Frederico tinha acabado de tirar o curso de piloto e preparava-se para começar a trabalhar quando a covid bateu à porta e os planos que tinha se precipitaram em queda livre. Haveria um final feliz ao dobrar da esquina, ainda assim. Primeiro, o confinamento. E eles preocupados com a linha. “O meu primo sempre comeu muito bem, eu nem tanto. Mas nessa altura também comecei a ter mais cuidado.” Tornaram-se flexitarianos – só comem carne ou peixe ocasionalmente – e começaram a apostar tudo na preparação de comida vegetariana, primeiro para eles, depois para os amigos, mais tarde para vender. O clique soou alto quando, numa jantarada, conheceram um chef que lhes apresentou uma variedade imensa de pratos vegetarianos. “Aí percebemos o que era realmente bom.” Logo souberam que haveriam de fazer daquilo vida. E fizeram. Em janeiro deste ano, após um investimento na ordem dos 60 mil euros, abria na Parede (Cascais) o Asoka Veggie Market. “Foi a primeira loja de Portugal a abrir fisicamente com este tipo de negócio, o primeiro talho veggie.”
Por lá se encontra um pouco de tudo o que costuma ter carne… mas sem carne. “Hambúrgueres, almôndegas, rolo de carne vegetal, beet wellington, que é uma espécie de bife wellington mas sem carne, empadão, lasanha.” Também há doces. E molhos. Para levar ou encomendar pela net. Também vendem a supermercados e restaurantes. Juntando tudo, o balanço dá para saciar. “Estamos a vender em média cinco mil hambúrgueres por mês. Tem sido sempre a subir, todos os meses um bocadinho. Achei que estes meses de verão, por causa das férias, seriam os piores do ano e não. Já começamos a ter pedidos do país todo.” E a ambição a crescer com eles. “Neste momento temos seis funcionários e estamos a pensar abrir outra loja com o mesmo conceito e uma minifábrica”, exulta Diogo, sem esquecer os trágicos prognósticos que chegaram a ouvir quando anunciaram que se preparavam para lançar o talho em plena pandemia. “Disseram-nos que éramos loucos.” Ou a prova de que a alma do negócio é bem mais do que o segredo.