Mário e a suspensão do amor
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Mário disse que era barbeiro e fiquei a pensar se era ele quem fazia o seu penteado, comprido atrás, rasado nas patilhas, talvez a única coisa no seu corpo, e também na voz, que mostrava vontade e direcção. No resto, das crocs negras nos pés sujos aos gestos parados a meio das palavras, na própria definição do seu caso, a vida deste homem estava – está – em suspenso.
“O que vamos fazer não é propriamente um julgamento, mas apreciar a pena suspensa, se vai ou não ser revogada a suspensão desta pena”, disse a juíza, relançando a história de Mário. Nasceu em 1986, em Ponta Delgada. Tem o sotaque forte da ilha de São Miguel, mas não só, uma entoação afogada nas águas vulcânicas, nadando até ao outro lado do Atlântico. Acento norte-americano.
– E a sua morada?
– Sou sem-abrigo.
– Não tem morada?
– Não, senhora. Sou sem-abrigo, senhora.
– Mas certamente vai a algum sítio onde lhe dão algum apoio.
– Não.
Uma pessoa sem algum nem nenhum, tentava explicar. Não era bem assim. Tinha ido à Almirante Reis falar com uma senhora da reinserção social, mas em Março “teve o confinamento, teve o covid” e, numa semana, perdeu tudo. Só soube do julgamento porque um polícia o avisou, ele dorme quase à porta de uma esquadra. Mário tem cadastro. Foi condenado por furto qualificado em dois anos e seis meses, suspensos pelo mesmo tempo (agora pode ir mesmo para a prisão) e também por detenção de arma proibida, em 600 euros (pagou com trabalho comunitário).
– O senhor arguido tinha simplesmente de se deslocar com periodicidade às instalações da Direcção-Geral de Reinserção Social e não praticar crimes e cumprir um regime de prova.
– Foi várias coisas, senhora. Foi o covid, o confinamento.
E continuou a lista: que nunca recebera carta, que não sabia nada, que estivera doente dos pulmões; que não tem BI nem telemóvel, que nos abrigos da Santa Casa não há vagas; que andou no programa metadona, que agora nem álcool nem drogas. Estudou nos Estados Unidos o equivalente ao 12.º ano, voltou em 2017, gastou o dinheiro todo, os pais morreram. Há dois anos, esteve a salvo. Viveu numa comunidade terapêutica durante 11 meses.
– Aprendi a viver outra vez, aprendi a ser um homem. Quando saí da comunidade, tudo isto correu mal, senhora. Não conseguia arranjar abrigo, não conseguia arranjar trabalho.
– E porque é que não volta para a comunidade?
– Gostava!
– Mas pode?
– Claro que posso. Mas estou sem-abrigo e sem identificação, eu já fiz uma marcação para o BI, para arranjar o bilhete de identidade tenho de esperar um mês ou dois, só depois posso candidatar-me à comunidade, não é só ir lá e entrar, percebe?
Mas a juíza lia o processo e, afinal, foi-se embora sem dizer nada:
– “No período em que esteve internado, infringiu algumas regras internas da referida comunidade e foi-lhe sugerida a possibilidade de transferência para outra comunidade. Mas o arguido não acedeu.”
Mário interrompera o programa de recuperação.
– Depois de dez meses, fui expulso da comunidade, senhora.
– Mas foi porque infringiu as regras de lá…
– Sim!
– Ah, mas isso é diferente. Uma pessoa querer sair porque já está bem e…
– Eu estava quase pronto com o programa, mas fui expulso, senhora!
– Aqui diz que o senhor infringiu algumas regras internas, mas não sabemos quais.
Mário inspirou o ar todo da sala e soprou-o de uma vez:
– Eu andei com uma rapariga lá, senhora! Isso é verdade e fui expulso por isso.
– E por isso não queria sair, queria ficar com a rapariga.
– Eu sou expulso, eu não podia ficar na comunidade.
– Mas eles não o queriam expulsar, queriam transferi-lo para outra.
– Isso eu não sei, senhora. A directora disse que eu não podia ficar na comunidade.
Para aprenderes a viver outra vez, a ser um homem, tens de suspender o sexo. Não amar. Regras, Mário, regras internas.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)