Laura Esquível: “A comida está a adoecer, quando antigamente era o nosso sustento e era a saúde”

“O meu negro passado” é o livro mais recente da autora mexicana, que regressa à cozinha para resgatar o vínculo com a sabedoria ancestral.

O mais recente livro de Laura Esquível procura aquele momento em que a nossa essência se esvaiu no trabalho, na carreira e no consumo. A pandemia causou uma paragem brusca, servindo agora para resgatar a sabedoria esquecida na cozinha, o lugar da intimidade e das tradições. “O meu negro passado”, publicado pela editora Asa, fecha a trilogia iniciada com “Como água para chocolate”, e percorre os caminhos que nos afastaram da terra e dos alimentos livres de pesticidas. Mas conta também a história de María que, no seu passado, descobre a resposta para ter tido um filho negro, iluminando a nossa busca por “comunidades sustentáveis” e unidas à Natureza, diz a autora.

“O meu negro passado” fecha a trilogia que iniciou há 30 anos com a publicação de “Como água para chocolate”. Quando deu conta de que teria de continuar a história de Tita?
Há cerca de cinco anos comecei a notar imensos jovens nas sessões de autógrafos, a maioria nem sequer era nascida quando escrevi esta estória. Emocionaram-se, de tal forma, que pelo menos dois miúdos, de que tenho conhecimento, tatuaram na pele algumas frases de “Como água para chocolate”. Comecei a pensar sobre o que estaria a dizer esta estória aos miúdos da atualidade. A minha interpretação é que eles se identificam com Tita, uma mulher vítima da mãe, do sistema e da tradição. Se hoje essas regras não fazem sentido, continua a haver um modelo económico opressor a determinar a vida de milhões de pessoas no Mundo. Determina quem pode estudar, quem tem de deixar o país e buscar uma nova vida noutro. Determina, inclusivamente, a forma como podem viver uma relação amorosa, porque a maioria continua a viver com os pais, já que é impossível sustentarem-se.

Onde estão essas inquietações no livro “O meu negro passado”?
Estão sobretudo na tentativa das pessoas de não apenas reconectar com o espaço da cozinha, mas também com a terra, com a forma como nos estamos a alimentar. Julgo que esta é uma inquietude global. A comida foi-se convertendo em veneno, está a adoecer, quando antigamente era o nosso sustento e era a saúde. Quis combinar tudo isto e em “O meu negro passado”, em que a protagonista, María, está gorda, come compulsivamente.

María, a bisneta de Tita, somos todos nós, que comemos mal, que não sabemos cozinhar, que perseguimos carreiras de sucesso?
Sim, reflete-nos a todos. E porque faz ela isso? Bom, temos de ir ao início do livro, em que ela tem um filho negro e não sabe qual a razão. É através da avó, Lucía, e do diário de Tita – o caderno que escapou ao incêndio no rancho em “Como água para chocolate” – que María reencontra o passado, mas sempre em relação com os outros dois livros. Porque nestas análises que nós, enquanto humanos, fazemos da nossa própria história, podemos descobrir as ações repetidas que nos causaram doenças emocionais ou físicas. Ao encontrar-se com a avó, María conhece uma mulher maravilhosa, a primeira, no seu tempo, a estudar química. Lucía é neta de John Brown, o médico de “Como água para chocolate”, que misturava ciência com medicina tradicional dos indígenas. Era destes temas que queria falar, precisamente nesta época – na qual sinto estarmos todos nesta busca, a tentar recuperar um conhecimento esquecido.

É a covid-19 uma oportunidade para fazer essa reconexão com a Natureza de que fala?
A pandemia obrigou-nos a ver coisas que antes não víamos, quando estávamos a trabalhar, trabalhar, trabalhar e mergulhados neste Mundo de produção e consumo. De repente, parámos. Agora, depois desta pausa, sim, creio que para muitos de nós tudo isto vai significar uma mudança na maneira de comermos, de nos reunirmos, de estabelecer comunidades sustentáveis. O bem-estar, naturalmente, tem uma relação com a produção económica, mas talvez tenhamos descoberto uma nova forma de fazer as coisas.

Se o racismo, refletido no filho de María, está arreigado nos genes de um povo, estaremos condenados a viver para sempre com ele?
A genética não é outra coisa senão informação que permanece. Os novos estudos já nos falam que esta informação se pode modificar. Tanto assim é que existem sementes transgénicas nas quais é induzido um novo gene. O que mais me apaixona na nova ciência, na física quântica, é que as coisas não são permanentes. Poderá haver uma ingerência nos nossos pensamentos, que desencadeia ou desativa uma carga genética. Há um autor inglês, Rupert Sheldrake, que publicou “A presença do passado”, no qual diz que, como sociedade, vamos criando informação coletiva. Mas, se o nosso ponto de vista e o nosso nível de consciência mudam, essa carga genética coletiva modifica-se. Acho que estamos nesse momento apaixonante, cheio de magia e alquimia, a tomar consciência de hábitos, de práticas, pensamentos e emoções que nos fazem adoecer e vamos poder fazer mudanças daqui para a frente em tudo isto que nos levou a uma crise. Temos esta maravilhosa capacidade de transformar para um bem coletivo.

Essa transformação passa pelo silêncio, o tal silêncio entre a avó Lucía e a neta María a tricotarem?
Sim, é esse silêncio que te reconecta com os outros e com a Natureza. É quando desligas o telemóvel, o computador, a televisão e fechas os olhos, que entras em silêncio e te ligas a esse campo cheio de presença, de vozes, de energia luminosa a partir da qual te podes reinventar.

No seu livro, as tecnologias ganham uma leitura crítica. Onde está o equilíbrio, sobretudo agora com os confinamentos?
Reconheço a importância da tecnologia, agradeço-a e elogio-a. “O meu negro passado”, por exemplo, vem com um código QR e tu, com o teu telemóvel, tiras uma foto e podes escutar a música que está no livro. Faz parte da narração do livro.

É um livro musical…
Sim, como a vida, cheia de sons e cores. Agora mesmo, acabo de aderir à plataforma Patreon. Publicarei ali, mensalmente, como se fosse um romance, os vários capítulos de uma obra que se chama “O que eu vi”. São as minhas experiências nestes 70 anos de vida, o que vi, que imagens me transformaram. São reflexões que vou partilhar com os que queiram ser os meus mecenas. As pessoas que ali entrem por cinco dólares têm acesso ao texto, em espanhol e inglês, mas também às fotos.

Quando começa?
Já podes aceder à plataforma. Tenho de agradecer muito às pessoas que se estão a inscrever. Será graças à sua atividade de mecenas que poderei continuar a escrever. O mundo editorial sofreu um colapso com a pandemia e foi difícil continuar a trabalhar. Esta é também uma forma de criar redes, uma virtude inegável da tecnologia.

 

Qual o critério para as músicas da playlist do livro de que há pouco falámos?
A seleção está relacionada com Felipe, o personagem descendente de negros com uma voz privilegiada. Ele e a família viveram numa comunidade negra em Chicago. Quis, através dele, falar dessa voz da cultura negra que sai das igrejas, do gospel, dos grandes cantores de blues e do jazz. A primeira edição vinha com as canções originais, associado à uma playlist do Spotify. Mas, por causa dos direitos de autor, tive de me converter numa produtora discográfica, recorrendo aos meus amigos músicos e cantores. A edição portuguesa já tem a lista com os meus amigos a cantar Sinatra, Billie Holiday, Louis Armstrong, entre outros. Estou muito orgulhosa do resultado.

Também participa?
Não, não tenho talento, infelizmente.

A música está presente na sua vida?
Muito. Não consigo viver sem dançar. Agora com a pandemia danço sozinha, mas não é por isso que deixei de dançar.

Não tem talento para cantar, mas tem para cozinhar e escrever. Recorda-se de quando teve a ideia de introduzir a culinária nos livros, inaugurando um género literário?
Sempre tive a consciência de que as receitas têm histórias importantes por detrás. Não apenas no plano geral de como se chegou a um prato nacional, mas também na história de uma família, das avós, dos momentos de intimidade. Quis usá-las para narrar histórias de amor, daí misturar as duas coisas.

A certa altura do livro, há uma referência à fraude na eleição do governador de Coahuila. É algo que nos lembra a sua incursão pela política. Como aconteceu e porque é que desistiu?
Em determinado momento considerei que seria uma obrigação participar ativamente num movimento que ambicionava uma mudança. Mas depressa percebi que não era o meu caminho. Não acredito nos partidos políticos.

Acredita em quê, então?
Acredito nas organizações civis como forma de criar comunidades sustentáveis que não peçam apoio, mas que deem apoio. Os partidos políticos, com as suas estruturas de poder, seguem uma lógica piramidal, em que os de cima dão ordens e os de baixo devem executá-las. A nova era exige uma estrutura circular, em que todos comuniquem e participem, procurando consensos e não obediência.

A notoriedade que ganhou com “Como água para chocolate” tornou difícil manter uma vida centrada no essencial?
Tive de fazer muitos ajustes. Passo boa parte do dia a responder a cartas e emails, a dar entrevistas, a tratar de assuntos ligados à minha atividade. Mas arranjo sempre tempo para cozinhar e para tricotar, dois passatempos que me apaixonam.

A pandemia mudou muito as suas rotinas?
A pandemia trouxe-me mais tempo para estar na cozinha e cuidar das minhas plantas. Tive momentos difíceis, em que me senti oprimida por não poder sair, não poder receber todo o mundo em casa como estava acostumada. Mas, por outro lado, deu-me espaço para me reinventar. Daí o projeto na plataforma Patreon, em que reflito sobre aspetos da nossa sociedade, que considerávamos importantes e que nos desviaram da busca por uma convivência harmoniosa.

Das mulheres da família, a sua mãe, a sua avó, a matriarca que reunia filhos e netos na cozinha, o que tem de cada uma delas?
Na minha família, as mulheres sempre foram fortes. A minha mãe era alegre, ativa. Eu descendo dessa linhagem e é para mim uma fonte de sabedoria que me ensina a viver, dando valor aos afetos.

E o seu pai foi determinante para se tornar escritora, não é?
Sim, o meu pai era telegrafista e, além de muito afetuoso, era um contador de histórias extraordinário. Costumávamos contar histórias e, muitas vezes, aproveitávamos as tardes para gravar contos. Diverti-me muito e marcou-me muito.