Insetos no prato: primeiro estranha-se, depois entranha-se?

Autorização para produção e consumo humano de sete espécies, desde larvas a gafanhotos, grilos e besouros, abre portas a uma nova era na alimentação. Produtores, transformadores, ambientalistas, nutricionistas e chefs de cozinha falam dos benefícios alimentares e ambientais destes animais que nos causam repulsa.

As caixas azuis empilhadas junto ao portão estão repletas de larvas vivas, que trepam umas sobre as outras num emaranhado ondulante. Só naquele canto estão quase um milhão de lagartas amarelas, distribuídas por cerca de cem caixas, prontas a saírem para a carrinha do distribuidor e serem usadas na alimentação animal. Até à semana passada, este era o principal foco daquela empresa sedeada em Leça do Balio (Matosinhos): a produção de tenebrio molitor para animais exóticos, rações e aquacultura. Mas uma alteração legislativa, há muito esperada, está prestes a mudar tudo. A Direção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV) autorizou a produção, comercialização e consumo humano de várias espécies de insetos, entre as quais duas de grilos, duas de gafanhotos, duas de larvas, incluindo o tenebrio que enche as caixas azuis da Green Meal.

À primeira vista, as pequenas lagartas causam repulsa, minutos depois já não incomodam, mas daí até pô-las na boca, mastigá-las e engoli-las é preciso ultrapassar barreiras, culturais e psicológicas. Estarão os portugueses preparados para comer insetos? Rui Nunes, presidente da Portugal Insect, Associação Portuguesa de Produtores e Transformadores de Insetos, está certo de que sim. “Até na Bíblia se fala em consumir insetos, faz parte da nossa História”, sublinha. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) defende há vários anos que os países devem apostar nos insetos como alimento alternativo, porque têm baixos custos de produção e muito menos impacto ambiental. Para pelo menos dois mil milhões de habitantes deste planeta o consumo de insetos faz parte da alimentação regular. Falta convencer os outros cinco mil milhões.

O primeiro passo devem ser as farinhas, defende Rui Nunes. Qualquer inseto pode ser moído e transformado numa farinha para usar em massas, gelatinas, como aditivo de um iogurte ou de um gelado. O sabor “muito leve” é quase impercetível. No máximo, de acordo com as guidelines europeias, pode adicionar-se 10% de farinha de inseto a qualquer alimento. O presidente da Portugal Insect acredita que estamos perante uma realidade que “vai passar a fazer parte do nosso dia-a-dia”. E a distância para este futuro pode até ser mais curta do que parece. Por ora, há meia dúzia de empresas portuguesas que se aventuraram neste caminho que ainda tem muito para desbravar. Umas dedicam-se à produção, outras só à transformação e outras tanto criam os insetos como desenvolvem os alimentos.

No armazém da Green Meal, as larvas estão distribuídas por contentores marítimos, de acordo com a fase da vida em que se encontram. O ciclo completo do tenebrio molitor cumpre-se em oito semanas. Depois transforma-se num besouro preto de média dimensão, que pode viver quatro a cinco meses, mas vai perdendo fertilidade, explica Vasco Esteves, fundador e diretor executivo da empresa. Na palma da mão, mostra os animais nos diferentes estádios de desenvolvimento. Para produzir em quantidade, é preciso escolher os melhores reprodutores, esperar que ponham os ovos, que são colhidos e separados antes de eclodirem. A empresa tem capacidade para produzir 250 quilogramas (kg) de larvas vivas de tenebrio por semana, mas ainda está a 60%. Com dois sócios e três funcionários a full-time, as perspetivas de crescimento são otimistas e dispararam com a recente autorização da DGAV. “Foi uma vitória muito grande”, admite o diretor, de 33 anos, que cresceu a criar bichos.

Quando era pequeno, os pais proibiram-no de ter cão e “certamente arrependeram-se”. Vasco Esteves começou a desenvolver uma paixão por animais exóticos e criou um autêntico zoo em casa. Iguanas, lagartos, camaleões, répteis, tarântulas, escorpiões,… a lista não tem fim. “Cheguei a ter quase 300 animais”, recorda. O mais difícil era encontrar alimento para manter todas aquelas espécies.

Vasco Esteves fundou e dirige a Green Meal, empresa produtora das larvas tenebrio molitor para alimentação humana
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Inicialmente, importava de Espanha, mas ficava caro e decidiu começar a produzir insetos. Aprendeu nos livros, foi ganhando experiência, mas a ideia de transformar aquela produção em negócio só surgiria mais tarde. Formado em Economia e Gestão, esteve um ano e meio a estudar a criação de insetos. Cedo percebeu que o tenebrio “é a espécie mais passível de ser produzida em escala”. E em março de 2020 montou a empresa com o irmão. Com os pés bem na terra, porque tudo o que é novo impõe calma, preferiu centrar-se apenas na produção. “A ideia é ter a melhor matéria-prima possível e depois fazer parcerias com empresas que fazem a transformação”, explica o empreendedor.

A Portugal Bugs é uma delas. Nesta pequena indústria, também sedeada em Matosinhos (Perafita), é Guilherme Pereira e Sara Martins que mandam. Ali adiciona-se o tenebrio, que foi criado nos contentores da Green Meal, ao chocolate ou confecionam-se barras de cereais com farinha do inseto. As máquinas misturam os ingredientes, cortam e embalam. No site da empresa (portugalbugs.pt), já é possível comprar quatro tipos de barras: chocolate e amêndoa, laranja e figo, maçã e canela ou manteiga de amendoim e mel, todas com farinha de inseto. Cada caixa tem quatro unidades e custa 10,74 euros. Há também chocolate com as larvas à vista e umas embalagens com o tenebrio inteiro para consumir tipo snack, ao natural (desidratado), com sal marinho ou com pimenta caiena.

Os produtos da Portugal Bugs têm tido como destino a Bélgica, a Holanda, a Suécia, a República Checa e o Japão. Mas a nova legislação abre novos horizontes. A empresa tem capacidade para confecionar 90 mil barras de cereais por semana e “está pronta para abastecer o mercado nacional”, assegura Guilherme Pereira. Em julho, vão apresentar novos produtos e estão a fechar negócio com uma cadeia de supermercados. Guilherme e Sara formaram-se juntos, em Engenharia Alimentar, e estão confiantes. “De 2016 para cá, as pessoas estão cada vez mais abertas a este tema”, asseguram, lembrando que, em todas as ações em que participaram, de Norte a Sul do país, “nunca ninguém disse que não gostava do produto”.

Chef promete prato com inseto na ementa

Abertura tem também o chef Marco Gomes, um entusiasta dos insetos comestíveis. “É, sem dúvida, uma solução proteica para o futuro. Acredito que não faltarão muitos anos para termos restaurantes focados neste produto”, refere o cozinheiro, apostando que a viragem será impulsionada pelas gerações mais jovens. “Acima dos 40 anos será difícil, mas os mais novos têm outra mentalidade, outras preocupações com saúde e ambiente.” Marco Gomes é transmontano, mas a ligação à carne e à gastronomia tradicional não impede novas experiências. O proprietário do restaurante Oficina, no Porto, garante que, assim que a legislação estiver toda publicada, vai integrar na ementa um prato com inseto.

Engenheiros alimentares, Sara Martins e Guilherme Pereira fazem a transformação do inseto em alimento
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A ideia é “perceber a reação das pessoas”, levá-las a fazer perguntas e a experimentar e, desta forma, poder ser uma fonte de informação. “Estou à vontade com isto, já fiz muitas experiências, e quero dar esta opção extra ao cliente”, salienta. Poderá ser um aperitivo – “o tenebrio com um pouco de sal é fantástico” -, um prato principal – uma tortilha de batata e grilos, por exemplo – ou uma sobremesa com farinha de inseto, que nem se deteta. Nada está decidido, opções não faltam e o importante é ir medindo o pulso aos sentidos do cliente. “O tenebrio será mais difícil por causa da imagem, mas depois de se experimentar o consumo é fácil. Já o grilo causa menos repulsa, mas nota-se mais no trincar, é preciso mastigar, tornando-se um pouco mais difícil na boca”, sintetiza.

Todos os anos, no Dia Mundial do Inseto Comestível, que se assinala a 23 de outubro, há ações de sensibilização para a importância do consumo deste alimento, promovidas pela Portugal Insect em conjunto com universidades e outras entidades. Além de Marco Gomes, também o chef Chakall já participou como convidado. O cozinheiro argentino, proprietário de vários restaurantes em Lisboa, experimentou insetos na China, no México e em África antes de começar a cozinhá-los. Conhece dezenas de espécies e sabe como se comportam na boca e na panela. Num programa de culinária que apresentava na televisão chinesa, chegou a dedicar um episódio ao escorpião frito. “É muito bom”, garante. Em Portugal, também já testou uma enorme variedade de receitas: gafanhotos fritos com piripíri e sal, salada crocante de grilos em vez de “crótones”, peixinhos da horta com farinha de inseto, bolo de chocolate com frutos secos, malagueta e grilos.

O chef Marco Gomes já criou várias receitas com insetos e está disposto a integrar uma na ementa do restaurante Oficina
(Foto: DR)

“É tudo uma questão cultural. Para um mexicano, tailandês ou vietnamita, comer insetos é algo normal. Em Portugal, comem-se caracóis, o que noutros países é impensável”, compara. O sushi serve de exemplo quando se fala em novos conceitos gastronómicos – “há 20 anos as pessoas não comiam peixe cru e hoje adoram” – e o veganismo também. Em termos de sabor, garante, os insetos são muito fáceis e não têm nada de nojento. “Por comparação, se formos ver o processo de produção de alguns enchidos, garantidamente não voltamos a comê-los”, nota Chakall. O chef acredita que “no final do dia, a batalha far-se-á pelo lado da saúde e da sustentabilidade”. “Se os insetos realmente têm as propriedades benéficas para a saúde que se diz e se têm menos custos, então vão ser uma alternativa”, refere. Mas o triunfo depende da indústria. Se uma grande empresa achar que isto é um negócio, aí sim, está garantido o futuro deste alimento, acrescenta.

Embora timidamente, o retalho alimentar começa a demonstrar interesse no novo ingrediente. A cadeia de supermercados Auchan já participou numa prova de degustação com um pão enriquecido com farinha de tenebrio e há alguns produtos estrangeiros enriquecidos com proteína de inseto a aparecer em lojas “gourmet”. Chefs, produtores, empresários, nutricionistas e ambientalistas – todos acreditam que “é uma questão de tempo” até começarem a surgir prateleiras dedicadas aos insetos comestíveis.

Há duas mil espécies comestíveis

As portas à produção, comercialização e uso na alimentação humana de sete espécies de insetos abriram-se depois do Tribunal de Justiça Europeu dar razão a uma empresa francesa que reclamava não poder comercializar insetos quando alguns países vizinhos, como a Holanda e Bélgica, já o faziam. “Foi isto que permitiu abrir os mercados”, explica Rui Nunes. A legislação europeia entende os insetos como um novo alimento e, como tal, cada espécie tem de ter um dossiê de segurança alimentar submetido e aprovado. Porém, os estados-membros interpretaram os regulamentos de forma diferente quanto ao uso de insetos inteiros, o que estava a ditar práticas heterogéneas dentro da União Europeia.

O que o tribunal europeu veio agora dizer é que há sete espécies que podem ser comercializadas e consumidas por um período transitório, mediante o cumprimento de certas regras. Até agora, só a larva seca do tenebrio tem o dossiê aprovado e a consequente autorização de colocação no mercado. Apesar do avanço, sete insetos são uma ínfima parte do bolo. “Há cerca de duas mil espécies comestíveis e outras quatro mil que são prejudiciais para a saúde”, sublinha Rui Nunes. Segundo a FAO, os mais consumidos são escaravelhos (31%), lagartas (18%), abelhas, vespas e formigas (14%). Gafanhotos, cigarras, térmitas e libelinhas são também usados como alimento em vários países do Mundo.

A aprovação, transposta para a legislação portuguesa através de uma norma da DGAV, é um passo importante, mas está longe de ser o último. A produção de insetos em Portugal ainda tem de ser regulamentada pelo Ministério da Agricultura. E as unidades terão de ser certificadas, tal como acontece, por exemplo, na pecuária.

O ciclo de vida da larva tenebrio molitor dura oito semanas. Depois transforma-se num besouro preto
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A Green Meal é uma das empresas que se posiciona nesse sentido. Ali, valorizam-se as melhores práticas de higiene e segurança e a sustentabilidade ambiental. O tenebrio alimenta-se de desperdício alimentar (orgânico) e cenouras, e praticamente não precisa de água nem de energia. Aliás, estas larvas são uma fonte de energia: cada caixa de nove mil produz três watts, atesta Vasco Esteves.

A sustentabilidade ambiental e alimentar são os pontos fortes na defesa dos insetos enquanto alimento. “São muito eficazes a converter alimento vegetal em proteína”, sustenta José Camolas, vice-presidente da Ordem dos Nutricionistas. Precisam de pouco alimento, pouca água, pouca energia comparando com a vaca ou o porco e emitem muito menos gases nocivos para a atmosfera, acrescenta. Por isso, defende o nutricionista, se têm qualidade nutricional e custos de produção e ambientais menores, “faz sentido usá-los e podem ser uma mais valia”.

Uma vez que, nos países ocidentais, a maior parte da população não tem défice de proteína, os insetos devem ser usados “como substituto e não para acrescentar proteína” à dieta. Admitindo que os nutricionistas são “um pouco obcecados com a diversidade”, o especialista do Hospital de Santa Maria (Lisboa) vê os insetos numa perspetiva de alternativa alimentar. “Não defendo que se centre a alimentação apenas nos insetos, até porque as alergias potenciam-se com a exposição”, refere.

Alérgicos ao marisco podem esquecer insetos

No que toca a reações adversas, é ponto assente que quem tem alergia ao marisco (crustáceos) não pode consumir insetos. Este é, aliás, um dos pontos destacados na norma da DGAV. “De acordo com avaliações disponíveis até ao momento da Agência Europeia para a Segurança dos Alimentos – EFSA, diversas espécies de insetos podem causar alergias ou alergias cruzadas, especialmente para quem sofre de alergia a marisco. Assim, é importante que os consumidores sejam claramente informados na rotulagem e na comercialização que um alimento contém insetos e de que espécie são”, refere o organismo.

Quanto ao impacto do consumo de insetos na evolução de algumas doenças, como a diabetes, e a redução dos níveis de colesterol, José Camolas é mais cauteloso. “Para já, acho que é precoce. Não conheço ensaios clínicos que tenham testado o impacto da alimentação com insetos”, refere o nutricionista, admitindo que possam existir.

Chocolate com larvas e barras de cereais enriquecidos com farinha de inseto já são vendidos pela Portugal Bugs
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Paulo Lucas, ambientalista da associação Zero, vê nos insetos “uma solução a adotar para reduzir o consumo de pescado e de carne, principalmente a de vaca e de porco, que são mais impactantes”, quer ao nível das emissões para a atmosfera, quer dos efluentes pecuários. Ainda assim, considera que esta opção será sempre para “um nicho” de pessoas e nunca uma “verdadeira alternativa”. O caminho, defende, é reduzir a carne, aumentando o consumo de vegetais e leguminosas e o número de refeições vegetarianas por semana. “Advogamos a redução do consumo de carne. Se os insetos ajudarem um pouco nisso, pode ser um caminho, mas não será necessariamente o caminho, pois culturalmente desconfiamos dessa bicharada, achamo-la repugnante porque fomos educados assim”, nota.

Por outro lado, o impacto ambiental da produção dos insetos preocupa. “Como vão ser alimentados? Se for com desperdício orgânico ótimo, não há problema nenhum. Mas se tivermos de produzir vegetais para alimentar a indústria dos insetos, então, já não é tão sustentável”, contrapõe o ambientalista. Susana Fonseca, da direção da Zero, concorda. Bate palmas à reutilização de resíduos orgânicos para alimentar os insetos – “é a economia circular no seu melhor” – mas pede cautelas com a produção intensiva. O que é necessário? São precisos medicamentos? Há pragas? Como se controlam?, questiona.

Tempo, paciência, resiliência. Rui, Vasco, Guilherme e Sara sabem que ainda há muito caminho para correr até que o consumo de insetos entre na alimentação dos portugueses. As portas abriram-se, agora, é preciso convencer os convidados a entrar.