Valter Hugo Mãe

Fernando Echevarría


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Os poetas com tamanho de um século tornam-se tutelares, e aprendemos a usá-los como estruturas para ler a realidade, para ler o Mundo.

A morte de Fernando Echevarría, aos 92 anos de idade, vai fechando um certo Porto de luxo, onde esteve também Eugénio de Andrade ou Albano Martins e Manuel António Pina. Sobra-nos o grande Fernando Guimarães. Os poetas com tamanho de um século tornam-se tutelares, e aprendemos a usá-los como estruturas para ler a realidade, para ler o Mundo. Echevarría tinha uma condição férrea, uma participação incondicional na poesia do Porto e do país, estava entre nós igual a uma testemunha única, alguém irredutível, alarve, profundamente legítimo.

Houve um tempo em que coincidimos muito. Viajámos juntos para alguns eventos na Espanha fronteiriça, ríamo-nos, era alegre, cheio de “chistes”, gostava da rapaziada e cofiava os bigodes, metido em suas golas de pêlo alto, a falar do que havia para comer nos encontros de poetas. Importava-se pouco com a azáfama da glória. Era todo entregue ao verso intrincado, aceitava seu hermetismo sincero, a sua magnífica pulsão filosófica que lhe retirava sensualidade e erguia uma espécie de inteligência acima de tudo. Tinha dificuldade em gostar de outros poemas, de novos poemas, mas era generoso diante dos poetas, era, como disse, com vontade de alegria.

Convidei-o mil vezes para editar um livro nos vários projectos pelos quais me vi responsável, mas foi fiel à chancela que o acolheu há tanto e nunca lhe pareceu que o frenesi de outras edições fosse atraente o bastante para se mudar nem que por um instante. Também o admirei muito isso. Ele sabia que lhe correspondia sobretudo uma sombra, uma espécie de neblina nocturna onde mais perdemos os olhos do que vislumbramos a ideia límpida. As ideias são conquistas ásperas e infinitas em seus sentidos, jamais poderiam oferecer limpidez, isso seria engodo, uma desnecessária ilusão. Pensar é sempre pensar mais dentro do mistério. Echevarría vinha à rua como quem aceitava sua dimensão desimportante, mas regressava a casa como intocado, absoluto na sua identidade e prosseguia incólume a qualquer pressão ou deslumbre do meio.

Era, contudo, e julgo ser fundamental lembrá-lo e lê-lo assim, um poeta de ansiedade gentil, um poeta cujo discurso se enternecia e reconhecia na fragilidade o caminho para o encontro: “Descalça de viver, andava sempre. / Enchia a rua quando não passava. / Mas, se passava, desfazia o tempo / e apagava a rua, os homens e as lágrimas. // Nem ela própria já vivia dentro / de si. A roupa que levava / tinha uma cor de triste e pensamento / que não se sente e não se vê. E nada // dela se via que não fosse um vento. / Nem um silvo ou perfume a denunciava. / Sabia-se, de certo, que vivia // porque o dia, a certas horas se quedava / pronto, parado, como não sendo dia. / Ela, descalça de viver, passava…”.

A cidade está tão distraída que parecem morrer há muito os que morrem agora. Fico mais triste ainda. Quero que o Porto erga em bronze os seus contadores exímios. Quero que existam o Eugénio e o Pina sentados, o Albano Martins e o Echevarría e a Agustina, onde nos sentemos também e façamos uma fotografia que nos invente uma presença que, na verdade, jamais poderá ser absoluta ausência. Estas pessoas jamais estarão absolutamente ausentes.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)