Emicida: “Os nossos livros de História foram discos”

Leandro Oliveira é conhecido no mundo artístico por Emicida

O ativista e rapper brasileiro é o “mestre insurgente” da primeira residência artística do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Partilha sonhos e lutas, fala de racismo, igualdade de género, arte, transformação social. O seu documentário “AmarElo - É Tudo Pra Ontem” está nomeado para um Emmy na categoria de programação artística.

Lá fora, a agitação habitual de uma sexta-feira. Leandro Roque de Oliveira, conhecido artisticamente como Emicida, chega ao Rivoli, Teatro Municipal do Porto. É mais alto do que parece, sereno como transparece, conversador como se supunha. No braço esquerdo, tanta História tatuada. Nelson Mandela. Zumbi dos Palmares, ícone da resistência negra. Carolina Maria de Jesus, das primeiras escritoras negras do Brasil. João Cândido, líder da Revolta da Chibata. Milton Santos, geógrafo e pensador. Pixinguinha, dos maiores compositores da música popular brasileira, tocando saxofone e com “A rua é noiz”, música de Emicida, no boné.

Na véspera, soube que o seu documentário “AmarElo” – É Tudo pra Ontem”, disponível na Netflix, está indicado para o Emmy de melhor programação artística. Alguém espalhou a notícia, um amigo deu-lhe os parabéns, confirmou várias vezes antes de agradecer. Este ano, ganhou o Prémio Lusofonia dos Play – Prémios da Música Portuguesa com “É Tudo Pra Ontem”, canção que conta com a participação de Gilberto Gil, e está nomeado para um Grammy Latino 2021. Confessa que é tímido, garante que tem os pés no chão, comenta, com graça, que se sente uma velhinha de 90 anos num corpo de 36. A conversa começa no café do Rivoli. A sua presença em Portugal tem um propósito – já lá vamos.

A responsabilidade atrelada à sua imagem tem poder. E ele sabe disso. “A gente faz música e através da música consegue ser reconhecido. Esse reconhecimento traz olhares, traz relevância, traz poder. A partir desse poder, a gente redistribui as oportunidades, cria um desfile de moda, um documentário, uma empresa, cria postos de trabalho.” Avança-se e acredita-se que é possível construir uma sociedade melhor. “Quero tentar usar essa repercussão para beneficiar pessoas que tiveram tão poucas oportunidades. Eu encontrei uma fresta onde pude florescer, mas várias pessoas não.”

A música desde cedo e desde sempre. Aos sábados, as bandas de samba tocavam nas ruas sem cobrar bilhete, cantava-se, dançava-se, na periferia de São Paulo. O pai e a mãe ajudavam a organizar um baile. O pai era DJ e tocava, a mãe vendia bebidas. “A cozinha de minha casa era uma coisa muito esquisita: tinha um monte de discos de vinil e um monte de caixas de bebidas. Foi um ambiente fascinante de se crescer.”

Na adolescência, começou a desenhar, queria ser artista de banda desenhada, escrevia poesia, histórias de super-heróis. A mãe dizia-lhe que esses livros falavam de super-heróis falsos. Herói de verdade é quem saía para trabalhar cedo, argumentava ela. Leandro descobriu então um judeu norte-americano que contava a diáspora judaica em banda desenhada. Ficou fascinado. “Ele contava a vida real das pessoas que saíam para trabalhar cedo.”

Acompanhou os diferentes momentos do rap no Brasil, quando era mal-amado, quando teve alguma popularidade, quando começou a passar nos programas da TV, quando foi ostracizado, até um novo fôlego de visibilidade. Nesta altura, já não é um espectador, é um protagonista. “Comecei a fazer improviso de uma forma irreverente nas batalhas de rimas.” Fica cada vez mais popular, batalha a batalha, ganha uma competição de rua a valer. Tinha 17 anos. Venceu uma, venceu duas, venceu três. E Emicida nasce na fusão das palavras MC e homicida, até lhe dar um novo significado, uma palavra para cada letra: Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte. Emicida, pois claro. “A nossa existência não se pode resumir à denúncia. Eu não sou somente porta-voz de algo que atravessou a minha vida, eu sou a minha vida.”

“AmarElo” não é apenas um disco, não é apenas um documentário que celebra a cultura afro-brasileira, é um experimento social. A 27 de novembro de 2019, o Teatro Municipal de São Paulo foi de Emicida e de gente de luta, gente que nunca tinha pisado aquele espaço construído por mãos negras. “Ocupar o teatro municipal com ‘AmarElo’ é uma conquista num terreno que nos foi hostil durante toda a nossa história.” Não quer que seja a exceção, quer que seja a regra. “Muitas pessoas se sentiram provocadas para pertencer ao teatro e a intenção daquela ocupação é essa. Não é simplesmente ser um ponto fora da curva e agora a gente volta à normalidade. Não, a normalidade precisa ser essa, até porque o teatro pertence ao povo.”

O saber académico e o saber popular

Emicida é o convidado da primeira residência artística do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, no âmbito das atividades da Universidade Popular Empenho e Arte, coordenada por Tatiana Moura e Bruno Sena Martins, numa reflexão e diálogo sobre a relação entre arte, ciência, e transformação social, com intervenções artísticas, palestras, rodas de conversa – ainda ontem, no Rivoli, exibiu o seu documentário “AmarElo” na Mostra de Cinema Antirracista, a 19 de outubro, estará no seminário “Construir as Epistemologias do Sul” com Boaventura de Sousa Santos, no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, das 19 às 21 horas.

É uma “cátedra insurgente”. Emicida adorou o título um pouco provocador, um tanto subversivo para quem nunca frequentou uma universidade. Cátedra merece-lhe todo o respeito, a insurgência está-lhe entranhada na pele. Essa relação com a academia, a relação entre o saber académico e o saber popular, não é algo estranho para quem gosta de pesquisar – a música é um processo de procura constante. A sua mãe costuma dizer que a palavra escrita só existe para fazer justiça à palavra falada. “O que estamos chamando de saber popular é exatamente essa sabedoria falada. É fascinante que a gente possa organizar todo o pensamento produzido pela raça humana dentro dos livros, mas a gente também tem de se perguntar se todo esse conhecimento tem servido à população. É nessa perceção que a cultura popular precisa fazer parte do universo académico porque senão a gente faz mais justiça ao muro que cerca a universidade do que ao livro.” É uma intersecção valiosa. O ambiente da cultura popular observa-se a si mesmo, e aprende com o ambiente académico, e a academia aprende com a fluidez da cultura popular.

O rapper de São Paulo e os responsáveis pela residência artística: Tatiana Moura e Bruno Sena Martins (em cima) e Linda Cerdeira (em baixo)

Sexta-feira, 15 de outubro, às 9.30 horas, Emicida participa no curso de formação avançada “Repensando Género: Arte, Política, Media e Masculinidade”, n’O Teatrão – Oficina Municipal de Teatro, em Coimbra. “Os nossos livros de História foram discos” é o título que escolheu para a intervenção. Numa frase, resume a forma como aprendeu História. “Eu entendo muito melhor o processo de migração interna do Brasil no século XIX, início do século XX, pela música e pela comida, do que pelo livro de História. Claro que os dois são complementares, não acredito que um substitua o outro. A partir dessa complementaridade, a gente começa a ter uma sensibilidade maior e se aproxima do que de facto foi um determinado período histórico.” Em miúdo, lia os folhetos que acompanhavam os discos de uma coleção de música que contavam as histórias das canções, pessoas e seus lugares. “Quando escuto a música sinto a história do lugar vindo até a mim.”

No final dessa tarde, no Rivoli, Emicida conversa com Tatiana Moura, Bruno Sena Martins e Linda Cerdeira, investigadores do CES e responsáveis pela residência artística. Trocam impressões sobre o está a acontecer, o que falta fazer, o que é necessário para a performance online #AMúsicaSalva, já transmitida no seu TikTok. Tudo acontece de um encontro de vontades, de circunstâncias. Tatiana Moura justifica o convite a Emicida. “Pelas suas linguagens artísticas e culturais, pelas parcerias e diálogos que estabelece no Brasil e a nível mundial.” É um artista da periferia que ocupa o espaço público. “Com esta proposta pretende-se criar um espaço emblemático de articulação entre investigação desenvolvida no CES e a criação artística com impacto público na promoção dos direitos humanos, na afirmação de vozes e linguagens negligenciadas pela cultura académica e no estreitamento de diálogos com os movimentos sociais na Europa e no Sul global”, acrescenta.

Bruno Sena Martins fala dessa desconstrução da ideia de cátedra, dessa provocação à solenidade académica, de Emicida “ser o produtor do saber e não a matéria-prima.” “O seu percurso e a sua obra têm uma relação muito forte no modo como pensa a arte e a cultura. É uma voz de identidades periféricas, de emancipação social”, refere.

A música como uma foto ao contrário

Racismo, arte, ciência, igualdade de género, masculinidades, transformação social. A residência artística coloca vários temas na primeira linha. “A inércia conduz a sociedade para os abismos. Estes assuntos não se resolvem por si só. O Brasil é hoje uma tragédia do ponto de vista político, a gente observa a não gestão do governo Bolsonaro. E qual a conclusão a que podemos chegar? É o resultado direto de todas as conciliações que o Brasil acredita que produziu, mas nem tocou nelas. Aí tem camadas que falam como o processo de escravatura se deu de uma forma equivocada, superficial, falsa, vai ver que o genocídio indígena continua em curso, que a reforma agrária precisava ser feita e não foi feita. Tudo isso está vinculado de uma forma umbilical à desigualdade social do país”. Onde a ignorância prolifera, a violência surge como consequência.

Emicida acredita que o rap e o hip-hop podem ser métodos pedagógicos. “É muito interessante pegar numa cultura que é fragmentada – com quatro formas de expressão: DJ, MC, graffiti e breakdance – e o conhecimento, e entender como essas quatro manifestações culturais podem abarcar os saberes tradicionais que são necessários passar para as crianças, para os estudantes como um todo”, diz. “Temos uma oportunidade de fazer com que o processo de aprendizagem seja mais fluido, tão fluido como essa maneira convidativa como o hip-hop me fisgou e que me fez aprender sobre uma série de coisas que nunca vi enquanto estava numa sala de aula.”

Emicida também escreve para crianças. Um dia, a escritora brasileira Elisa Lucinda, sua amiga, disse-lhe uma coisa que não esquece: “A gente tem de parar de chegar atrasado na vida das pessoas, a gente chega depois do trauma, a gente tem de chegar antes, cara.” Os livros infantis são uma ótima porta de entrada.

Três meses em Portugal em rodas de conversa, palestras, partilha de conhecimentos, na mostra antirracista que teve lugar no Rivoli, no Porto, onde foi fotografado

Quantas meninas crescem a acreditar que há tarefas domésticas femininas? Qual o momento em que o Mundo se transforma numa barreira para os sonhos das crianças? Isso preocupa-o. “Não gostaria de ser a barreira para os sonhos das minhas filhas, como outras pessoas foram barreiras para os meus. Se posso ser uma ponte entre elas e o máximo de potencial delas, é isso que vou ser, é nisso que me concentro todos os dias, sem acreditar que elas precisam ser condicionadas para uma determinada função por causa do género, por causa do corpo, por causa de nada.”

Os seus livros falam de racismo e de medos. Leandro percebeu o que era racismo na pré-escola. “Não tinha preparação nenhuma para lidar com isso, estava desarmado, foi um susto. Você volta para casa se sentindo vazio, se sentindo inútil, se sentindo feio, se sentindo menos.” Falar sobre racismo é fazer com que as crianças tenham a perceção de que ele existe, é preparar para um trauma que pode acontecer ou não. “Mas se surgir elas vão estar mais preparadas do que eu estava.”

A conversa volta à sua música que nasce de observar a sociedade. É como tirar uma fotografia. “Essa comparação, para mim, é perfeita porque assim como uma fotografia guarda uma imagem de um momento, acredito que com palavras, a partir da forma como as organizo, consigo criar um estado de espírito que cria uma imagem na sua cabeça. De alguma forma, é uma foto ao contrário”, analisa.

No final da residência artística, daqui a poucas semanas, Emicida espera que a partilha continue (além de um churrasco na despedida). “Acredito que estamos trabalhando para que portas sejam abertas, a partir dessas portas, novos pensamentos surjam, ganhem corpo, e a partir desse novo corpo transformações nasçam.” Emicida, o “mestre insurgente”, vê dois pontos e, de alguma maneira, tenta ligá-los. Como? “Vou ver na prática.”