Doar a vida a um desconhecido

Ana, Eduardo e Tânia galgaram todos os obstáculos para salvar alguém que não conhecem. E fariam tudo outra vez. Frederico e José foram bafejados pela sorte de um dador compatível de medula óssea. As histórias de quem dá e de quem recebe e o livro que guarda todas as emoções.

O papel branco colado na capa diz “A sua opinião”. É um livro cinzento, tipo escritório, desgastado pelo uso, desinteressante à primeira vista. Susana Roncon abre-o devagar, com o cuidado que há anos dedica ao projeto. Lá dentro, está a surpresa. São páginas e páginas de emoção, dezenas de relatos de quem deu um pedaço de si para que o outro pudesse viver e de quem agradece com fervor a generosidade alheia. Há desenhos de crianças, há árvores da vida, há postais ilustrados, há centenas de obrigados em português, mas também em inglês e em espanhol. E há textos escritos com o coração, de quem sentiu que dar é tão importante como receber.

“Não salvaste só uma vida, salvaste também parte das pessoas que me amam. És um verdadeiro herói. Obrigada”
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Naquele livro do Serviço de Terapia Celular do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, os anos percorrem-se por separadores, de 2013 a 2021. Em cada compartimento há cópias das cartas enviadas pelos dadores de medula óssea aos doentes que ajudaram e os agradecimentos de quem recebeu a dádiva e pôde voltar à vida porque alguém, nalgum canto do Mundo, decidiu que sim. Antes de enviar para dadores ou transplantados, o serviço em conjunto com o CEDACE (Centro Nacional de Dadores de Células de Medula Óssea, Estaminais ou de Sangue do Cordão) filtra os dados pessoais porque a lei portuguesa, ao contrário do que acontece noutros países, impõe o anonimato entre dadores e recetores de órgãos.

As mensagens chegam de todo o lado e o fluxo começou antes de 2013. Susana Roncon, diretora do Serviço de Terapia Celular do IPO do Porto, guarda memória de um postal que recebeu de um índio do Alasca para uma criança portuguesa transplantada no seu serviço. Já não o encontra, mas foi tão surpreendente que é impossível esquecê-lo. “Muitas vezes, as cartas chegam anos depois, o que prova que isto fica para a vida”, sublinha. O “isto” de que fala é tanto dar como receber. O livro está na sala de espera, para que todos o possam ver e envolver-se. A médica volta a folheá-lo, conhece as histórias de trás para a frente. Apesar de não terem nomes, recorda quase todos os rostos que estão por trás daquelas linhas. “Olhe esta Maria. Tem uma história de vida maravilhosa”, comenta, sorrindo por trás da máscara.

Susana Roncon, diretora de Serviço de Terapia Celular do IPO Porto, com o livro de mensagens trocadas, anonimamente, entre dadores e recetores de medula. Histórias de gratidão, em várias línguas, que se cruzam desde 2013
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

São muitas as histórias de quem dá a vida e de quem a recebe que merecem ser contadas. Exemplos de altruísmo, Ana, Eduardo e Tânia foram dadores de medula óssea. Disponibilizaram-se a galgar todos os muros para ajudar alguém que não conhecem. E fariam outra vez. Frederico e José foram recetores. Estão vivos, e por ora sem sinais de cancro, porque tiveram a sorte de ter alguém como Ana, Eduardo e Tânia. Todos agradecem e se emocionam quando pensam nisso.

O registo nacional de dadores de medula óssea é o terceiro maior do Mundo, quando calculado o rácio por milhão de habitantes (considerando apenas países com mais de dez milhões de pessoas). Atualmente, tem 402 864 dadores inscritos. A busca por um dador compatível começa sempre na família. Se não houver resultados, a procura é alargada ao registo nacional e depois à rede internacional. No ano passado, o CEDACE foi ativado 1 198 vezes para ajudar doentes portugueses e estrangeiros, indicou à NM o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). Porque a pandemia virou o Mundo do avesso, houve menos ativações do que no ano anterior (1 521), mas a normalidade está a regressar.

Deitada na cama, de braços abertos com agulhas espetadas nas veias e rodeada de tubos, Ana Patrícia Jaco mantém a determinação que a levou a dizer “sim” em fevereiro passado, quando lhe ligaram a perguntar se estaria disponível para uns exames complementares porque havia a possibilidade de as suas células estaminais serem compatíveis com as de um doente. Doze anos antes, Ana, residente em Viana do Castelo, inscreveu-se no registo nacional de dadores de medula óssea no âmbito de uma campanha para uma criança de Ponte de Lima. Não voltou a pensar muito no assunto, até que o telefonema chegou. Sim, respondeu.

Tânia Rodrigues desde criança que sonhava ser dadora e concretizou esse desígnio. Só sabe que a sua medula seguiu para a América. Anseia por saber se correu tudo bem com o recetor
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Fez análises no Centro de Sangue e da Transplantação do Porto e aguardou. Disseram-lhe que, se fosse compatível, o processo ia levar alguns meses. Em abril, voltaram a contactá-la. Era para avançar. Foi a uma consulta no IPO do Porto, explicaram-lhe todo o processo e fez novas análises, raio-X e eletrocardiograma. “Estava disponível para doar por qualquer um dos métodos” – colheita por aférese ou por punção lombar -, “o que melhor servisse o doente”. Depois de sossegar a filha, de sete anos, e explicar-lhe a razão por que ia dar uma parte de si a alguém que não conhecia, dirigiu-se ao hospital no dia 20 de maio, de cabeça erguida.

Com os braços estendidos como se estivesse na cruz, Ana, 32 anos, submeteu-se à aférese e deixou que a máquina que a rodeava naquela sala de colheita do IPO fizesse o seu trabalho. “Não importa para quem é, se fosse alguém da minha família ia gostar que tivessem este gesto”, assegura com firmeza. Susana Roncon levanta o véu, tanto quanto possível. “É para uma senhora nascida em 1965 que tem uma leucemia aguda”, desvenda. Enquanto Ana faz as contas (“56 anos……”), nasce-lhe um sorriso por trás da máscara branca. “Toda a gente tem o direito de viver”, remata.

Do braço direito, a agulha recolhe o líquido vermelho escuro que corre por um tubo em direção à máquina que Ana tem a seu lado. Lá dentro, a bomba separa os componentes sanguíneos para obter as células-mãe da dadora, que são guardadas num saco que depois seguirá para o centro de transplantação onde está o doente. Pode ser em Portugal, na Europa ou em qualquer país do Mundo. No braço esquerdo, outra agulha devolve ao corpo de Ana tudo o que restou daquela colheita. Depois de contadas, as células estaminais serão transfundidas a fresco (entre oito a 16 horas depois) ou congeladas para utilização posterior. A enfermeira do serviço anda ali à roda a controlar todos os parâmetros. Não quer, e insiste que não quer, dizer o nome nem aparecer nas fotografias. Os heróis são os dadores. “São eles que nos dão vida”, atira.

Ana Patrícia Jaco, a fazer a recolha das células-mãe no IPO do Porto e que vão seguir para alguém, em Portugal ou no estrangeiro. “Não importa para quem é, se fosse alguém da minha família ia gostar que tivessem este gesto”
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Herói é a definição que Maria, a tal jovem “com uma história de vida maravilhosa”, encontrou para o seu dador. “Não salvaste só uma vida, salvaste também parte das pessoas que me amam. És um verdadeiro herói. Obrigada”, escreveu no livro da gratidão. O caso de Maria, uma jovem bombeira de Famalicão que nunca baixou os braços enquanto procurava um dador compatível, mereceu destaque no site da associação mundial de dadores de medula óssea (World Marrow Donor Day), à qual o Serviço de Terapia Celular do IPO do Porto se associou em janeiro passado, numa iniciativa que pretende sensibilizar para a importância da doação.

Por ora, Ana Patrícia Jaco ainda não pensou em enviar uma mensagem à recetora, a senhora de 56 anos que vai receber uma parte de si. Mas guarda a sugestão com carinho e remete a decisão para mais tarde.

As boias a que Frederico se agarrou

O cancro entrou na vida de Frederico Coelho de rompante. Foi em 2019, tinha então 24 anos, um mestrado em Engenharia Química acabado de concluir e um projeto de investigação em curso. Leucemia linfoblástica aguda, tipo B. O diagnóstico trazia em anexo um protocolo terapêutico difícil de engolir, ainda mais numa fase em que a vida tem tudo para dar. Fez oito ciclos de quimioterapia no Hospital de S. João (Porto) e, quando ia a meio caminho, bateu de frente com a maior encruzilhada: ou fazia um transplante de medula óssea para erradicar o cancro por completo ou teria de fazer quimioterapia para sempre, de forma a manter a doença controlada. Engoliu em seco. Precisava de um dador compatível.

Num dos tratamentos, Frederico fez uma reação alérgica a um dos fármacos e teve de ser internado no S. João. Na cama ao lado estava um homem com uns 45 anos, chamado Paulo, a recuperar de um linfoma. Paulo não parava de falar sobre pesca. Os peixes, as canas, os iscos, mostrava fotografias e vídeos das aventuras no mar, falava com emoção forte de um desporto que até então sempre lhe parecera monótono e desinteressante. Aos poucos, Frederico começou a envolver-se, a fazer perguntas e a pesquisar um pouco sobre o tema, até que “o bicho pegou”. Quando saiu do hospital, e mal recuperou forças, lançou-se ao mar e ficou “viciado”. A pesca passou a ser um objetivo, um foco, uma motivação para ultrapassar todos os obstáculos. À data não sabia, mas Paulo lançara-lhe uma boia numa altura em que o mar havia de se tornar ainda mais tempestuoso.

Frederico Coelho soube que havia um dador compatível depois de fazer oito ciclos de quimioterapia. Sem o transplante, teria de fazer quimioterapia a conta-gotas toda a vida
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Sentado no cadeirão preto do gabinete médico, com a mochila e a canadiana ao lado, Frederico centra o filme noutro momento-chave. Foi já no final do oitavo ciclo de tratamentos que recebeu a notícia: havia um dador compatível. “Não acreditava, fiquei eufórico. Estava convencido que ia fazer quimioterapia a conta-gotas, toda a vida e, de repente, tinha a possibilidade de voltar a ser o que era antes de o cancro ser diagnosticado”, descreve, revivendo o momento.

Fez o transplante em novembro de 2019, correu tudo bem, mas quando pensou que ia pisar terra firme entrou em mar revolto. Desenvolveu a doença do enxerto contra o hospedeiro, a principal complicação que pode surgir após um transplante alogénico (com células de um dador) de medula óssea. Na primeira crise, teve uma reação aguda da pele. Ficou todo vermelho, cheio de comichão e ardor, mas teve alta a tempo de passar o Natal em casa. No final de janeiro, novo episódio agudo, desta vez nos intestinos. Esteve três meses internado e o agudo tornou-se crónico, apenas controlável com fármacos imunossupressores. Com as defesas em baixo, pouco depois sofreu outro revés na recuperação: uma cistite hemorrágica (inflamação da bexiga) atirou-o para a sala de operações e para a câmara hiperbárica do Hospital Pedro Hispano (Matosinhos) por duas vezes. Passou, mas ficaram sequelas. Em novembro, a doença atacou-lhe o sistema respiratório. Voltou ao bloco para remover uma massa alojada no pulmão e esteve seis meses a debater-se com o mal-estar provocado pela medicação. Entretanto, a terapêutica com corticoides provocou-lhe necroses na anca, que lhe causam dores ao andar e o obrigam a apoiar-se na muleta. Vai ser submetido a nova intervenção, mas “esta será pouco invasiva”, relativiza. São dois anos a levantar-se e a cair, uma “montanha-russa” de dificuldades que Frederico vai ultrapassando com o sentido prático dos engenheiros. Consciente das limitações, mantém o foco: voltar a pescar. Paulo e outros amigos já prometeram levá-lo ao mar, assim que recuperar as forças.

“A única coisa que quero fazer é agradecer, e agradecer e voltar a agradecer. Agradecer por não teres desistido quando recebeste a chamada a dizer que eras compatível com alguém. Por não teres cedido aos medos e receios…”
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Apesar de todas as complicações, atingiu o objetivo principal: “Todos os exames indicam que não há sinal de cancro”. E, por isso, está “eternamente grato à pessoa que disponibilizou o seu tempo e o seu corpo” para lhe salvar a vida. Os óculos embaciam-se por cima da máscara, limpa os olhos com as costas da mão. Emociona-se sempre que fala do assunto. E sempre que pensa naquele dador que, embora desconheça, foi outro “Paulo” na sua agitada travessia.

Eduardo estava predestinado a dar vida

Estava escrito nas estrelas que Eduardo seria um dador. Nasceu no dia de Nossa Senhora de Fátima, em Luanda, foi batizado no dia de São João na Igreja de São Joaquim, na capital de Angola, e o padre até brincou que iria ser santo. “Santo não sou”, ri-se, mas dador sim. E se à primeira não resultou, teve um segundo “euromilhões”.

Em setembro de 2017, Eduardo Alves, agora com 49 anos, recebeu um telefonema para fazer mais exames porque havia a possibilidade de ser compatível com um doente. Inscrevera-se no registo nacional de dadores de medula óssea cinco anos antes, numa iniciativa promovida no Parque das Nações, em Lisboa. Soube de um colega de trabalho que precisava e registou-se. Chamado a comparecer, fez as análises no IPST, em Lisboa, mas o processo não teve seguimento. “Provavelmente, não seria assim tão compatível”, pressupõe. Quase quatro anos depois, a 17 março de 2020, com o país confinado e apavorado, o telefone volta a tocar. “Era a mesma pessoa a dizer-me que tinha sido identificada compatibilidade com um doente.” Estava em teletrabalho e quando desligou o telefone pensou: “Outra vez?”. Se a probabilidade de um dador ser chamado uma vez ao longo da vida para doar medula já é reduzida, duas vezes é mesmo raro. Destino? Eduardo é católico não praticante, mas acredita que aquela experiência fazia parte do seu caminho, tinha de ser vivida. Aceitou de imediato e foi chamado em maio para novas análises. Mantinha a dúvida: será que desta vez iria avançar? Avançou. Não em Lisboa, mas no Porto porque as restrições impostas pela covid-19 suspenderam a atividade de colheita nos restantes centros do país. Em outubro, foi “ativado”, fez em casa as injeções de estimulação das células-mãe (estaminais) que circulam no sangue e, no dia 14, apresentou-se no IPO do Porto para uma colheita por aférese. “Uma experiência espetacular” que nunca imaginou ter e que ficou gravada para sempre. Pelo significado – “Lembro-me de olhar para os sacos à minha volta e pensar que aquilo podia salvar alguém” – e pelo ambiente que testemunhou: “O profissionalismo e a parte humana das pessoas que ali trabalham tocou-me, têm uma vocação muito especial”.

Eduardo Alves foi chamado duas vezes e acabou por fazer uma doação. Recebeu uma carta do doente que recebeu as suas células. “Dizia que me considerava um irmão de sangue, o que é curioso porque eu considero-o como um filho que, tal como a minha filha, nasceu há nove anos”
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Nos meses seguintes foi-se questionando: o que teria acontecido? Será que resultou? Sabia apenas que aquela parte de si seria infundida num homem com cerca de 60 anos, nada mais. Em abril, precisamente na semana em que completava nove anos de inscrição no registo de dadores, recebeu uma carta de agradecimento enviada pelo IPST, mas faltava o texto do doente. Tinha havido um lapso no envio. Nos dias seguintes, Eduardo correu para o correio todas as manhãs até que a carta completa finalmente chegou. Estava escrita em português, não sabe se pelo próprio ou traduzida, e agradecia a dádiva que lhe permitira prolongar a vida. “Dizia que me considerava um irmão de sangue, o que é curioso porque eu considero-o como um filho que, tal como a minha filha, nasceu há nove anos.”

Para José o copo está sempre meio cheio

A capacidade de José Fernandes desatar os nós da vida é quase desconcertante. Tem 27 anos, os últimos dois vividos entre casa e hospitais, entre tratamentos de quimioterapia, um transplante, uma cirurgia e doses avultadas de fármacos que lhe roubaram qualidade de vida. Estava numa “boa fase profissional e pessoal”, quando em outubro de 2019 sentiu, pela primeira vez, um ligeiro desconforto nas pernas. Não ligou, achou que era do stress ou de andar muito de carro. De repente, começou a emagrecer. Estranhou, alimentava-se bem e a balança apontava no sentido contrário. Em fevereiro do ano passado, já com menos dez quilogramas do que o habitual, deparou-se com outro sinal de alerta. “Um dia cheguei a casa cheio de dores nas articulações, não me conseguia mexer”, explica, com uma expressão corporal divertida, que não bate certo com a experiência. Os olhos pretos, encaixados entre a máscara e o boné, também preto, atestam o relato. Começaram os exames e as dúvidas: uma anemia, uma infeção, talvez artrite reumatoide. As dores nos ombros, joelhos, cotovelos, em todas as articulações não paravam de aumentar. Ainda viajou até Nova Iorque sem saber o que tinha, antes de o país fechar as fronteiras e confinar pela primeira vez, em março de 2020. Quando regressou, as dores tornaram-se insuportáveis, ao ponto de encher uma banheira de água quente para aliviá-las e demorar meia hora para conseguir entrar. Por essa altura, já andara a pesquisar o que poderia ter e quando o diagnóstico chegou, dias depois, numa consulta no Hospital de Santo António (Porto), já estava inconscientemente preparado: leucemia linfoblástica aguda.

“Agradeço-lhe por mim e pela minha vida, mas agradeço sobretudo pela minha família, principalmente pelos meus filhos que graças à sua dádiva têm agora melhor hipótese de continuarem a ter a minha companhia nas suas vidas”
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

José leva a doença a sério, mas sempre preferiu ver o copo meio cheio. Foi a casa falar com os pais, voltou para fazer oito ciclos de quimioterapia, com o seu estilo descontraído e sem fazer muitas perguntas. “Efeitos secundários, riscos e isso, nunca liguei muito ao que me diziam”, garante, encolhendo os ombros. Quando lhe surgiu um fungo no pulmão e teve de ser operado, a mesma postura. “Não perguntei nada e achei que me iam aspirar, só depois é que soube que me tiraram parte de um pulmão”, graceja, com a mesma simplicidade de quem assume que até gosta de usar máscara porque assim não se vê a cara inchada dos corticoides. Quando os médicos perceberam que a leucemia não tinha sido erradicada com a quimioterapia, decidiram apostar no transplante de medula óssea. Mais uma vez, José Fernandes, gestor comercial de um jornal regional e um comunicador nato, optou por não fazer muitas perguntas. E resultou. Em dezembro, ficou boquiaberto quando soube que tinha três dadores compatíveis. “Três é muita sorte, há pessoas que andam muito tempo à procura e eu tive logo três. Só posso estar agradecido”, reconhece, bem-disposto. Em fevereiro, fez o transplante, superou uns “temíveis” 32 dias de isolamento, criando rotinas e aprendendo a meditar através de aplicações no telemóvel. “O meu maior receio era como iria reagir a estar fechado durante um mês, mas consegui.” Ri-se, mais uma vez. Por ora, ainda é cedo para lançar foguetes a respeito da leucemia, tem de manter os cuidados em casa, e com o afilhado de dois anos, mas sente-se bem e agradecido pela segunda oportunidade que a vida lhe deu. “Tenho pena de não poder conhecer o meu dador, é uma nova parte de mim”, exterioriza. Talvez um dia lhe faça chegar a sua história.

A recordação de um vizinho que em criança precisou de um dador de medula óssea marcou Tânia Rodrigues. Teria uns dez ou 11 anos quando se apercebeu do drama e, pouco depois de atingir a maioridade, decidiu inscrever-se como dadora no registo nacional. A vida levou-a até Barcelona, mas o subconsciente seguiu-a e, na primeira oportunidade, aproveitou uma dádiva de sangue para se inscrever como dadora de medula também em Espanha. Em dezembro de 2019, Tânia voltou à terra natal e estava decidida a organizar uma campanha de angariação de dadores de medula óssea durante uma prova de motos em Lagares, Penafiel. Sempre considerou que “o processo de inscrição devia ser mais acessível, ir ao encontro das pessoas” e estava focada em simplificá-lo, mas a pandemia trocou-lhe as voltas e o país fechou antes do evento se realizar.

José Fernandes fez um transplante para tratar a leucemia linfoblástica aguda. Sempre com humor, sem fazer muitas perguntas. Nos 32 dias de isolamento, recorreu a “apps” de meditação
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Meses depois, em outubro, no dia de anos do filho, Tânia, agora com 39 anos, estava a passar os olhos pelo email quando viu uma mensagem de Barcelona. “Queriam saber com urgência se estava disponível para doar”, relata. Quando respondeu que sim e explicou que residia em Portugal, quiseram tirá-la da lista, mas ela insistiu. No fundo, era o momento que aguardava desde miúda. “Disse-lhes que, se fosse necessário, até poderia deslocar-me a Barcelona.” O centro espanhol entrou em contacto com Portugal e o processo correu no Instituto Português do Sangue, no Porto, com a colheita por aférese realizada no IPO a 14 de abril. Só cinco dias antes, quando começou a tomar as injeções de estimulação das células, é que Tânia, mãe de três filhos, teve real consciência do ato que estava prestes a concretizar. “Caiu-me a ficha, vieram os medos e os fantasmas, estava assustada e insegura, mas decidida a superar aquele muro, fosse do tamanho que fosse.” No final, acabou por ser mais fácil do que imaginara e, se fosse preciso, “faria tudo outra vez”. Porque a sensação de ter contribuído para ajudar um doente e uma família inteira “é muito gratificante”. Não faz ideia se o recetor é adulto ou criança, homem ou mulher, sabe apenas que a dádiva seguiu para o continente norte-americano. Anseia por novidades, por saber se o transplante correu bem e se o doente registou melhorias. Tânia sabe que a família do recetor já contactou o IPST e que quando passar o período de risco enviará uma carta. Enquanto espera, vai tomar a dianteira e escrever um postal para enviar quando for à próxima consulta de seguimento do dador. Serão mais páginas no livro cinzento que vai crescendo com o entusiasmo de quem dá e a gratidão de quem recebe.