Crise política: o país segue dentro de momentos

Um orçamento chumbado e uma queda do Governo precipitaram um cenário imprevisível. A palavra está do lado dos portugueses. Mas o futuro é difícil de adivinhar. Numa coisa todos estão certos: a Esquerda perde mais do que a Direita. E, se o resultado das eleições mantiver o Parlamento dividido, Portugal vai ter de aprender a governar em minoria, uma tendência em toda a Europa. Até lá, a “bazuca” leva um abanão e as medidas anunciadas para 2022 ficam em águas de bacalhau.

O país até podia prever que esta legislatura, num Parlamento fragmentado, não durasse os quatro anos, mas certamente não esperava uma crise política em pandemia. Um volte-face à esquerda, numa geringonça desgastada, ao som de votos de pesar, trouxe um abanão. Bloco de Esquerda e PCP bateram o pé. E nem os movimentos de Marcelo Rebelo de Sousa nos bastidores surtiram efeito. O Orçamento do Estado para 2022 foi chumbado e a queda do Governo já anunciada chegou. Mas a incerteza em que o país mergulha em plena crise pandémica e económica não agrada ao Chefe de Estado, de todo. Nos últimos dias, nos contactos entre Belém e São Bento, foi ficando claro que o primeiro-ministro estava pronto para ir a eleições. Assim será. Como diz Marcelo, há um lado positivo: “Devolve-se a palavra aos portugueses”.

O filme da dissolução do Parlamento não é novidade para um país que já viveu cenário semelhante em 2004 com Santana Lopes. Só que, desta vez, Portugal preparava-se para entrar em velocidade de cruzeiro na retoma económica do pós-pandemia. Tudo foi interrompido. Carrega-se no botão da “pausa” nos anseios. Afinal, como é que se perspetiva o futuro? António Costa Pinto, politólogo, descomplica: “O futuro é simples. Vamos ter eleições antecipadas”. Mas assume que as atitudes eleitorais dos portugueses são de incerteza. “Em princípio, os partidos à Esquerda não saem favorecidos, porque em parte serão responsabilizados pela inexistência de acordos que tinham sido encarados positivamente pelo seu eleitorado.” Já a Direita, “muito embora este cenário tenha encontrado os partidos em eleições internas, dificultando a constituição imediata de coligações pré-eleitorais, tudo leva a crer que terá uma subida”.

Depende também de quem será a liderança no PSD, num frente a frente entre o atual líder, Rui Rio, e Paulo Rangel. O próprio calendário eleitoral pode ter influência no tempo que a Oposição tem para se organizar. E isso mesmo já motivou atritos entre Marcelo e Rio, que considerou inaceitável o presidente da República ter reunido com Rangel sobre este assunto.

Acordos para governar

Uma coisa é sabida, numa conjuntura de incerteza, a fluidez eleitoral aumenta. E se as urnas voltarem a ditar um governo minoritário – cenário provável -, a história não se vai repetir? “Se o PS ganhar, não sei o que vai acontecer. Em 2015, também ninguém previa que existissem acordos à Esquerda. Parece-me viável que os partidos de Esquerda se entendam depois de haver eleições, porque vão depender de as alternativas serem eventualmente à Direita.” E, mesmo nesse cenário, Costa Pinto duvida que se vá para além dos acordos parlamentares. Já no caso de a Direita vencer, diz, há mais probabilidade de coligações governamentais, com pastas partilhadas. “Não vejo qualquer problema numa coligação do PSD com a Iniciativa Liberal, por exemplo.” E até o admite com o Chega, tal como aconteceu nos Açores.

José Fontes, também politólogo, tem opinião diferente. Afinal, se a Esquerda não se entendeu agora, não crê que se vá entender depois. “Se o PS vencer, vai apresentar um orçamento diferente? Teria que haver uma tal capacidade de inovar no discurso que só Freud conseguiria explicar. António Costa escolheu o caminho que lhe vai dificultar o próximo caminhar. E ele próprio fechou a porta ao PSD.” Ainda assim, assume o especialista, antecipar o futuro é “muito difícil”, porque “o eleitorado tem capacidade de nos surpreender” e porque ainda não se sabe quem vai disputar eleições no PSD e no CDS. As sondagens, depois da eleição de Carlos Moedas em Lisboa contra todas as previsões, estão “em crise”. “Até ao fim, ninguém vai saber.”

Na quarta-feira, António Costa saiu do Parlamento ao lado de todos os ministros. O Orçamento do Estado para 2022 tinha acabado de ser reprovado
(Foto: Patrícia de Melo Moreira/AFP)

Só parece ter uma certeza: o crescimento da extrema-direita. “O Chega vai crescer, não tenho dúvida nenhuma. Uma população frágil, que não percebe o fenómeno das migrações, dos refugiados, uma crise económica a somar dificuldades, tudo isso permite que o Chega tenha margem para recolher votos.”

Minorias já são regra na Europa

Daqui até às eleições, o tempo político é longo. E enquanto os analistas não arriscam já dar como certo um novo Governo minoritário, no meio do pântano da crise, os exemplos do resto da Europa parecem ir todos nesse sentido. Basta olhar para a Bulgária, que vai para as terceiras eleições legislativas antecipadas neste ano, já que nenhum partido consegue obter a maioria ou coligação parlamentar. Ou para a Alemanha, onde a chanceler Angela Merkel, que está de saída, ainda se mantém em funções enquanto se engendram várias hipóteses de governos de coligação depois de, a 26 de setembro, nenhum partido ter conquistado a maioria absoluta.

Mas os exemplos já em prática florescem. Na Bélgica, onde sete partidos se aliaram para agarrar no leme do país depois de quase dois anos de bloqueio político. Em Itália, onde Mario Draghi governa com seis forças políticas, da Direita à Esquerda, desde o início do ano. Na Finlândia, onde a mais nova primeira-ministra do Mundo se coligou com quatro partidos no final de 2019. Na Dinamarca ou na Irlanda, onde, à semelhança de Portugal, os governos são suportados por acordos parlamentares. Ou até na vizinha Espanha, onde após duas eleições em 2019, o PSOE de Pedro Sánchez conseguiu o ansiado acordo político de coligação em 2020.

A tendência parece evidente. Aliás, na União Europeia, só há três governos maioritários (Hungria, Malta e Grécia). E se os resultados, em Portugal, nas eleições antecipadas, mantiverem o Parlamento dividido, as dificuldades de governação vão continuar.

A imprevisibilidade dos eleitores nas crises

Só que os eleitores são imprevisíveis em períodos de crise. “Não sabemos em que sentido vão reagir. O contexto frágil da pandemia, a crise energética que está a mexer muito com as pessoas, tudo isso vai pesar até às eleições”, aponta João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política na Universidade do Minho. Mesmo que a ida às urnas aconteça a breve trecho, em meados de janeiro, “há um tempo de quase três meses até lá e muita coisa pode acontecer, nomeadamente o agravamento da crise pandémica que pode fazer mudar o sentido de voto”.

No exercício da adivinhação, os eleitores tendem “a penalizar os protagonistas da crise”. “Para a maior parte das pessoas a crise política não é bem-vinda, é sentida como uma fragilização da sua própria situação pessoal. Porque, apesar de tudo, o orçamento trazia algumas melhorias para a sua vida, nas pensões, nos salários.”

PRR e duodécimos: como se vai gerir?

Melhorias que levaram um travão. Pelo menos nos próximos meses, até haver novo Governo e orçamento aprovado, as finanças públicas vão obedecer ao regime de duodécimos. Quer isto dizer que o orçamento anterior continua em vigor e o Governo só pode executar, a cada mês, um duodécimo do total da despesa executada em 2021. O que significa menos 5823 milhões de euros do que aquilo que estava previsto para o próximo ano em despesa. E a tão prometida “bazuca”, o famoso Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que augurava um empurrão à economia, fica em causa? “Os objetivos ficam um bocadinho tocados. Mas parece-me que há, em todo o caso, condições de execução e de aplicação do PRR”, defende José Reis, economista, que defende que o orçamento “tinha uma estrutura mais adequada à execução do PRR, designadamente com as novas medidas, mas os limites técnicos podem ser controlados”.

Sem novo orçamento, o que fica em causa é a comparticipação nacional nos fundos do PRR. Não se poderá fazer tudo o que estava planeado, porque há áreas previstas no PRR que não estavam inscritas no último orçamento. Ainda assim, uma boa parte dos projetos pode ir avançando. “É apenas ajustar a comparticipação nacional à lógica dos duodécimos. E nem sequer é toda a comparticipação. Temos margens de gestão.” Contudo, o economista não olha para a questão só do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista político. “Bem ou mal, estávamos a lançar uma lógica global de recuperação da economia e de reorganização. Com intervenção no investimento, infraestruturação do país, habitação, saúde. E estas circunstâncias significam uma travagem, a meu ver desnecessária, que se cria na sociedade e na economia.”

O também economista João Cerejeira tem uma visão mais negativa sobre a gestão do PRR em duodécimos. “Vamos estar a repetir o orçamento do ano anterior. E para 2022 o que estava previsto era um crescimento muito acentuado do investimento público, justificado pela comparticipação nacional do PRR. Torna-se praticamente impossível fazer a gestão tal como estava previsto.” Ou seja, “se vamos ter o mesmo montante de orçamento para investimento público, não há margem para aumentar na execução”.

Cerejeira ainda olha mais para a frente: “Se houver mudança de Governo e alteração de decisões, a execução vai ser ainda mais atrasada.” Numa perspetiva mais prática, sugere que uma série de concursos públicos, “financiados pelo PRR e inscritos no OE 2022, não podem avançar se o orçamento não é aprovado”. “Não é só a questão do dinheiro, é todo o processo do lançamento do aviso, apresentação dos projetos, contratualização pública, que será adiado. Não havendo orçamento, a execução do PRR vai estender-se no tempo.”

Pelo caminho, as medidas anunciadas no OE 2022, do aumento das pensões às mudanças nos escalões do IRS, caem por terra. “Podiam depender de algumas margens que houvesse no orçamento, mas é claro que isso não vai acontecer”, acredita José Reis. Mesmo com um orçamento de 2021 que até teve mais despesa devido à pandemia, o que dá margem à governação, não há milagres. “De facto, foi um orçamento de ir cuidar do país, não foi um qualquer. Mas se há áreas como a saúde em que houve mais despesa, outras há, como a habitação, em que não será assim.”

A incógnita parece pairar em todos os campos. Do resultado imprevisível nas eleições antecipadas à governação em duodécimos, o país vai suster a respiração durante os próximos tempos. Resta saber se vai ganhar fôlego para o que vem depois.