Valter Hugo Mãe

Água


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Como podemos, pois, privatizar o acesso à água? Como podemos normalizar o acesso a um elemento sem o qual não se vive e que o Planeta conserva num desafio cada vez maior?

O Universo não inventou esse copo de água exclusivamente para a sua sede. Esse elemento que não é vivo mas é símbolo absoluto da vida e existe há milhões de anos. Ele é o camaleão perfeito que se faz de todas as formas e de todos os seres. Esse copo de água que lhe acode a sede já foi uma infinidade de corpos, sim, inanimados ou não. Já foi a humidade de uma parede ou o leito de um rio, caiu das nuvens tantas vezes quantas abrimos e fechamos olhos, já foi de uma planta e de um bicho, já foi de alguém. Ao beber, leva à boca um património do Mundo que inclui a graça limpa de ter sido parte do corpo de alguém. A vastidão de água que vemos é também o lugar onde verdadeiramente se juntam todos os mortos. Essencial lugar onde restam porque é também onde se funda a vida que chega e a que chegará. Quando olhámos a vastidão de água vemos toda a vida futura, que a usará para ser inelutavelmente.

Acho incrivelmente poético que possamos abeirar a praia e encarar o mar como nosso imenso povo. Todos os povos e todas as espécies. Bocado de tudo quanto haverá de respirar.

Que ainda não tenhamos pleno respeito e plena consciência da importância de manter a água limpa, apta à vida, é uma falha grave que acontece em espíritos suicidas. A humanidade corre em folia suicida. Enquanto multidão, agimos como se soubéssemos muito pouco, não porque não o saibamos mas porque repudiamos o que sabemos. Estamos num tempo que parece fazer gala da opção por boicotar a ciência, como se a estupidez quisesse vingar-se do brio da ciência, do esforço que ela implica, da ética a que ela obriga. Parece haver uma necessidade de desobrigação. O que é invariavelmente um salto para a desresponsabilização e para o abismo.

Que outra coisa seria se a água inscrevesse a memória dos seres passados. Se guardasse prova concreta de ter sido a frescura no olhar de Platão, o sangue que o coração de Cristo espraiou, o beijo de Luís Vaz de Camões a Violante Andrade. Tão outra coisa seria se esse copo de água lhe pudesse explicar por onde passou, que corpos compôs, o que testemunhou do Mundo, por dentro e por fora dos sentimentos, dos instintos, da paciência interminável das plantas. Seria tão mais imediata a necessidade da pureza, da manutenção sem possível mácula, para que nos assista à sede sem medo e sem culpa, como quem verdadeiramente faz o Mundo passar por seu organismo num gesto que nos concede a vida.

Como podemos, pois, privatizar o acesso à água? Como podemos normalizar o acesso a um elemento sem o qual não se vive e que o Planeta conserva num desafio cada vez maior? Não seria de robustecer o sentido contrário? Garantir que a água é um direito fundamental e que a sua conservação e o seu acesso será defendido incondicionalmente para todos, por todos, para hoje e para que se garanta a existência do futuro?

Vivo numa cidade recordista no absurdo da privatização do acesso à água. Os custos da água aqui só são superados pelo que vai em Santo Tirso e na Trofa (entregues, ao que parece, à mesma empresa). Depois, só depois, está o país inteiro. Como se não houvesse poesia para Vila do Conde. Muito menos poesia do que seria de supor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)