A vida depois da reforma

Domingos Cardoso, 74 anos, vai ao ginásio, cava o quintal, faz revisões de textos, já escreveu quatro livros. Alberto Inácio, 80 anos, anda de bicicleta, vai à pesca, dá uma mão num clube desportivo. Noémia Cruz Ribau, 74 anos, dança e faz teatro, trata do jardim e dos animais. Maria Augusta e António Espassandim, casados há 51 anos, frequentam atividades numa universidade sénior, passeios de estudo, tertúlias, saraus. Ninguém consegue ficar parado. Fecha-se uma porta, abrem-se muitas janelas.

Domingos Cardoso desenhou o quintal num papel, dividiu tudo à sua maneira, tal e qual como queria. São 30 metros de comprimento por dez de largura de terra nas traseiras de casa, em Ílhavo. “É o tamanho ideal para mim”, garante. Pegou na enxada e plantou árvores de fruto, as macieiras estão carregadinhas, este ano os dióspiros e as ameixas nasceram com fartura, tem couves, tomates, feijão, nabos, favas, semeou brócolos para o Natal. “Cavo, semeio, planto, tenho tido muita fruta que dou às vizinhas, é preferível dar que apodrecer.” Filho de lavradores, ainda antes de ler e escrever já sabia usar as ferramentas do campo.

Na cozinha, tem um método. Faz sopa uma vez por semana e congela, quando assa lombo, corta-o em fatias que guarda em tupperwares. “Faço tudo em casa, não tenho quem faça, não tenho quem atrapalhe. Tenho de ser organizado, se não faço, mais ninguém faz.” Vive sozinho, tem 74 anos, é divorciado, tem dois filhos. Deu aulas de Química e Física durante 36 anos e meio, andou com a casa às costas por Leiria, Santo Tirso, Porto, Guimarães, Gondomar e Porto novamente em final de carreira. Está reformado há 14 anos. “Foi a melhor coisa que me aconteceu. Nos dois últimos anos, os garotos começavam a apagar as coisas boas que tinha na cabeça”, desabafa. Tornou-se escritor. “A reforma é um recomeço, fecha-se um ciclo e abre-se outro.”

Alberto Inácio da Silva, 80 anos, reformado há 17, casado, um filho e uma filha, um neto, mora na Parede, Cascais, e também não consegue estar parado, está sempre “a inventar”. É pau para toda a obra no Clube Desportivo de Carcavelos. Ou é uma janela que avaria e que é preciso dar um jeito, ou uma fechadura que não abre e que é para arranjar, ou cortar ervas que crescem onde não devem no estádio. Agora anda ocupado a fazer bancos em ferro para os atletas. “Andamos a tentar modernizar os balneários”, revela. Sempre à disposição no clube onde passa as tardes e algumas manhãs ao fim de semana. Quando é preciso também conduz a carrinha. “Sou como um pronto-socorro”, diz, com graça.

A vida ligada ao desporto, como jogador e treinador nos tempos livres, não se apaga da memória, e a habilidade profissional, primeiro como polidor de metais, depois como serralheiro de manutenção da maquinaria da antiga Tudor, dá jeito para os serviços que vai prestando voluntariamente. Por amor à camisola. “E assim se vai matando o tempo.” Uma ou duas vezes por semana, vai de bicicleta de casa para o clube, do clube para casa, dois quilómetros, um quarto de hora a pedalar. “Para esticar um bocadinho os músculos.” Às vezes, estica a rota e dá uma volta por Oeiras ou um passeio de Caxias à Cruz Quebrada, pela marginal. Gosta de caminhar e de ir até à praia ver o mar ou de ir ter com colegas ao café para a conversa. “Ficamos ali a cavaquear um bocadinho, fala-se de tudo e de mais alguma coisa. Vou pela marginal até Carcavelos, até Oeiras, dou uma voltinha, é assim que se mata o tempo.” Não é de viagens ou de excursões para aqui e para acolá. “Gosto mais de sair a pé e de dar uma voltinha.”

Alberto Inácio da Silva não é homem de sofá, nem de televisão e novelas. Vai à praia ver o mar, anda de bicicleta, faz caminhadas e, de vez em quando, encontra-se com os colegas para conversar
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Noémia Cruz Ribau irradia energia e alegria, boa disposição, toda ela fala, olho azul vivo, a camisola a condizer com os brincos discretos e com os sapatos com um pouco de salto, calças claras, batom que realça ligeiramente a cor dos lábios. “Não vou à roupa de boutique que é cara, sei coordenar coisas que estão para aí. Estou sempre pronta para sair e o que tenho está ok.” É uma mulher simples e bonita, 74 anos, casada, mãe-galinha de três rapazes crescidos, tem três netos e três netas. Cabelos brancos, assumidamente brancos há anos, pintou-os uma única vez de louro, em casa. “O cabelo ficou amarelo, fiquei como um pintainho”, ri-se. Nunca mais.

Noémia cuida do quintal e do jardim, dos coelhos e das galinhas, dos afazeres domésticos, da comida e das roupas. Fora de casa, as atividades do grupo da terceira idade ocupam-lhe o tempo da reforma e fazem-lhe bem. Foi figurante numa novela gravada na Gafanha da Nazaré, era mãe de um pescador, fez uma passagem de modelos num clube de elite, e esteve, por duas vezes, no Museu Marítimo de Ílhavo a contar a história do seu pai pescador que se perdeu num bote no mar, na pesca do bacalhau. Tinha apenas cinco anos e não esquece a dor, os gritos de desespero da mãe, aquele luto que lhe marca a vida. Não há muito tempo, com um vestido cor-de-rosa brilhante, peruca com penas na cabeça, fez parte, com as suas colegas, de uma dança de um teatro musical no programa Got Talent, primeiro na Alfândega do Porto, depois no Centro Cultural de Lisboa. O grupo convenceu à primeira, voltou a dançar, mas não passou à fase seguinte. “Um palco, para mim, é uma liberdade doida. Quanto estou num palco, sou livre como um pássaro e como uma borboleta das mais lindas do Mundo.” A cultura é uma terapia. “Não quero morrer estúpida.”

Nas últimas semanas, Maria Augusta, de 77 anos, e António Espassandim, de 79, andam à volta das inscrições na Universidade Sénior de Santa Maria da Feira depois de uma paragem de ano e meio por causa da pandemia. Telefonemas, mensagens, contactos. O casal não pára para retomar mais um ano com disciplinas e atividades. Costumam ser mais de 80 a frequentar as aulas de segunda a sexta, além das iniciativas que se vão organizando.

“Temos feito coisas do arco da velha”, refere Maria Augusta. Declamações de poesia, espetáculos, visitas de estudo, viagens, saraus, palestras. Participaram no documentário “O cometa da República” como figurantes, Maria Augusta vendedeira, António cientista. No mês passado, fizeram uma viagem aos Açores por seis ilhas. Depois da reforma, Maria Augusta aprendeu a nadar, aprendeu pintura a óleo sobre tela, astronomia. António continua ligado ao escutismo e a várias associações da terra, dá umas aulas de Inglês na Universidade Sénior, textos simples com teatro e fantoches à mistura. E ajuda no que é necessário para os dias da universidade.

Maria Augusta foi professora primária, reformou-se aos 54 anos. Pouco depois, entrou na universidade sénior que estava a dar os primeiros passos e nunca mais saiu, é presidente há 20 anos, continua a dar o corpo ao manifesto. “Tive uma vida fértil e não fiquei parada no tempo. Tem sido um tempo feliz a fazer novos amigos, a poder continuar a criar e a dar as minhas sugestões”, conta. António Espassandim também foi professor primário durante 16 anos, depois deu aulas de Inglês até se reformar, aos 60. “Tem sido uma vida muito ocupada”, afirma. Têm duas filhas e duas netas.

“O nosso tempo é agora”

Quando apanha uma maré a jeito, Alberto Inácio vai à pesca, calça as barbatanas, coloca os óculos de mergulho, e para lá do Guincho, a seguir à Boca do Inferno, tenta apanhar polvos – foram quatro na última pescaria, sete na anterior. “Já não tenho paciência para andar com a cana.” A pescaria é sempre bem-vinda lá em casa. “Em vez de ir à praça comprar, cozinha-se ou mete-se no congelador.”

Alberto Inácio entrou na escola aos nove anos, tinha de ajudar em casa, fez a quarta classe, começou a trabalhar aos 14, esteve no Ultramar, casou quando chegou. Trabalho e mais trabalho, futebol nas horas livres. Depois da reforma, aos 63 anos, os dias podiam ficar longos e vazios. Não é o caso. Pelas oito e meia da manhã, já está fora da cama. “A dormir não acontece nada, empata a gente, estamos a perder alguma coisa. Como não gosto de estar parado na cama, levanto-me e arranjo qualquer coisa para passar o tempo.” Não é dado ao sofá e à televisão, vê alguns programas da vida animal no canal Odisseia, programas da manhã e novelas dão-lhe sono. Por isso, faz-se à estrada, a pé, de bicicleta, ou de carro. Parado é que não.

Domingos Cardoso levanta-se pelas oito, vai ao ginásio quatro vezes por semana, faz alongamentos, fortalece as costas, estica as pernas. Não quer ficar torto e não consegue estar quieto. Lê tudo o que lhe aparece à frente, faz revisões de textos e apresentações de livros. “Faço de leitor-tipo, se não percebo, outras pessoas não vão entender. Revejo textos gratuitamente, por desporto.” Frequenta aulas de Comunicação na Academia de Saberes de Aveiro e participa numa comunidade de leitores da Biblioteca Municipal de Ílhavo, analisando livros no conteúdo e na forma. Duas ocupações que estão suspensas devido à pandemia. Agora anda ocupado a escrever as suas memórias, tem um volume considerável de páginas, não arrisca data de publicação. O importante é estar bem de cabeça e saudosismo não é consigo. “O nosso tempo já passou. A gente tem saudades não é do tempo, é do que éramos e da idade que tínhamos. O nosso tempo é agora.” Nada de mesas de café ou bancos de jardim. “Irrita-me ver os que se sentam a ver passar o tempo. Fico doente.”

Noémia Cruz Ribau confessa que a cultura é uma terapia e que pisar um palco é uma liberdade imensa
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Noémia engata conversa atrás de conversa numa manhã a descair para a hora de almoço no pátio de casa na Gafanha da Encarnação, em Ílhavo. Fala do amor imenso à família, da saudade dos beijos e abraços durante a pandemia, do jeito para a cozinha, pouco sal, muita verdura do seu quintal, ovos das suas galinhas, e sai tudo bem, e da sua vida de emigrante no Canadá. Partiu com 24 anos, depois de casar, voltou com 49, com os três filhos. O amor a Portugal sempre falou mais alto, não troca a sua terra por nada. “Dizia sempre ao meu marido para voltarmos para a Gafanha, é tudo plano, não há neve, temos rio de água salgada, temos mar. Construímos a casa devagarinho, foi preciso poupar muito, não há árvores que deem notas no Canadá.” Tudo conquistado a pulso, uma vida que não dá nada de mão beijada. No Canadá, trabalhou uns tempos numa fábrica de costura, depois a passar a ferro e em limpezas em casas de família. Em 1995, voltaram de vez e foi uma felicidade imensa. “Viemos para cá com a caixa de cartão e a tralha toda.” Continuou a fazer o que sabia e o que podia, reformou-se aos 66 anos. Com os filhos criados, sem netos perto para levar à escola, fez e faz muita coisa, zumba, piscina, teatro, assiste a palestras, participa em convívios.

Maria Augusta confessa que os primeiros meses de reforma não foram fáceis. No primeiro setembro em que não deu aulas chorou. “Toda uma vida que tinha tido, e que tinha gostado de exercer, parava ali. Fazer projetos, brincar com as crianças, ensinar o que sabia, propor jogos. De repente, tudo isso voou”, recorda. “E a finitude não é coisa que nos agrade substancialmente.” Teve a felicidade de ter a sua primeira neta no colo e depressa percebeu que os dias não seriam vazios e que as horas não iriam custar a passar. “Gosto de ir a concertos, ver peças de teatro. Gosto especialmente de morder a vida, principalmente no que me apresenta de atrativo, como uma prova de vinhos. Gosto de explorar literatura, poesia, de descobrir maneiras diferentes de dizer a mesma coisa, gosto de brincar com as palavras.”

Domingos Cardoso, que se formou em Engenharia Química, é um homem virado para as letras, tornou-se escritor depois da reforma, voltou à Chousa-Velha, comprou casa a poucos metros da casa onde nasceu, recuperou amizades. Escreveu quatro livros, dois de poesia, um dos quais para celebrar os seus 70 anos, um outro sobre o significado das peças do cemitério de Ílhavo, o último, “Palabras co bento no leba”, lançado há três anos, recupera expressões antigas e exclusivas dos ilhavenses. Passou cerca de cinco anos a pesquisar, metido em bibliotecas e arquivos, mergulhado em jornais, livros, atas. E, nos dias que correm, não é homem de meias-palavras. “Não tenho pachorra para aturar certas coisas.” A estupidez, a ignorância, a falta de respeito, a má educação.

A família, os amigos, o quintal, os passeios

Noémia fala da sua rotina e da cartilagem moída pelos anos. “Acordo e penso, meu Deus, está tudo bem, consigo estar de pé, estou ótima. Lavo a cara com água fria, ponho creme na cara para proteger do sol, e batom todos os dias a condizer com a roupa. Sou uma velha moderna.” E com as emoções à flor da pele, quando é para rir é para rir, quando é para chorar é para chorar. Adora estar com a juventude, lidar com os jovens, sente que tem um dom natural para criar empatia, que exerce de peito e alma. “Sou feliz com o que tenho. A vida é muito linda, mas temos de saber andar nela”, observa. Anda ansiosa por retomar as visitas aos mais velhos e às crianças abandonadas.

Domingos Cardoso anda a arrumar gavetas em casa, a ver o que por lá tem, encontrou pratos e quadros de azulejos que vai pendurando nas paredes. Decidiu que vai chamar alguns amigos para que escolham livros que se amontoam nos armários. Quer tratar da papelada de legalização da velha mota do pai para oferecê-la a um filho. Volta e meia vai ao Brasil onde tem família, tem várias viagens pelo estrangeiro, tem o sonho de ir à Índia.

Domingos Cardoso voltou à terra natal, comprou casa, recuperou amizades, e vai restaurar a antiga mota do pai
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Noémia também tem um sonho. Ou vários. “Gostava de fazer uma sessão fotográfica, com trajes próprios para a idade, para que vejam que o ser velho não conta, para que vejam que temos uma vida longa. E gostava que o nosso país, como é tão bom, investisse mais na justiça para punir os criminosos e valorizar os que sofrem com tudo isto.” A falta de limpeza nas ruas mexe consigo, fica triste com o lixo que não se arruma.

Nesta fase da vida, para Alberto Inácio, o mais importante são as pessoas, a família, o convívio. Os últimos tempos não foram fáceis. “Com a pandemia tem sido uma tristeza muito grande, mexe comigo, sinto-me triste, parece que andámos na rua clandestinamente, foi muito complicado”, confessa. Agora, é preciso, diz, “matar essa ausência”. Chateia-o o vandalismo por dá cá aquela palha, “os estragos por maldade”, aborrece-se com a palavra cota, é expressão que lhe arranha os ouvidos. De vez em quando, vê futebol. “Sossegadinho, sem grandes alaridos.” E se amanhã o convidassem para fazer parte de uma equipa técnica de futebol, nem pestanejava. “Ia já.”

Maria Augusta e António Espassandim querem reabrir a Universidade Sénior no início desta semana. A retoma das atividades está por dias, as salas estão a ser arejadas, há brilho no olhar do casal. “Em Literatura, História e História de Arte tem sido uma aprendizagem constante”, assegura Maria Augusta. António quer aprender a nadar. A família continua a ocupar o papel principal. “Valorizo muito a família, procurando estar a par dos passos de cada um, fazendo-me presente nos momentos de cada um. Também valorizo a chamada família alargada, toda a gente que passa e se cruza no caminho, a quem posso sorrir, dar um ombro, estender a mão, ou aproveitar uma lição”, comenta Maria Augusta. Ela não gosta de falta de compreensão, ele de desilusões. “À medida que o tempo vai passando, vamos ficando mais sensíveis. A cada dia que passa, vamos ficando com mais sede de viver bem e de viver mais”, diz Maria Augusta.

Quando o tempo permite, Domingos Cardoso vai para o quintal, pega na enxada, coloca o boné por causa do sol, leva o telemóvel por precaução. O que valoriza nesta etapa da vida? “O companheirismo, o sentir-me integrado e ser aceite”, responde. “Gosto de conviver, de encontrar pessoas das minhas relações, de ser útil, de proporcionar alegria às pessoas. Viemos cá para facilitar a vida uns aos outros.” Há seis anos que se veste de Pai Natal para ir a escolas das redondezas e arrepia-se quando se lembra das crianças que estremecem na sua presença porque acreditam no homem vestido de vermelho e de barbas brancas. O Natal passado não foi assim, por causa do vírus, mas, este ano, espera voltar a vestir a fatiota. Até já comprou umas botas novas.