Valter Hugo Mãe

A Ilha da Madeira


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Aprendo muito com a dona Luísa e com a sua convicção. É desarmada diante da fé e eu já só admiro quem tem fé sem medo de a ter.

O romance em que trabalho agora tem a sua acção na ilha da Madeira, ali por Campanário, numa daquelas encostas que parecem feitas para poleiros de pássaros e gatos sem vertigens. Como de costume, escrevo por avanços falsos, versões que uso enquanto ensaio e que valem para ir medindo meu interesse pela história, testando o que pode dar à linguagem e à imaginação. Julgo que anotei as primeiras frases para este livro em 2010, talvez antes. Depois, experimentei umas dezenas de páginas. Uma e outra vez. Com os anos, a personagem principal deixou de ser jovem, passou a ser junto com uma senhora, esqueceu sua raiva, adquiriu uma calma admirável. Reparo agora como essa figura maturou pelos anos até se tornar na personagem que me faz sentido, que me falta. Aquela que quero na minha obra, inscrita para sempre na minha memória.

Foi a ilha da Madeira que se me impôs. A oportunidade de viajar para os seus lugares, o espanto de seus declives, aumentado muito por minhas sempre mais violentas vertigens, acabou por me trazer o incómodo com que faço livros. Corro invariavelmente pelo desafio e sei que importam apenas os textos que começam por me ser impossíveis. Eu só quero escrever aquilo que começo por não saber escrever. E só sei estar na Madeira sem certezas, impressionado, tão maravilhado quanto atormentado com efectivamente ver ao fundo, pisar tão alto, as casas serem varandas para a minha compulsão bizarra de saltar.

Um dia, a dona Luísa exclamou: tanto chão Nosso Senhor aqui plantou. Era sobre as vistas do alto de Guimarães, mas eu pensei nas vistas da casa dela onde Deus mais fez água do que chão. Pensei: tanta água que Nosso Senhor aqui plantou. Não esqueço a frase nem a exclamação, o que significou na voz, a genuína contemplação de uma maravilha, como a clara gratidão pela grandeza do Criador.

Aprendo muito com a dona Luísa e com a sua convicção. É desarmada diante da fé e eu já só admiro quem tem fé sem medo de a ter. E também só admiro quem professa o esplendor humano e o prova nos gestos, porque em gatinhos no Facebook não se haverá de pagar os preços do Paraíso. A dona Luísa diz o que sabe dizer e é rigorosa como S. Bento, que manda exercer o silêncio. Por isso, quando diz só diz o essencial ou até menos. Estamos à sua volta a descortinar o tamanho de cada palavra e assim deve ser. Quando fala, não é pouco, porque o mínimo que declara é vasto de sua verdade, é autêntico e serve, sim, para a universal fome humana. Por isso, na Madeira da dona Luísa, está a Literatura de que eu dependo. A Literatura em que vejo a oportunidade de continuar a deitar mão do que começa por ser impossível. O que já é puro fascínio, lugar de descoberta e apaziguamento para tanto quanto evidentemente nos escapa.

Penso agora que vejo a dona Luísa como prova de paz. Uma mulher sem ímpeto de resposta. Há anos que a sinto em outra sapiência: a de aceitar sua vulnerabilidade e caminhar sem sobressalto para o gigantismo de Deus. Não pode haver bravura maior. Acreditar em alguma coisa, viver segundo aquilo em que se acredita.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)