Rui Cardoso Martins

A encomenda armadilhada

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A quase tragédia da reputação de Pedrinho das alfândegas aproximava-se do epílogo. Finalmente, o julgamento e o possível restabelecimento do seu bom-nome. Duas mulheres, dois homens no banco dos réus. Três deles em silêncio, mas uma mulher levantou-se, disse ser licenciada em Relações Internacionais. O caso, por assim dizer, era uma variante das relações internacionais – alguém colocou em Lisboa dez placas de haxixe e resina de canábis, 903 gramas, dentro de uma caixa de cereais destinada à Guiné -, mas a mulher negou responsabilidades:

– As acusações são falsas. O que foi dito, que foi entregue uma encomenda através da minha residência, é falso, falso.

– Diz aqui que dissimulou as placas de haxixe em…

– Falso!

– … caixas de cereais.

– Falso! Queria só frisar que vi a encomenda pela primeira vez na Polícia Judiciária. Eu disponibilizei-me a fazer o teste para encontrarem as minhas impressões digitais e isso. Não tenho nada a ver com isso, nem quero ter.

Quando entrou a principal testemunha, apresentou-se como Pedrinho e disse que os quatro eram seus clientes. O Ministério Público começou o interrogatório:

– Parece que foi encontrada uma embalagem de estupefaciente, que foi interceptada no aeroporto. Conte-nos lá o que sabe.

– Eu vou sempre… de vez em quando, vou ao aeroporto despachar encomendas para a Guiné-Bissau. Há pessoas que às vezes não sabem fazer isso. A menina foi entregar uma embalagem de cereais e mais alguma roupa. Eu vou fazer os despachos no terminal de carga. Sou um bom cliente do terminal de carga. Mas desde aquela data, nunca mais. Hoje não faço, já não despacho encomendas!

Fazia isso com os seus dois irmãos, numa loja de bairro. As pessoas vinham, pediam ajuda para mandar para Bissau, pagavam e ele tratava de tudo. A voz começou a destilar a injustiça do caso:

– Só que dentro da caixa de cereais, eles meteram outra coisa… O homem abriu a caixa, rasgou e encontrou aquilo!

– As placas de canábis.

– Eu nunca vi sequer aquilo!

A Polícia, cautelosa, decidiu esperar. Se há o envio de uma coisa e essa coisa não chega, alguém perguntará por ela. A Polícia à espera, Pedrinho também.

– Como eles lá em Bissau não encontraram a encomenda… Então a menina foi à loja reclamar da encomenda não ter sido entregue… E o senhor dela também andava a perguntar pela mesma encomenda.

Dois dias, três dias de perguntas e Pedrinho a fazer-se de desentendido. A Polícia tinha-lhe dado um telefone. Ele que ligasse quando lhe viessem perguntar mais uma.

– Falaram comigo e falaram com os meus irmãos. Até me ameaçaram.

– Mas ameaçaram porquê?

– Porque não tinham a encomenda. Eu dizia: a encomenda já foi. Depois perceberam que a Polícia é que tinha a encomenda e nunca mais perguntaram, desapareceram…

Mas a insídia, a conversa, já cobrara o seu imposto na alfândega da honra. Pedrinho fora o último a pegar na caixa de cereais armadilhada com canábis. Selou-a com fita-cola. Escreveu num livrinho o nome de quem enviava, e numa etiqueta o nome de quem a iria levantar à alfândega de Bissau.

Pedrinho estava agora confuso com os quatro réus atrás de si. Isto aconteceu antes da pandemia e agora estava a olhar para pessoas de máscara. Uma das mulheres tirou a máscara e ele trocou-lhe o nome, porque ela tinha um nome de baptismo, outro para os amigos e outro ainda no Facebook. Um dos homens baixou a máscara e acusou-o.

– Pois. Nunca me viste, pois não!

Pedrinho perdeu a ingenuidade sobre o seu serviço aos compatriotas.

– Nós vimos as roupas e vimos as caixas de cereais. Mas fomos enganados!… A coisa estava dentro dos próprios cereais, do saco de plástico fechado!

Foi o raio-X, foi um cão farejador? Último elo aparente desta redezinha de tráfico, Pedrinho sofreu por ser o primeiro suspeito.

– Alguém quis dar a volta ao Pedrinho! Eu sou digno e certo!

Pedrinho das alfândegas já não despacha.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)