Tradições de Natal à prova de covid

O Natal é o bacalhau e a Missa do Galo. A árvore e os presentes. A família à mesa e o velhote das barbas brancas. Mas também pode ser uma viagem a solo. Ou um passeio de motards. A mão estendida aos sem-abrigo e uma volta de bicicleta. Pode até ser bodyboard. Cinco histórias de hábitos natalícios que escapam à normalidade.

Mariana Andrade, 42 anos, farmacêutica, não sabe precisar que idade tinha quando o Natal como sempre o concebeu deixou de fazer sentido. Acha até que aconteceu gradualmente, como uma luz que vai desvanecendo. Sabe que naqueles velhinhos Natais de Celorico de Basto tudo fazia sentido. O mimo dos avós e a algazarra dos miúdos, um magote de tios e os foguetes, a mesa farta e a casa cheia. De gente pois, de afetos também. “Havia uma dimensão muito humana a agregar tudo isto.”

Entretanto perdeu os avós e com eles a tradição de Celorico. Ficou ela e os pais. Mais os irmãos. E lembra-se de ter Natais felizes ainda assim. Até que a mãe adoeceu. “Quando ela deixou de participar, grande parte do simbolismo perdeu-se.” O derradeiro golpe foi em 2017, com a morte da mãe. Foi aí que decidiu dar um novo sentido ao Natal. Fez as malas e foi para a Riviera Maya, no México. Só ela. “O meu pai não se opôs e sabia que não ficaria sozinho, porque os meus irmãos iam passar o Natal com ele.”

A princípio, foi mais para ver como era. “Na altura tive muita gente a perguntar-me se não me sentia sozinha, se não era estranho.” Não foi. Desforrou-se com muita praia e sol e com um jantar diferente. “Organizaram uma ceia de Natal numa gruta, com pessoas de imensas nacionalidades. Fiquei sentada ao pé de um suíço que também tinha viajado sozinho e somos amigos até hoje.” Também travou amizade com uma família argentina que ainda há uns meses, quando a pandemia começou, lhe ligou a perguntar se estava bem. E com uma colombiana que haveria de a convencer a passar o Natal seguinte no país dela (já lá vamos).

Nessa noite, Mariana ainda foi à Missa do Galo. Por sinal bem parecida com a nossa. “As pessoas também vestem a roupinha de comunhão e o padre também diz a missa a correr”, brinca. Só que lá havia um presépio vivo. E a igreja era voltada para a praia. E logo ao lado havia uma rua atafulhada de discotecas. No dia seguinte, tudo na praia, os nadadores-salvadores vestidos à Pai Natal, até renas de faz de conta estacionadas em plena areia, um Natal que voltou a ser ânimo e conforto.

A experiência foi de tal forma reconfortante que se fez tradição. Em 2018, graças à tal amizade feita naquela ceia natalícia na gruta, rumou à Colômbia, desta vez para um retiro de meditação. Um ano depois, seguiu para Cabo Verde. Também sozinha. “Tinha lá estado numas férias da Páscoa e visitado uma escola que estava em construção. Fiquei com o contacto da pessoa responsável pelo projeto e acabei por ir lá passar o Natal com os miúdos da instituição.” Ela e outros voluntários. Fizeram enfeites de Natal, prepararam iguarias da quadra típicas dos países de origem (Mariana fez rabanadas), acompanharam as crianças numa ida à praia. “Foi uma experiência que me tocou muito.”

“Quando a ideologia de família existe deve ser aproveitada, claro. Mas quando ela se perde, acho que só faz bem ir viver outras coisas”, assegura Mariana Andrade
(Foto: DR)

E em tempo de pandemia, a tradição é para manter? É, pois. Tanto que já se prepara para rumar a São Tomé e Príncipe, para mais uma escapadinha natalícia. A diferença é que, face aos condicionamentos que a covid impõe, terá de ir menos dias. E que este ano, pela primeira vez, vai com o namorado. “Enquanto puder irei. Normalmente por esta altura começo a sentir falta de praia e de mar, por isso escolho sempre destinos onde seja verão. Depois esta coisa que nós temos de ir para o shopping, fazer compras até à última. São tudo rituais de que não gosto.”

O hábito permite-lhe ainda escapar a uma certa obrigação de “felicidade forçada” que há muito lhe faz comichão. “Acho que é uma coisa muito portuguesa, isto de forçar as tradições familiares. Quando essa ideologia de família existe, deve ser aproveitada, claro. Mas, quando ela se perde, acho que só faz bem ir viver outras coisas.”

O pai Natal também é motard

Paulo Moreira Melícia, 50 anos, lembra-se que já em catraio sentia o coração bater descompassado por causa das motos. “O meu pai chegava do trabalho e a minha paixão era andar ali de volta dele e da mota.” Aos nove anos, um tio deixou-o conduzir uma pela primeira vez. Depois, aos 13, teve a primeira mota. Aos 16 fez a primeira corrida. Por esta altura, já a paixão se tinha feito amor para a vida. Daí até começar a organizar corridas foi uma questão de tempo.

Conclusão: desde 2004 que Paulo (e não só) assegura a realização da Extreme Lagares – prova que se realiza em Penafiel e integra o Campeonato do Mundo de hard enduro – e desde 2009 que tem um clube. Mais recentemente, uma escola. Com uma tal devoção, está bom de ver que nem o Natal é desculpa para arrumar a moto. Pelo contrário. Há largos anos que Paulo e os amigos não abdicam de pegar na fiel companheira bem cedo na manhã de 25 (pontualmente na de 24) para se fazerem à estrada.

“Nem sei dizer bem quando é que isto surgiu. Lembro-me de ser solteiro, há mais de 20 anos, e de já fazermos isto. Tanto no dia de Natal como no de Ano Novo. Às vezes com uma carga de sono brutal. Mas às oito horas lá estamos, prontos a arrancar. Vamos sempre cedinho senão não rende nada. Depois vamos almoçar a casa.” Começaram por ir descaracterizados, lembra. Depois, Paulo viu na Internet, não sabe bem onde, uns motards vestidos de Pai Natal e inspirou-se.

Agora, sempre que, naquele natalícia e retemperadora volta, partem de Gondomar rumo a Lagares (Penafiel), o gorro no capacete não pode faltar. O número de elementos é que vai variando. “Costumamos ser entre 10 e 15, mas também já fomos três ou quatro. Não é fixo, porque há sempre aqueles que vão passar o Natal fora. De qualquer forma mantemos sempre isto entre amigos. Porque se anunciarmos em vez de 10 pessoas aparecem 50.”

“Nem sei bem dizer quando é que surgiu. Lembro-me de ser solteiro, há mais de 20 anos, e de já fazermos isto”, reconhece Paulo Moreira Melícia
(Foto: Ivo Pereira/Global Imagens)

A tradição já lhes marca de tal forma o calendário que, assegura Paulo, nem a pandemia a vai beliscar. “Já está tudo combinado. Dia 25 juntamo-nos aqui às 8.30 horas. Como andamos sempre de mota, há distanciamento mais do que suficiente.” Além disso, compara o motard, aquela voltinha de Natal já é quase tão indispensável como o bacalhau na consoada. “E espero que seja para manter por muitos anos.”

O carro cheio e a mão estendida

A imagem não lhe sai da cabeça. Um casal jovem, mais um miúdo pequeno, só com a roupa que tinham colada ao corpo, todos eles desalento puro, frio, muito frio, a angústia de uma véspera de Natal vivida sem teto nem conforto, o ar cortante da Praça da República (Porto) a adensar-lhes o sofrimento. E o entusiasmo do pequeno quando os viu, a levarem comida e roupas.

Dinis Pais e Silva, industrial de Santa Maria da Feira, 52 anos, garante que é por momentos como este que, desde 2017, faz questão de se juntar à associação CASA na volta de Natal, religiosamente cumprida na noite de 24, com esse objetivo maior de levar comida e uma réstia de aconchego natalício aos sem-abrigo. Para Dinis, a tradição começou depois do divórcio. “Nessa altura andei-me a informar. Há sempre gente pior do que nós. Eu gosto de ajudar, sempre gostei. Já ofereci oito cadeiras de rodas a gente que me vai pedindo.”

“O Natal tem muito mais significado assim, a ajudar quem precisa. E não deixa de ser um Natal em família. É só uma família diferente”, garante Dinis Pais e Silva
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Desde então que, todos os anos, na noite de consoada, integra o grupo de voluntários que cozinha e distribui a ceia de Natal a quem perdeu o teto. A rotina já está bem entranhada. Logo depois de almoço, sai para ir levar uma porrada de coisas. Penca, batatas, ovos, bolo-rei, pão de ló. “Algumas destas coisas são os meus irmãos que me dão, outras compro.” Certo é que naquele dia sai sempre de casa com o carro bem cheio.

Depois, por volta das 17 horas, volta. Para ajudar na preparação da janta primeiro, para ser mais uma mão estendida na distribuição depois. Aos sem-abrigo levam o tradicional jantar de Natal (bacalhau, batata, penca e ovo), leite-creme, bolo-rei, pão, fruta. Mais o pequeno-almoço para a manhã seguinte. E cobertores. Um pedaço de esperança também.

E porque a pandemia não acalma a fome de quem vive sem nada – pelo contrário, tende a acentuá-la -, a tradição é, pois, para manter. E Dinis lá estará. Com a promessa de voltar sempre que puder. “O Natal tem muito mais significado assim. A ajudar quem precisa. E não deixa de ser um Natal em família. É só uma família diferente.”

Mais uma pedalada, mais uma rabanada

Para Alberto Silva, 56 anos, portuense de gema, o hábito de ir dar uma volta de bicicleta em pleno dia de Natal já se fez tradição há mais de quatro décadas. “O meu pai fazia isto com os amigos e eu logo com 10, 11 anos comecei a ir também.” Uma precocidade naturalmente explicada numa família que sempre teve o ciclismo cravado no ADN. O bisavô de Alberto já tinha a oficina de bicicletas que ele ainda hoje gere. O pai, além de trabalhar na oficina, foi ciclista profissional. Depois treinador.

Tanto que, com dois anos, Alberto, o filho, já andava confortavelmente instalado nos carros de apoio, a acompanhar provas de ciclismo. Não era difícil prever que também ele haveria de dar ciclista. Com cinco anos participou na primeira prova. “A Volta a Portugal em miniatura, em Espinho”, recorda. A correr mesmo, federado e tudo, foi a partir dos 11 anos. Depois, entre os 21 e os 25, foi profissional. E só não deu seguimento por causa da maldita queda que lhe esmagou duas vértebras da coluna.

“O meu pai já fazia isto com os amigos e eu logo com 10, 11 anos comecei a ir. (…) Agora o meu filho também vem connosco”, conta Alberto Silva
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Nunca abdicou da sua voltinha nas duas rodas, ainda assim. Às terças e quintas, por regra. E aos fins de semana. O Natal não poderia ser exceção. Muito menos quando o hábito já estava enraizado na família. “Quando comecei a ir andar de bicicleta no dia de Natal, ainda com o meu pai, não se via quase ninguém. Hoje já se vê mais gente a fazer o mesmo.” Pelo meio, Alberto passou a ser o responsável pela organização do passeio. Uma dúzia de pessoas, mais coisa menos coisa, um grupo de bons amigos, um momento em família também. “O meu filho de 19 anos, que já é ciclista, também vem connosco.”

E umas horas que permitem exorcizar eventuais pecados cometidos na véspera. “Permite-nos desgastar um bocado os excessos do dia 24. Assim sempre podemos comer mais uma rabanada”, ironiza. Quanto a este ano, à covid e aos cuidados que ela impõe, Alberto admite que ainda estão à espera de saber as restrições que virão a ser impostas durante esses dias para perceberem exatamente o que poderão fazer. “A ideia é irmos na mesma, mas provavelmente só uma meia dúzia de pessoas, que sabemos que são pessoas cuidadosas. E se calhar evitar o café a meio da manhã.”

Natal na crista da onda

No caso de João Amorim, espinhense de 22 anos, o Natal nem é Natal se no dia 25 não der o salto dele à praia. Para ver como está o mar. Para estar com a malta. Para se aventurar. O cenário parece decalcado de uns anos para os outros. Gente na água, surf e bodyboard para quem queira ver, gorros de Pai Natal aqui e ali. Ele estreou-se há uns quatro anos. Na altura fazia surf – que, por sinal, aprendeu a praticar sozinho, quando o estágio de um curso profissional de marketing o conduziu a uma escola da modalidade.

Entretanto, começou a andar com a “malta do surf”. E já tinham por hábito fazer umas brincadeiras de quando em vez. “No Carnaval, por exemplo, o meu grupo de amigos costumava ir sempre para Ovar. Íamos fantasiados e fantasiávamos as pranchas também.” Foi essa a inspiração para propor ao grupo uma surfada de Natal com um toque a condizer. “Surgiu então a ideia de irmos surfar no dia 25 com algum acessório natalício.”

“Eu vou. E sei que vai haver mais gente a ir. Gostava de ver este hábito fazer-se uma tradição duradoura em Espinho”, afiança João Amorim
(Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Depois, João trocou o surf pelo bodyboard. Confessa que nem sempre entrou na água a 25, mas nunca abdicou de ir à praia nesse dia. E este ano, que já tem material próprio completo, também não abdicará de dedicar umas horas ao “body” em pleno Natal. Mesmo que a companhia ainda seja algo incerta. “Neste momento ainda não temos nada combinado, por causa da pandemia. Mas eu vou. E sei que vai haver mais gente a aparecer, porque há sempre.”

Para João Amorim, além do gozo que lhe dá poder “festejar o Natal dentro de água”, o momento é também uma espécie de manobra de marketing subtil. “Nesse dia há muitos pais a irem passear com os filhos e acredito que verem-nos ali, com os gorros de Natal e tudo, seja um incentivo para que os miúdos um dia também venham a querer fazer surf. Ou bodyboard.” O jovem praticante da modalidade esboça, por isso, um desejo, em jeito de pedido ao Pai Natal. “Gostava de ver este hábito fazer-se uma tradição duradoura em Espinho.”