Rui Cardoso Martins

Positivo e negativo

(Ilustração: João Vasco Correia)

– Senhor Samuel, é o único que está presente, o senhor compreendeu a sentença?

Samuel, “jovem delinquente” com futuro. Mas bom, ou mau? Com Ailton, Edson 1, Edson 2, Bruno, foi há dois anos detido em flagrante por “tráfico de menor gravidade”. Quatro menores e um jovem adulto gravitando ao fim da tarde, como estrela de cinco pontas, um McDonald’s nas ruelas da Lisboa alta. Método: droga no bolso de um, dinheiro no bolso de outro, uma faca de corte de haxixe, este par de olhos só para vigiar as ruas – “olhando em todas as direcções” – , estas mãos só para recolher o dinheiro, estas outras mãos para fornecer o haxixe. Mas há polícias à espera no perímetro da estrada e dos prédios antigos, escondidos e fotografando os movimentos dos cinco rapazes, e dos seus clientes, como naturalistas estudam na floresta uma alcateia durante a caça.

Só Samuel está hoje a ouvir a sentença. Só um par de olhos pretos observa por cima da máscara. As trancinhas apertadas pelos fios cirúrgicos, ao redor das orelhas, a t-shirt de marca, as calças de marca, os ténis de marca, toda a figura do jovem é de marca. Parece calmo. Samuel só deseja que o último sermão da juíza acabe. Talvez o leve a sério, talvez não.

– Compreendeu a sentença? O senhor vai condenado numa pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução sujeita a regime de prova. Consiste num plano de reinserção social, que é elaborado pela Direcção-Geral de Serviços Prisionais. O senhor vai oportunamente ser chamado para comparecer para lhe ser explicado esse plano. Tem de cumprir porque é uma condição de suspensão da pena, porque se o senhor não cumprir essa condição e se o fizer de forma culposa e grave, essa suspensão pode-lhe ser revogada e aí o senhor teria que cumprir a pena de 12 meses em regime efectivo…

A voz da juíza amacia, subindo a colina da esperança:

– Mas o tribunal crê, com base na sua postura, na atitude que tem tido, que vai cumprir aquilo que lhe for ditado, e espera-se que esta pena contribua para que o senhor não volte a envolver-se em factos deste género. Compreendeu, senhor Samuel?

– Compreendi.

– Porque se não, o seu futuro vai ser… [e por três segundos a juíza procurou a palavra e os olhos de Samuel esperaram, como que observando uma mosca na sala]… negativo. É o mínimo que eu posso dizer. O senhor a envolver-se neste tipo de factos, com este tipo de companhia, a praticar estes actos, muito provavelmente acabará a cumprir uma pena de prisão. E é fácil que isso aconteça, compreendeu?

– Compreendi.

– Muito bem. Então já pode sair.

A juíza, pelo exemplo de Samuel, falava do seu contrário: de Ailton, o desaparecido. Absolvera-o de posse de arma branca, porque a faca tinha dez centímetros, o limite exacto da legalidade, mas Ailton fizera contas à vida e pisgara-se para o estrangeiro. Condenações anteriores por roubo, por furto, por condução ilegal, faltava-lhe o tráfico no currículo. Aparentemente, fixou-se no Luxemburgo, fazendo de lá constar que encontrou trabalho e está plenamente integrado na sociedade.

– Manifestamente, ausentou-se para fugir à responsabilidade, disse a juíza, condenando-o a pena efectiva.

Fica-te pelo Luxemburgo, Ailton, aqui terás garantida quarentena de dois anos e meio na prisão.

Para cada um dos jovens, um futuro ou positivo ou negativo, como disse a juíza. O tráfico era um contínuo, um esquema pensado, um modus operandi (como se diz das quadrilhas) – vigilância, vagar, depois velocidade – não era coisa inventada de repente à volta da casa de hambúrgueres. E, como qualquer negócio, o abastecimento da droga era feito num traficante maior. Onde andará esse tubarão criador de “jovens delinquentes”? Um dia se fará a história e o balanço do que mudou no tráfico de rua com o coronavírus e o confinamento. Positivo ou negativo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)