O sonho americano e a saudade portuguesa

Andam cá e lá, entre a Murtosa, uma das vilas mais americanas do país, e os Estados Unidos. Partiram em busca de uma vida melhor, subiram a pulso, regressam à terra. As opiniões tocam-se: Trump não é político, Biden é frágil.

Henrique Branco e Maria Júlia nasceram na Murtosa e nunca se tinham cruzado por ali. Conheceram-se do outro lado do Atlântico, a tantos quilómetros dali. Ela partiu para Newark aos dez anos. Ele emigrou aos 17, primeiro para a Venezuela, depois para os Estados Unidos. Estão casados há 50 anos, têm quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas, 13 netos, todos nascidos e criados nos EUA.

“Sentimo-nos bem aqui, a raiz é aqui, lá é bom para trabalhar”, diz Maria Júlia. “É um país maravilhoso, chega-se só com a roupa do corpo, trabalha-se e em pouco tempo a vida é outra. Uma pessoa pode ser o que quiser. O sonho americano existe mesmo”, acrescenta.

Ele tem 73 anos, ela 69. Estão reformados. Ela foi bancária, primeiro no atendimento aos clientes, depois supervisora. Ele começou pela construção civil na Venezuela, nos EUA foram 24 anos na joalharia, a soldar peças de ouro, mais 25 como mecânico de bombas de água e filtros de ar. Há sete anos que trocam as voltas, antes viviam nos EUA e vinham de férias à Murtosa, agora vivem na Murtosa e passam férias com os filhos nos EUA. Tencionam partir ainda este mês, se a pandemia piorar, esperarão pela primavera.

A venda da casa e a mudança de condado não lhe permitem votar este ano. “Trump nunca foi político, não sabe falar como político, se tivesse calma no falar podia ser um grande político. Não tem sido mau, a economia cresceu, a bolsa subiu, o desemprego diminuiu”, comenta Henrique Branco. Tem dúvidas que Trump volte a ganhar. “Os media é que mandam.” E Biden tem vários handicaps, “não tem muita força”, e Kamala Harris, candidata a vice-presidente “é muito liberal.” “Se os EUA virarem à esquerda, o Mundo sofre”, avisa. A economia da potência mundial desmoronara-se, na sua opinião. Maria Júlia não esquece a surpresa mundial na eleição de Trump, mas percebe-a pelo cansaço da política, pelas promessas não cumpridas na altura.

Henrique e Maria Júlia estão casados há 50 anos, têm quatro filhos e 13 netos, todos nascidos e criados nos EUA

A casa em tons rosa, com estátuas espalhadas pelo jardim, a bandeira dos EUA, tornou-se a base depois da reforma. Maria Júlia sente-se uma felizarda, por ter dois amores, dois países onde viver.

Murtosa, entre a ria e o mar, é uma das vilas mais americanas do país, é geminada com Newark. No final do século passado, viviam em Newark tantos murtoseiros como os que residiam na vila. E os símbolos não enganam. Há bandeiras americanas nos beirais de muitas casas.

No jardim, Isaías Matos, 71 anos, e Luísa Matos, 73 anos, têm a bandeira americana e a portuguesa lado a lado, espanta-espíritos, estátuas, a Nossa Senhora. O primeiro piso é à moda americana, tudo trazido de lá, da mobília aos materiais de construção. A cozinha de serviço, quando não está frio, é de estilo português com o mapa dos EUA na parede. Portugal cabe em New Jersey.

Isaías e Luísa nasceram a três quilómetros um do outro, na Murtosa, e também não se conheceram na terra natal. Foi em Kearny, New Jersey, num bailarico português. Ele pediu-lhe para dançar, ela fez-se difícil, reencontraram-se num piquenique, namoraram, casaram-se em 1969. Três anos depois voltaram à Murtosa, construíram uma casa a pulso. Viveram em várias cidades, agora tem casa em Wallington. Têm uma filha de 50 anos e um filho de 44, e três netos, todos americanos.

Isaías emigrou aos 14 anos para França, trabalhou na construção civil e numa fábrica de bombons, aos 17 aterrou nos EUA, andou com um primo na renovação de casas, depois arranjou emprego numa empresa que construía autoestradas e pontes. Luísa saiu aos 18 anos em busca de uma vida melhor, sem nada ganhar por cá na plantação de arroz e na limpeza de casas. Nos EUA, trabalhou numa fábrica de carteiras de senhora. Desde 2004 que andam cá e lá, as saudades controlam-se com as chamadas por face time todos os dias.

“Tudo à rasquinha, tudo difícil”

Isaías e Luísa têm dupla nacionalidade, muito mais vida lá do que cá, e aquele sotaque que não desaparece. Já votaram pelo correio. “Trump é o melhor presidente dos EUA. Não sabe falar como um político, mas sabe manter a ordem. Se não fosse ele, o país tinha sido entregue à Rússia ou à China”, diz ele. “Eu sei que na Europa ninguém quer ouvir falar dele, eu sei que tudo o que passa é culpa do Trump. Mas se Biden ganha, o Mundo está perdido e o país fica pior do que a Venezuela.” A mulher concorda. “Se Biden ganha, entrega a América a outras pessoas.” O casal é favorável às medidas para travar a imigração ilegal, à construção do muro, o não sustentar quem não trabalha. Isaías Matos sabe que a Europa tem dificuldade em perceber tudo isso, é preciso lá estar para sentir. “Se Trump não continua, isso vai abalar o Mundo.”

Maria Glória Fonseca não liga muito à política, vai deitando o olho aos debates, acha-os críticos, sente Trump a aproximar-se de Biden. “Sou democrata. Aquele senhor está fora de prazo, o outro devia ser mais jovem e ter mais ideias.” Dona Lola, como é conhecida na Murtosa, tem 75 anos, e não quer votar. “Não gosto nada de falar de política.” No final do mês, espera estar novamente em Newark para onde emigrou há 54 anos. A viagem tem dia marcado, à espera tem a filha Glória e a neta Nicole e vários sobrinhos que a tratam por “mommy”. Um dia, quem sabe, regresse de vez para a casa onde nasceu, que remodelou e encheu de fotografias da sua gente e de quadros que bordou a ponto de cruz.

No final do mês, Maria Glória Fonseca espera estar novamente em Newark, para onde emigrou há 54 anos

A irmã já tinha emigrado para os Estados Unidos, os pais não queriam que os filhos rapazes fossem para o Ultramar, partiram. Chorou quando chegou a Newark. “Era tudo à rasquinha, tudo muito difícil”, recorda. Veio à Murtosa casar-se em 1969, voltou aos EUA, oito meses depois ficou viúva. Estava grávida de 28 dias. Tornou-se mulher rija, trabalhou na costura durante 16 anos, a empresa fechou, foi a última a sair. Passou para uma empresa de comidas para aviões e hospitais. Esteve lá 14 anos, a firma fechou, voltou a ser a última a sair. “Discutia mais com os encarregados do que eles comigo, tinha sempre as minhas razões, nunca me deixei ficar.” Abriu uma boutique de roupa, mais oito anos de trabalho. Refez a vida, encontrou um novo companheiro, também português emigrado nos EUA. Desde 1982 que vem uma vez por ano a Portugal, tem um grupo de amigas, anda envolvida na criação de um centro de dia, é tesoureira da capela mortuária, das suas mãos saem as recordações de tecido ou de lã para a festa do emigrante da Murtosa. “Sou um misto de portuguesa e americana”, confessa. Dois sentimentos difíceis de separar.