Nas ruas, em manifestações, em festejos, mas também online. Podemos fugir mas não nos podemos esconder. Este sentimento de repulsa acompanha-nos no dia a dia. Apesar de parecer estranho, cumpre uma função e é intrínseco ao ser humano.
Há pouco mais de duas semanas, as redes sociais voltaram a ser palco de comentários agressivos e com os sentimentos à flor da pele. A história repete-se e não é original. Desde asneiras à incitação à violência, o discurso não poupa os destinatários. Neste caso, os proprietários de dois abrigos de animais em Santo Tirso, um dos quais incendiou e causou a morte e ferimentos graves a dezenas de bichos. Não demorou a que as fotos dos envolvidos fossem divulgadas, criaram-se grupos que têm como membros todos aqueles que ficaram chocados com a situação e foi lançada uma petição, clamando por justiça pela suposta falta de prestação de auxílio àqueles animais, que ultrapassou, em poucos dias, 184 mil assinaturas. Possivelmente, à data de publicação desta edição, o discurso de ódio já terá outros alvos.
As imagens de agressões e de violência chegam a qualquer hora em qualquer lugar. Mas será que existe mais ódio do que noutros tempos? Ou estamos mais atentos? Porque é que temos esta sensação de estar rodeados de violência, sentimentos negativos, impaciência, insulto fácil e agressividade? O escritor alemão Hermann Hesse dizia que “quando se odeia alguém é porque se odeia alguma coisa nesse que faz parte de si. O que não faz parte de nós não nos perturba”.
Pedro Vaz Santos, psicólogo clínico e terapeuta familiar da Clínica PIN, em Lisboa e no Porto, ajuda a clarificar as ideias: “Para a psicologia, o conceito do ódio é um sentimento e não uma emoção básica. Nós temos um conjunto de emoções, como a raiva, o medo, a alegria e o nojo, que são muito intrínsecas do ponto de vista biológico dos mamíferos superiores”. O Mundo está a mudar e é hoje mais complexo: “Numa sociedade em que nada é totalmente mau ou totalmente bom e onde, de vez em quando, temos muitos graus de incerteza para nos encontrarmos, o discurso de ódio devolve-nos uma sensação de segurança sobre a realidade”.
Nunca tivemos tantas fontes de informação em simultâneo. Então, de que forma nos conseguimos organizar? “Os sentimentos ajudam-nos emocionalmente e o ódio tem a função de não deixar as pessoas perdidas no meio da informação. Mas tem consequências”, alerta Pedro Vaz Santos. É comum a todas as gerações e a todas as classes socioeconómicas.
Vivemos numa espécie de “mundo mau” ao nosso redor: nos filmes, nas séries e nos noticiários parece que se está permanentemente em guerra, defende Pedro Rodrigues Costa, investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho. Daqui a sentimentos negativos e iras, que depois passam para o social como ódios a imitar, xenofobias, preconceitos, vai um pequeno e rápido passo.
A crescente onda de reações violentas às notícias publicadas online foi um dos indícios que levou o investigador a estudar esta dinâmica e perceber que a crítica dispara em todos os sentidos. “O ódio está do outro lado do ecrã”, constata. O estudo teve como objetivo identificar este sentimento no Facebook e analisar as conversações nas publicações das notícias mais partilhadas, mais comentadas e com mais gostos em Portugal nos anos 2017, 2018 e 2019. Foram analisados 350 comentários, 913 conversações e 23959 palavras nas páginas dos principais jornais generalistas. Para o final deste ano, ou início de 2021, está prevista a publicação do estudo numa revista científica. “As pessoas desconfiam constantemente das empresas e instituições, dos governos e da classe política em geral, dos dirigentes de futebol e da justiça portuguesa, instituições que antes não eram questionadas. Por um lado, é a democracia a funcionar. Por outro, é a própria democracia em risco, na medida em que são as instituições que a sustentam (justiça, informação, governos democráticos, partidos, etc.) que são postas em causa. Ainda por cima, publicamente.” Basta um smartphone no bolso.
A primeira conclusão da investigação é “a forte presença do ódio nas dinâmicas de associação e de dissociação a ideias, opiniões ou dilemas expostos nas notícias. Cada notícia está a gerar cada vez mais desconfiança, seja em relação aos meios de comunicação, como em relação às instituições da democracia”, salienta o investigador do CECS. Num segundo plano, nas notícias mais partilhadas, mais comentadas e com mais gostos, destacam-se temas como a pena/comoção (18%), o futebol (12%), a política (10,67%) e a religião (8%). Nessas, cerca de um terço das notícias revela associação direta ou indireta ao ódio, sendo as mais comentadas as que estabelecem maior relação (16,7%). Os maiores índices de ódio encontram-se nos temas de futebol ou nas notícias de crime e de agressão.
A investigação revela ainda que os discursos de ódio são facilmente replicáveis por outros, tanto no que respeita aos argumentos como ao tipo de insultos utilizados. As palavras “vergonha” e “corruptos” são as mais evidentes. “A lógica de homofilia [pessoas com interesses e estratos sociais semelhantes] tende a reforçar posições e a gerar imitações de ideias e pensamentos, e o fenómeno da clusterização [grupos que se confrontam] tende a formar potenciais gatilhos para os insultos e, por conseguinte, para os discursos de ódio antigrupos”, avisa Pedro Rodrigues Costa.
O efeito bola de neve
O volume das manifestações de ódio aumentou de forma marcante. Mas não só. Destaque também “para a tolerância que existe e uma espécie de normalização do ódio nas suas várias formas”, sustenta Susana Salgado, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenadora do projeto de investigação Hate, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Este programa, que conta com uma equipa internacional e multidisciplinar, estuda o teor e o tom das mensagens publicadas no contexto de decisões políticas, em várias redes sociais, incluindo o Twitter, e comentários a notícias, em vários países e em três línguas. O Hate analisa ainda as atitudes e os comportamentos das pessoas face a estas mensagens.
A investigadora denota que as redes sociais têm vindo a tornar-se num espaço de propagação de mensagens de ódio e, muitas vezes, até de incentivo, pela forma como funcionam e pelo facto de não haver controlo e responsabilização pela publicação deste tipo de conteúdos. “A justificação dos responsáveis tem sido a de que a liberdade de expressão é o valor mais importante a preservar. Mais recentemente, e em parte por causa da pressão de algumas grandes empresas que ameaçaram retirar a publicidade, algumas destas plataformas, como o Twitter ou o Reddit, resolveram começar a remover alguns destes conteúdos.”
Também o Governo de Portugal anunciou no início de julho um projeto que tem como objetivo monitorizar o discurso do ódio nas redes sociais. Mariana Vieira da Silva, ministra de Estado e da Presidência, referiu, no Parlamento, que a ideia passa por identificar autores, monitorizar processos de queixas, analisar as mensagens e a forma de propagação deste discurso. Ainda não foi divulgado muito mais sobre as ações a implementar, mas Susana Salgado considera que seria útil se o Governo “fizesse um levantamento da investigação que já está a decorrer para rentabilizar o orçamento que dispõe para o efeito e evitar a duplicação de estudos”.
A cobertura mediática e a disseminação nas redes sociais provocam, sem dúvida, “um efeito de amplificação destas mensagens”, que faz com que exista a perceção de que temos atualmente mais casos de ódio. “Mas dependendo do tipo de informação que é veiculado pode inclusive aumentar a gravidade desses casos e criar novos. Ou seja, quando a informação é veiculada também pode existir um efeito de bola de neve”, acrescenta a investigadora, porque pode motivar respostas em algumas pessoas e grupos que, não tendo à partida um comportamento instigador, sentem que têm de responder ou reagir de alguma forma. Pedro Rodrigues Costa concorda com a ideia de amplificação do ódio nas redes sociais. “Os próprios algoritmos privilegiam os assuntos mais comentados e partilhados e esses tendem para o fantástico, o sensacional e o negativo.”
Apesar de também não possuir muita informação sobre o projeto, o investigador do CECS não tem dúvidas sobre as horas de formação que pais, professores e alunos necessitam de ter sobre os diversos fenómenos presentes na cibercultura em geral, do cyberbullying ao ódio e à xenofobia, e chegando a crimes de chantagem através de nudes ou até o incentivo à autoflagelação (como no caso dos jogos da “Baleia Azul” ou “Momo”). “Numa das minhas sessões de esclarecimento junto de escolas, promovida pelo CECS, percebi um enorme nível de desconhecimento sobre esta realidade das emoções e dos relacionamentos nas redes sociais e com as redes sociais. Isto tem de ser urgentemente trabalhado”, sublinha.
Há estudos que demonstram que tendem a ser mais frequentes os discursos de ódio centrados no que as pessoas são do que aqueles que se focam no que as pessoas fazem. “Por isso se tem associado este tipo de demonstrações às formas de opinião (política e outras) baseadas na identidade, ou seja, quando as pessoas adotam determinadas posições com base na sua religião, raça, género, etc.” Depois, o sentimento forte de pertença e lealdade a um grupo, relacionado com fenómenos extremos de clubismo no futebol “também contribui para legitimar o discurso de ódio em relação ao ‘outro’, especialmente quando esse outro é visto como uma ameaça”, adianta Susana Salgado.
A cultura e o contexto económico, com recursos mais ou menos abundantes, também influenciam a produção e disseminação de discursos de ódio. A política também está muito associada a este sentimento. “Há políticos e partidos que baseiam o seu discurso precisamente na exclusão do outro e do que é diferente, e cuja retórica ganha força ao instigar uma parte da sociedade contra a outra, seja por motivos económicos, ideológicos, raciais, ou culturais e religiosos. Isto resulta numa espécie de normalização do ódio que, em alguns casos, é mesmo a base do argumento político. Esta polarização afeta a predisposição para a tolerância e para o compromisso e incentiva o ódio do outro”, conclui a investigadora.
O medo como resposta
“O discurso de ódio é alimentado emocionalmente pelo medo, a nossa emoção de base”, frisa o psicólogo clínico Pedro Vaz Santos. E quando assim é, diz a experiência que o perigo é resvalar “para discursos odiosos e para situações de grande polarização”. E depois, quanto mais pessoas estiverem no mesmo grupo, mais a teoria de ódio sai validada. Do ponto de vista meramente psicológico, Pedro Vaz Santos considera que se a pessoa tem um sentimento de ódio tão persistente que não consegue ter outros sentimentos, poderá ter de recorrer a ajuda especializada.