O Natal dos que cuidam da saúde

A família em casa, o trabalho no hospital, filhos que se habituam às ausências. Hugo, Vilma, José, Cátia, Andrea, Sérgio, Joana, Elisa, Luísa. E tantos, tantos outros. Um ano difícil, dias complexos de digerir, uma quadra festiva sem os seus. Heróis? O reconhecimento é diário, não temporário. Eles estão lá. Sempre estiveram.

Francisca faz hoje um ano de vida. No ano passado, o Natal juntou a família, do lado do pai, de Bragança, e do lado da mãe, de Lamego, com mais alegria com a bebé acabada de nascer. Este não será igual. No dia 25, Francisca será “trocada” à porta do Hospital de São João, no Porto. A mãe sai do carro e vai trabalhar, o pai sai do hospital e leva-a para casa. Não há outra maneira. Vilma Silva é enfermeira e entra às 14.30 horas, Hugo Fernandes é enfermeiro e sai por essa hora. Vilma chegará a casa depois das oito da noite, no dia anterior, 24, trabalha das 8 às 14 horas, Hugo está de folga. A consoada será a três, cozinhada a dois, bacalhau e polvo, alguns doces natalícios. Francisca ainda não tem noção do que é o Natal, mas tem andado ao redor da árvore em explorações de bebé. “Tentamos ter o mínimo para a Francisca perceber o que é o Natal”, diz Hugo. “É importante preservarmos as nossas tradições”, acrescenta Vilma.

Hugo Fernandes é enfermeiro há 12 anos, Vilma Silva há 14, estão no São João há três, antes disso estiveram em Lisboa, Vilma no Curry Cabral, Hugo no Santa Maria. “Trabalhei sempre no Natal ou na passagem de ano, agora as coisas complicam-se”, comenta Hugo. É pai, é Natal, é a pandemia, não vê os pais desde setembro. “Este ano, tendo em conta a situação, achamos mais prudente não passar o Natal com a família. É mais um esforço.” Não é o desejável, sem a família reunida, faltam os abraços, os beijos, os mimos.

Hugo fala em dias difíceis no seu serviço, nos cuidados intensivos. Cansaço, dias complexos de digerir, “acréscimo brutal” de casos de um momento para o outro, “dar resposta a tudo num curto espaço de tempo.” “Pessoas da nossa idade, até mais novas, a lutarem pela vida”, descreve. E a distância dos seus. “A privação de estar com a família e com os amigos é muito penosa.”

Na primeira vaga, Vilma estava de licença de maternidade, em casa com Francisca, na segunda, a filha foi para a creche. “A pandemia, o stresse de ir trabalhar, o receio de transportar o vírus”, conta. Turnos desencontrados, família longe, entradas e saídas à porta do hospital com Francisca no carro, por vezes, acordá-la às sete da manhã.

Francisca, filha de um casal de enfermeiros, faz hoje um ano. No dia de Natal, será “trocada” à porta do Hospital de São João. A mãe sai do carro e vai trabalhar, o pai sai do hospital e leva-a para casa
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Não muito longe, numa outra casa, há um pai que não consoará com a família. José Coelho, técnico de radiologia da equipa de urgência do serviço de imagiologia do Hospital de Santo António, Porto, tem turno marcado para o dia 24, entra às oito da noite, sai às oito da manhã. A dez minutos do hospital, sem trânsito, sairá ao final da tarde para uma escala de 12 horas. “Corta sempre um bocadinho na alma”, confessa. O Natal, lá em casa, é vivido intensamente, com os dois filhos pequenos: Diogo com seis, Mariana com dois. A árvore foi decorada mais cedo do que costume, em meados de novembro, o presépio do Advento está montado, a cada semana junta-se uma nova figura, no dia 24, será o menino Jesus. É uma tradição instituída pela família católica. Diogo já sabe que este ano, ao contrário de outros, não verá o Pai Natal em carne e osso. “Já avisámos que o Pai Natal está em teletrabalho”, revela José, que, se tiver possibilidade, fará uma curta videochamada para ver a família.

Cátia Ribeiro, também técnica da radioterapia há 15 anos e há 13 no Santo António, fica com os filhos. Talvez se sentem à mesa mais cedo, pelas sete da tarde. “Ainda não sabemos bem o que vamos fazer.”

O volume de trabalho aumentou. “O número de casos diários começou a disparar”, assinala José Coelho, na saúde há 20 anos. Turnos exigentes e todo o contexto. “Ficamos mais cansados, mais cansados mentalmente para lidar com muitas outras coisas. É preciso muito trabalho de equipa em casa, não só no hospital.” Cátia concorda. Os últimos tempos não têm sido fáceis, acaba de chegar do trabalho, esteve numa enfermaria com infetados com covid, doentes entubados, ventilados. “Há muitos medos, muitas incertezas, há casos de crianças e jovens em situações graves, é preocupante. Temos de viver um dia de cada vez, evitar multidões, cumprir as regras, e deixar que os miúdos façam a vida normal. Há dias mais fáceis do que outros.” Sapatos na rua, desinfetar mãos, banhos à primeira oportunidade, os desinfetantes tornaram-se parte das rotinas. E, aos filhos, garantem que tudo fazem para “deixar os bichos no hospital”.

Tempo de esforço numa realidade cinematográfica

No dia 25, Joana Damásio, neurologista, sairá cedo de casa para o Hospital de Santo António. É dia de trabalho das 8.30 às 18.30 horas nas urgências. Em casa, as duas filhas Clara e Helena, de cinco e um ano, ficam com o pai, também médico. É o quarto Natal a trabalhar. “Acabamos por nos habituar, a primeira vez custa mais, e mais um bocadinho com filhos.” Ossos do ofício. A consoada será a quatro, com a família nuclear, ainda mais caseira do que o habitual, sem pais nem avós. A árvore está feita, a filha mais velha sabe que a época é especial, que há prendas e o Pai Natal.

O trabalho tem sido exigente. Consultas à distância, consultas com máscaras, mais esforço para se fazer entender e compreender com o rosto quase tapado, menos toque. “Restrições, consultas não presenciais, doentes internados e que não têm visitas. São tempos de grande esforço e de grande reinvenção”, sublinha Joana Damásio, neurologista há 15 anos no Santo António. Tempos estranhos, estes. “É uma realidade quase cinematográfica e todas as pessoas ficam assustadas.” E quando tudo começou, estava a amamentar a filha mais nova, as dúvidas sobre o leite materno, a falta de máscaras no mercado para uso pessoal. “Foi uma fase bastante angustiante”, recorda.

Joana Damásio passará o dia de Natal a trabalhar. As duas filhas ficarão com o pai, também médico
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Sérgio Lopes, enfermeiro no bloco operatório do Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, trabalha na noite do dia 24, das oito da noite às oito da manhã do dia 25. É o terceiro Natal, já foram seis passagens de ano. Andrea Silva, enfermeira nos cuidados intensivos da mesma unidade, pediu uma troca de turnos para que a família estivesse junta nesse dia, com os dois filhos: Beatriz, de 16 anos, e Tiago, de 11. “Estarei de descanso, se não nem sequer nos víamos”, realça. Andrea volta ao hospital no dia 26, na passagem de ano estão os dois ao serviço. Um Natal a quatro, não com a restante família como era habitual. Tem de ser. Tudo gerido a dois. Durante o ensino à distância, conseguiram turnos que permitiram estar sempre um em casa com os filhos. “Percebemos que não ia ser um mês ou dois”, salienta Sérgio. As rotinas, banho antes de sair do hospital, sapatos à porta de casa, muda de roupas, outro banho, e finalmente com os filhos. Explicaram-lhes o que se estava a passar, que “não seria grave se seguissem as regras necessárias”.

Sérgio não deixará escapar uma fatia de bolo-rei e uma rabanada durante a tarde, levará taparuere com bacalhau para aquecer no micro-ondas no hospital para manter o espírito, e está decidido que algumas prendas só são abertas no dia 25, com os quatro em casa. “Não é uma situação nova, os nossos filhos estão habituados desde que nasceram, não é por ser Natal, Páscoa, fins de semana, sábado ou domingo”, adianta Sérgio. Quantas vezes, na troca de turnos, iam com o pai e vinham com a mãe, e vice-versa, até à porta do hospital. São filhos de enfermeiros, habituaram-se às rotinas, mas Tiago lembra-se daquele dia de Natal em que mãe e pai estavam a trabalhar. “Houve um ano em que fomos a tarde toda para casa dos avós”, evoca.

Andrea está no São Sebastião há 22 anos, Sérgio há 20. O combate ao vírus tem sido intenso, quatro unidades de cuidados intensivos, três dedicadas à covid. Andrea está lá. No início, o desconhecido, que vírus era este, fato completo antivírus, turnos de quatro e seis horas sem poder ir à casa de banho, sem beber água. “No início, era aquela adrenalina, neste momento, o cansaço começa a dar de si, o stresse psicológico”, desfia. “De repente, temos doentes que não podem ver os familiares, que estão entubados, que, neste momento, estão sozinhos.”

Andrea Silva trocou de turno para poder juntar a família no dia 25. O marido, Sérgio Lopes, também enfermeiro, e os filhos, Beatriz e Tiago, já estão habituados a essas contrariedades
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Andrea está na linha da frente, Sérgio ligeiramente mais atrás. No bloco, apesar de tudo, é mais tranquilo, riscos mais calculados, depois há as cirurgias que atrasaram, os urgentes que são cada vez mais urgentes, as vagas, as camas disponíveis. Nervos à flor da pele, a pedagogia constante dos cuidados a ter, a esperança na vacina.

O desgaste e o cansaço que se acumula

Elisa Tomé, médica internista no Hospital de Bragança, já fez vários natais e passagens de ano durante os 14 anos de profissão. Este ano, trabalha 24 horas, entre as oito da manhã do dia 24 e as oito da manhã do dia 25, sairá uma hora ou mais depois, certamente, como tem acontecido, porque um doente não pode esperar para o dia seguinte, porque amanhã nunca se sabe, porque não consegue sair com trabalho por fazer. Na ceia de Natal, os seus pais jantam sozinhos. “É mais do que evidente que é um dia especial para todos, que toda a gente gosta de estar com a família.” A sua ausência sente-se mais porque são poucos à mesa. As tradições, essas, são tranquilas, a árvore foi feita há poucos dias, as prendas trocam-se quando tiver de ser, não há obrigação de ser naquele dia.

A copa da urgência do hospital, no dia 24, não estará como de costume, não será possível aquele tempo de convívio numa pausa do trabalho. Será o Natal possível. No hospital é incerto, quem lá vai nestes dias é porque é grave. “Não costumam ser dias muito fáceis”, reconhece a especialista em medicina interna. E este ano é atípico. No início, esteve nos cuidados intensivos, agora está no internamento covid, faz urgências, faz consultas. Tirou apenas duas semanas de férias e o cansaço sente-se. “A população está farta, farta da pandemia, farta das regras. Para nós, tem sido um desgaste, quer físico, quer psicológico, que não acaba. E o cansaço acumula-se.”

A médica Elisa Tomé vai trabalhar das oito da manhã do dia 24 às oito da manhã do dia 25
(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)

“A segunda vaga foi mais violenta do que a primeira”, garante. E depois há aquele dia em que se sente que não é possível tratar todos os doentes, não se ensina a escolher quem tratar e quem não tratar, e depois tudo se resolve.

Na linha da frente, Elisa Tomé tinha receio de transportar o vírus, os pais isolaram-se na casa da aldeia durante quase dois meses, para não haver contacto. “A possibilidade de trazer o vírus, de transmitir a infeção aos que mais gostamos, mexe muito connosco”, admite.

Luísa Almeirante, assistente operacional nas urgências do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, há 27 anos no mesmo serviço, terá uma ceia um pouco apressada, talvez bacalhau com todos, talvez bacalhau à lagareiro, arroz-doce, rabanadas, filhoses, com o marido e o filho João, de 18 anos, e a filha Catarina, de 24. Será bem diferente do Natal passado em casa da cunhada com nove à mesa, agora será cada um em sua casa com telefonemas e videochamadas pelo meio porque, diz, “todo o cuidado é pouco.” No dia 24, entra ao trabalho às onze da noite e sai às oito da manhã do dia 25. Se tiver de apanhar transportes, dois ou três autocarros, demora uma hora até ao hospital, se o marido a levar, o que acontece habitualmente, são 15 minutos de carro. São anos e anos, mas custa deixar os seus em casa nesta altura. “Infelizmente, porque estamos fora da família, felizmente porque estamos a trabalhar e a ajudar os outros.” Custa sempre, mas quando os filhos eram pequenos, era pior. “Tive alturas muito complicadas, dói muito quando temos de trabalhar e eles ficam em casa, mas a minha vida foi sempre no hospital.” A filha já perguntou como seria a troca de prendas, está decidido que será ao almoço do dia 25, depois de Luísa dormir um pouco, após a madrugada de trabalho.

Luísa Almeirante, na foto com o marido e a filha, vai ter uma ceia apressada. No dia 24, entra ao trabalho, nas urgências do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, às onze da noite
(Foto: Paulo Alexandrino/Global Imagens)

Os dias têm sido avassaladores, ainda há duas semanas, oito ambulâncias à porta do hospital, doentes à espera para entrar, o espaço do pré-covid lotado. “Muito cansativo, muito cansativo, mesmo, mesmo”, repete Luísa. O cuidar, o tratar, a parafernália do fato de trabalho, as máscaras, o oxigénio que não é o mesmo. “Damos o máximo e consegue-se fazer, mas tem sido muito cansativo.” Luísa espera que esta pandemia acabe depressa, mas não vê jeito, todo o cuidado é pouco, a situação poderá complicar-se em janeiro. “Não sei, acredito que melhorará, mas serão longos meses até que tudo melhore.”

Tratar das pessoas. Hoje e sempre

De repente, uma onda de solidariedade, palmas às varandas, homenagens, agradecimentos públicos, murais nas paredes com rostos de profissionais de saúde. Heróis? “Não queremos ser heróis, só queremos ter condições dignas de trabalho”, responde Andrea Silva. Sérgio Lopes pede para que a pergunta lhe seja feita depois da pandemia. “Tenho 43 anos e ganho o mesmo de quem começa agora na carreira”, repara.

É reconfortante sentir a valorização da profissão neste tempo complexo. E depois? Este reconhecimento, para Cátia Ribeiro, é temporário. “É momentâneo, agora lembram-se porque se fala de covid. Não acredito que vá mudar nada. Continuaremos a ouvir que estamos ali para trabalhar porque nos pagam o ordenado. As pessoas que nos valorizam já nos valorizavam independentemente da pandemia”, sublinha.

A saúde continua na linha da frente. “Os profissionais de saúde estão disponíveis para colaborar e dar o seu melhor em condições extremamente difíceis. Não viram a cara, respondem de uma maneira exímia”, observa Hugo Fernandes. E todos os outros, que dão de si, que tentam travar a pandemia. É uma bateria de emoções em permanente ebulição. “Toda a parte emocional que se carrega às costas”, comenta Vilma Silva.

“É bom saber que o nosso trabalho é reconhecido. O que fazemos hoje é o que sempre fizemos, tratamos das pessoas”, frisa Joana Damásio. A realidade mudou 180 graus, de repente, chega uma doença com um alto nível de contágio. “O que fazemos é o que sempre fizemos”, reforça a neurologista.

“Ninguém se pode esquecer que as agressões a profissionais eram mais frequentes”, lembra Elisa Tomé. Com o tempo, os agradecimentos e as homenagens esbateram-se. “As pessoas, no início da pandemia, tinham muito medo, era tudo completamente desconhecido, uma doença com elevada mortalidade, com elevado grau de contágio. A pandemia existe e estamos cá.” Quando escolheu Medicina, sabia o que a esperava. “Tinha de sacrificar-me em prol dos outros.”

As vacinas aliviam um pouco a carga emocional. Há esperança, sim. “É uma luz ao fundo túnel, mas não podemos baixar já a guarda, ainda temos muito para andar”, avisa Andrea Silva. Sérgio anui.

José Coelho sabe que não é possível mudar tudo de um dia para o outro. “Depois da vacina, ainda vamos andar largos meses com muitas restrições. As pessoas andam muito cansadas, os seres humanos não estão muito habituados a este tipo de regras, infelizmente, a Medicina não funciona como a opinião pública gostaria que fosse.” É como uma caminhada que vai a meio, compara, já se vê uma luzinha ao fundo do túnel e, no percurso, houve regras que se impregnaram e que têm de ser cumpridas. “É necessário controlar a probabilidade de contágio e é preciso ter a noção de onde estamos e não andar para trás.”

A esperança é essencial. “É um vírus, é mutante, está sempre a mudar. Estamos a viver uma pressão de liberdade muito grande, ninguém estava à espera de uma coisa assim, tenho sempre a esperança que isto melhore.” Joana Damásio fala também nessa esperança capaz de conduzir a melhores dias. A perspetiva de uma terapêutica afasta nuvens negras. “A vacina é a única esperança que temos, aquela luzinha ao fundo do túnel”, sublinha Elisa Tomé.

Em 2021, Hugo Fernandes espera um Natal “sem restrições, com liberdade, e todos com saúde.” Assim seja.