Eurico Reis e a Covid-19: Os espinhos da rosa

Eurico Reis, juiz desembargador

Espero que na data da publicação deste texto o Conselho de Estado convocado pelo Presidente da República tenha dado um parecer favorável ao decretamento do estado de emergência, que estou convencido que o Dr. Marcelo Rebelo de Sousa irá propor, que o Governo o tenha apoiado, e que a Assembleia da República o tenha já decretado. Porquê?

Pois, simplesmente porque a situação impõe que sejam tomadas medidas extraordinárias para combater esta nova pandemia, mas também porque isso significará que, apesar de estar suspenso o exercício de algumas liberdades individuais, não está suspensa a Constituição, nem o estão o Estado de Direito e a Democracia.

Ou seja, terão de ser tomadas medidas indispensáveis para combater a pandemia, mas terá de ser inequívoco para todos que essas medidas são excecionais e, acima de tudo, temporárias e transitórias, em vez de permanentes como aquelas que (a maior parte delas securitárias e cuja proporcionalidade e real eficácia mereciam ser mais e melhor debatidas do que têm sido), são “justificadas” por esta também planetária “Guerra ao Terror” que, iniciada em 2001, após o chamado “9/11” (11 de Setembro), parece não ter fim à vista.

Quem é capaz de se pôr de acordo para estabelecer regras e tarifas para a circulação de bens e serviços, também o tem de ser para definir regras acerca de alertas rápidos perante a ocorrência de acidentes adversos

E, mais do que isso, é indispensável que, de facto, essas medidas inibidoras de algumas liberdades cívicas sejam realmente excecionais, temporárias e transitórias, e que sejam mantidas apenas (e só apenas) até que a pandemia seja contida e que, assim o espero e desejo, esta ameaça seja eliminada, com o mínimo possível de danos pessoais (nomeadamente em vidas humanas perdidas) e para a Economia, mundial e de Portugal.

Antes de continuar, tenho de confessar que não é esta pandemia que me faz deixar de ser cosmopolita e, apesar dos inúmeros defeitos da mesma, um adepto da globalização do Mundo, uma vez que é ela e não a regionalização do mesmo que nos trará a tão necessária Paz. Mas, porque sei, como sempre soube, que esses inúmeros e enormes defeitos existem – sobretudo nesta forma de globalização, que não é a única possível e não é, de todo, a melhor –, não estou surpreendido com o que está a acontecer.

São os espinhos da rosa. Só lamento que não estivéssemos preparados para esta terrível situação que, em minha opinião, era claramente previsível, logo podia e devia ter sido muito menos desastrosa. Na verdade, ao estabelecer a livre circulação de bens, serviços e de pessoas, mais tarde ou mais cedo acabaria por acontecer a transmissão (também ela uma livre circulação) de doenças.

E deveríamos todos – Estados e pessoas individuais – termo-nos preparado para isso e, sobretudo, para a minimização dos seus efeitos; quem é capaz de se pôr de acordo para estabelecer regras e tarifas para a circulação de bens e serviços, também o tem de ser para definir regras acerca de alertas rápidos perante a ocorrência de acidentes adversos, como é o caso e para a total divulgação de informação.

Alerta que, tanto quanto sei, a China não deu com suficiente rapidez, o que mostra muito claramente que a via autoritária chinesa, não é, de todo, a solução – aliás, se agora há que fazer o que é possível em vez do que é desejável, quando esta “onda má” passar, haverá que apurar, mas apurar muito bem, como e por que razão as coisas chegaram a este ponto tão trágico.

E a Ética da Responsabilidade, o dever de prestação de contas, a transparência nos procedimentos e a informação livre e autêntica são um apanágio das democracias e não das ditaduras. E a extensão generalizada dos cuidados de saúde a todos os que deles precisam é apanágio dos países que, como Portugal, têm um Serviço Nacional de Saúde e não daqueles em que pessoas morrem às portas dos hospitais por não terem seguros de saúde que paguem os preços desses cuidados. Ainda é muito cedo para fazer balanços e análises críticas.

A História da Humanidade está repleta de relatos demonstrando a superioridade a todos os níveis das democracias sobre as ditaduras. E não é esta crise que nos deve levar a pensar o contrário. Pagaremos todos bem caro se nos deixarmos levar por “cantos de sereia” totalitários.

A Democracia e o Estado de Direito, tal como a presunção de inocência e o julgamento leal e não preconceituoso (denominações conceptuais, mais claras, fiáveis e melhor controláveis traduzidas da versão em língua inglesa da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, do que a muito equívoca e pouco sindicável versão herdada do francês a que damos o nome de “julgamento equitativo”), são construções culturais humanas antinaturais.

E é por isso que são frágeis e precisam de ser defendidas todos os dias, até porque custaram séculos de guerras e rios de sangue, suor e lágrimas. É que, estruturalmente, os seres humanos são membros de um clã, de uma tribo ou, pior ainda, de uma horda. E essas estruturas sociais não são, de todo, democráticas.

Tudo o que de bom foi alcançado pela Humanidade tem por base a libertação da criatividade dos seres humanos individuais. Não deixemos que a Democracia e o Estado de Direito caiam vítimas desta pandemia. Até porque, pelo menos na Europa, nenhum Estado nacional poderá isoladamente sair da igualmente terrível crise económica em que o Planeta já está a ficar mergulhado.