Barca Velha, o tinto dos tintos

Em 2021 sai para o mercado o 20.º Barca-Velha, colheita de 2011, quase sete décadas após o lançamento do primeiro. É o tinto mais simbólico da qualidade do Douro e de Portugal. E é também o que atinge valores de mercado mais elevados. Um luxo que é mais do que um vinho. Dentro de cada garrafa abunda muito trabalho, saber, história e tradição.

“Olha para isto, olha para isto!” O chefe da enologia da Casa Ferreirinha, Luís Sottomayor, está embevecido. Olhos pregados ao vinho tinto que roda num copo elevado na mão direita, já depois de o ter cheirado. É um Barca-Velha de 1999. “Um puro-sangue pronto para tudo!” Qualidade e capacidade de envelhecer dentro da garrafa são as características principais deste símbolo da Região Demarcada do Douro, nascido em 1952 pela mão do arrojado Fernando Nicolau de Almeida. Só é produzido em anos excecionais, com uvas maioritariamente produzidas na Quinta da Leda, em Almendra, Vila Nova de Foz Côa. Em 2021 chegará ao mercado a 20.ª edição.

O lançamento do Barca-Velha 2011 foi anunciado este ano, mas por causa de um problema relacionado com a extração da rolha, e, segundo Sottomayor, “quiçá por excesso de precaução”, a empresa não quis correr riscos de macular uma produção tão aguardada. Ainda se está a investigar o que aconteceu para que em cada dez garrafas “duas ou três rolhas se partissem durante a extração”. E se é certo que o problema “não afeta minimamente a qualidade do vinho”, num desta categoria, com preços que facilmente ultrapassam os 500 euros por garrafa, foi “prudente esperar algum tempo depois do rearrolhamento antes de o pôr no mercado”.

Essa etapa “não está dependente de necessidades de comércio”. É apenas, de acordo com o enólogo, “uma questão de qualidade”. A administração da Sogrape, empresa que detém a Casa Ferreirinha desde 1987, sempre deixou nas mãos da enologia a determinação de o declarar, bem como o momento para o comercializar. “Há muita gente que pode não acreditar, mas a decisão jamais tem por base critérios económico-financeiros. É sempre tomada pela equipa de enologia, porque o que mais se procura aqui é a excelência”, refere o presidente da Sogrape, Fernando da Cunha Guedes.

Este atraso não terá gerado contratempos na planificação da empresa. “Não sendo vendido todo de uma vez, saindo apenas à medida que é necessário, atrasar três ou seis meses é absolutamente indiferente”, garante Luís Sottomayor. E uma vez que “até à vindima de 2014 não vai haver, seguramente, outro Barca-Velha”, as mais de 30 mil garrafas de 75 centilitros e as cerca de 2 800 de litro e meio (magnum) da colheita de 2011 “terão de durar três ou quatro anos no mercado”.

Luís Sottomayor, chefe da enologia da Casa Ferreirinha, e Fernando da Cunha Guedes, presidente da Sogrape, são agora a alma e o coração do Barca-Velha

O chefe da enologia assegura que um vinho tão exclusivo como o Barca-Velha será sempre como um “cão de caça”, que “só sai quando começa a perceber o que anda a fazer no monte”. Por isso, aquele tinto “só sairá quando estiver capaz de ser consumido e dar prazer à mesa”. Neste momento, “já o consegue, mas ainda há de ficar melhor” – como é o caso do de 1999 que “está quase no seu apogeu” -, dado que irá “enriquecendo, ganhando complexidade e harmonia até chegar a um patamar muito alto”.

Ao contrário das condições de 1952, hoje em dia, graças aos avanços tecnológicos, “fazer Barca-Velha é relativamente fácil”, considera Sottomayor. Naquela época, Fernando Nicolau de Almeida teve de arranjar forma de transportar blocos de gelo de Matosinhos para a Quinta do Vale Meão, em Vila Nova de Foz Côa, onde então se propôs produzir aquele vinho, para poder controlar a fermentação do mosto e garantir a qualidade almejada. Atualmente, e como o enólogo não é um mágico, em primeiro lugar “há que ter boas uvas”. Depois, é só colocar “empenho, rigor e alegria”.

Na verdade, a equipa de enologia procura fazer Barca-Velha todos os anos, mas a Natureza nem sempre deixa. Fernando da Cunha Guedes diz que “é provável que, com os avanços tecnológicos nas práticas vitícolas, possa ser mais constante ao longo do tempo”. Mas, como só é declarado quando não existe a mínima dúvida, uma pequena hesitação faz declarar o Reserva Especial, que é como um irmão do outro, apenas separado por “pormenores”.

O processo de escolha

Há pouco mais de 30 anos, quando Luís Sottomayor foi pela primeira vez à Quinta da Leda, só havia 20 hectares de vinha. Hoje são 170, plantados em diferentes altitudes e exposições solares. “Uvas de locais diferentes dão maior complexidade ao vinho”, justifica o enólogo. Por isso é que ali se pratica uma “viticultura de precisão”, a pensar na qualidade máxima que um Barca-Velha exige. “Em cada vindima nas vinhas onde é feita aquela viticultura, ou há Barca-Velha, ou há Reserva Especial, ou não há nada.” Os lotes que não servirem para os topos de gama vão enriquecer as restantes marcas do portefólio.

Desde 2001, a vinificação ocorre na adega daquela quinta, onde é produzida a maior parte das uvas para o Barca-Velha. Touriga Francesa e Touriga Nacional são as principais castas. Juntam-se-lhes a Tinta Roriz e a Tinto Cão, como se fossem “o sal e a pimenta”, para manter a qualidade, a complexidade e a harmonia. À medida que as cubas ficam cheias, o vinho é transportado para as caves, nomeadamente para as que a empresa tem em Vila Nova de Gaia, para estagiar em barricas.

Durante os meses seguintes, há um processo continuado de provas que hão de definir os lotes com os quais se fará o Reserva Especial. E entre aqueles, a equipa de enologia escolhe os que entende que têm potencial para ser Barca-Velha. “Em 2011, eram praticamente todos”, recorda Luís Sottomayor. Foi um ano “extraordinário”, em que “tudo o que nasceu foi bom”.

Uma vez o vinho engarrafado, é avaliada a sua evolução e provado várias vezes ao longo de “quatro, cinco ou até sete anos” para conferir a qualidade e o potencial. “Se acharmos que é um vinho com qualidade, estrutura, equilíbrio e, sobretudo, com capacidade de envelhecimento, vamos chamar-lhe Barca-Velha. Se acharmos que não tem essa capacidade, será um Reserva Especial.”

Luís Sottomayor tem a responsabilidade de decidir quando é ano de Barca-Velha

Neste momento está a ser avaliado o lote da vindima de 2019, para ver se existe qualidade para Barca-Velha. “Em princípio iremos engarrafar, mas a decisão ainda não está 100% tomada.”

O Barca-Velha foi “inventado” quando o forte da Região Demarcada do Douro era o vinho do Porto. É o tinto tranquilo mais antigo e que nasceu da paixão de Fernando Nicolau de Almeida. Queria fazer algo diferente e não descansou até o conseguir. Sottomayor concede que há, atualmente, “outros grandes vinhos no Douro” e alguns até “podem ter algumas semelhanças com o Barca-Velha”. A diferença é que este tem “uma personalidade e um caráter únicos”. É, por isso, “inimitável”.

Tampouco ainda foi imitado no preço, que atinge sempre várias centenas de euros por garrafa. Fernando da Cunha Guedes afiança que o valor “é sempre estipulado pelo mercado”. O de 2011 deverá “atingir montantes talvez um pouco acima do que corre atualmente para o de 2008 (695 euros na Garrafeira Nacional).

O presidente da Sogrape admite que, em Portugal, “o vinho custa muito dinheiro, mas não é caro”. Entende que “pode não ser para todos, mas se há pessoas disponíveis para pagar é porque não é caro”. Mais: “Comparando com as grandes referências internacionais, com as quais o Barca-Velha se bate de igual para igual, verifica-se que se vende a um terço ou um quarto do preço, portanto tudo é relativo”.

Fernando Guedes reconhece que quando o Barca-Velha começa a ser vendido “ainda tem uma contribuição importante para os resultados da empresa”, mas, como não sai todos os anos, “o seu peso económico dilui-se no meio de tantas outras coisas que a Sogrape tem”.

Para o futuro deseja que possam ser produzidos em Portugal “muitos mais vinhos como o Barca-Velha”. Vendo nos outros produtores “parceiros” e não concorrentes ou inimigos, está convencido que quantos melhores vinhos houver, “mais irão puxar pelo setor em termos internacionais”.

À lupa

Colheitas de Barca-Velha
Fernando Nicolau de Almeida lançou o primeiro em 1952 e ainda produziu os de 1953, 1954, 1955, 1957, 1964, 1965, 1966, 1978, 1981, 1982, 1983 e 1985. José Maria Soares Franco assinou os de 1991, 1995 e 1999. Luís Sottomayor proclamou as colheitas de 2000, 2004, 2008 e 2011.

Como guardar
Como vai evoluir por muito tempo, deve ser guardado deitado, numa zona sem luz e sem grandes variações de temperatura, para não haver dilatações do vinho que possam prejudicar a qualidade da rolha. Por isso, recomenda-se uma temperatura constante de 15 ou 16 graus e uma humidade entre 60% e 70%.

Como beber
A garrafa deve ser posta ao alto, pelo menos 24 horas antes de a abrir. Depois tem de ser decantado, uma hora antes de servir, para que todos os sedimentos fiquem no fundo da garrafa. Para tirar o máximo prazer, deve ser bebido a uma temperatura entre 14 e 16 graus e em boa companhia. Vai bem com pratos de caça ou uma posta de vitela, por exemplo.

Não deixar para amanhã
Luís Sottomayor não é apologista de que um Barca-Velha se guarde muito tempo. “É uma dor de alma ver pessoas que vêm ter connosco a pedir para rearrolhar garrafas de Barca-Velha antigas, porque as guardaram para uma ocasião especial. A rolha tem um período útil de vida e já apareceram algumas garrafas estragadas. Se já tiver agendado um momento especial, guarde. Caso não tenha, assim que tiver um grupo de amigos apreciadores e com paixão pelo vinho, abram-no e bebam-no.”