Rui Cardoso Martins

Avenida da Liberdade dos murros

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Discórdia estradal, a questão estradal, disse a juíza por duas vezes na sentença. Quem nunca tiver ouvido a expressão – também para mim inédita – pode lá chegar pelo som. E pela memória. Todos a temos, todos. Contei a um amigo o caso que de manhã acompanhara no tribunal e logo as rotativas da lembrança começaram a imprimir primeiras páginas. Manchetes da vida estradal. Eu disse: uma vez, na auto-estrada, quando levava os meus filhos ao Alentejo, um carro a alta velocidade buzinou-me com estrondo. Ao desviar-me para a direita, fiz ao condutor uma irónica vénia de passagem. Talvez ele tenha visto coisa nos meus dedos delicados, abertos em leque, não ergui o médio, asseguro-vos, conduzia em paz com a família, mas o homem desatou em aproximações de filme, com a boca cheia de dentes e de espuma, tentando atirar-me para a berma e talvez para o universo infinito. À terceira razia, tive de encostar na berma da auto-estrada, perplexo, mas com todos vivos. E o vilão do asfalto prosseguiu a viagem.

Ao escutar-me, o meu amigo confessou o seu caso. Tinha estacionado junto ao passeio para sair a mulher e uma familiar, iam levantar uma coisa numa loja. Ligara o pisca direito e meditava em silêncio quando um carro o contornou e buzinou com tal estridência que ele saltou (pico ou falha de açúcar, explosão de adrenalina?), arrancou a chave do carro, desceu ao alcatrão e disparou a chave contra a traseira do buzinador. Quando a mulher chegou, estava o marido a trocar murros com um desconhecido no contexto estradal. Como é que estas coisas se dão?

Bem, estão sempre a acontecer e até há mortos. Pois basta uma barra, ou sobra navalha ou surge pistola. O caso a que eu assisti no tribunal é simples. Ganha dimensão por se ter passado na Avenida da Liberdade, coração da capital, artéria aorta de Lisboa. João Pedro descia a avenida e viu uma carrinha a fazer condução perigosa. Era atrás dele, não à frente, viu pelo retrovisor. Parou bruscamente, foi à carrinha e deu um murro na cara do condutor. Arrancou a chave da ignição – e desencaixou o condutor do volante – e deu-lhe tais murros de discórdia estradal que o deixou incapaz durante dez dias. Disse no tribunal (e em nada o beneficiou) que a luta “foi à homem”. Qual a justificação de João Pedro? Foi que trazia consigo, no banco de trás, as duas filhas, uma delas menor, de 12 anos. Agora ali estava no banco dos réus, de máscara triste no nariz. Quando a juíza lhe disse que são 1 820 euros de multa pelos murros (260 dias a sete euros), viu-se-lhe nos olhos o lampejo de uma cólera contínua. Mas engoliu a lição da juíza:

“Senhor arguido, eu ouvi-o com muita atenção e o que me choca ainda é que, independentemente de ter tido razão ou não relativamente a uma boa ou má condução do assistente, não é isso que está em causa. Isso é absolutamente irrelevante. O arguido ainda veio aqui no dia do julgamento explicar… com a sua postura, a sua crítica, como se a condução do assistente, que não era mais do que a condução atrás da sua viatura, que podia ser de tocar, ou não, na sua… mas a verdade, obviamente, é que não estavam ali a 200 à hora. E mesmo que fosse isso, o arguido tinha outras soluções, não é actuar com as próprias mãos, como fez. E fazer isso, e ainda argumentar com as suas duas filhas no carro… Não lhe ‘caiu a ficha’ explicando que a actuação com as suas filhas a assistir era o pior que podia ter feito, é grave! Optou-se pela pena de multa porque se entendeu que ainda seria suficiente para evitar que voltasse a praticar estes factos, mas estes são de tal gravidade, considerando que estamos numa simples discórdia estradal – o arguido sai do seu carro e vai pedir satisfações com murros a terceiros – é de tal ordem grave que a pena de multa nem é assim tão evidente. Se o senhor voltar a praticar factos desta natureza, não há quem lhe possa voltar a aplicar uma pena de multa. Este crime é punível com pena de prisão até três anos. Isto é grave! Tem de ser cumprida, senão será convertida em prisão.

“Senhor arguido, esperemos que isto tenha sido um momento da vida, um momento mau. Nós não estávamos aqui a julgar uma bofetada, um murro ali na esquina. O que estava em causa é muito mais do que isso. Esta questão estradal é reveladora às vezes de outras coisas e, como o arguido obviamente continuará a conduzir, as oportunidades irão voltar a surgir. E o exemplo que deu às suas filhas também não é bom. Esperemos que um dia não tenha o desprazer de ter uma filha sua a ser julgada nestes termos, porque ela pode sempre dizer: ‘o meu pai também fez’.”

Agora é saber quantas vezes o fará.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)