A pandemia também entra nos desfiles

Diluem-se estações, mingam-se coleções, reciclam-se tecidos, costuram-se conceitos. A pandemia cancelou desfiles e o digital ganhou espaço. É chegada a hora de repensar a produção e o consumo, o exagero e a sustentabilidade. Há um antes e um depois. E nada será como dantes.

Os sinais insinuavam que tudo poderia ser diferente e o cancelamento do desfile, na véspera, não foi propriamente uma surpresa. Os planos mudaram várias vezes. Katty Xiomara tinha idealizado um conceito intimista, concerto com piano e voz, para apresentar a sua coleção de inverno na Casa da Arquitetura de Matosinhos durante o Portugal Fashion, em março. A proximidade ao público deixou de ser possível. Não haveria concerto, abdicou da maquilhagem, prescindiu do cocktail de boas-vindas, readaptou pormenores e mudou tudo para a Alfândega do Porto. Tudo pronto, tudo cancelado. “Não dá para fazer muitos planos, as coisas mudam de um dia para o outro.”

Tudo mudou nos últimos meses, a pandemia acelerou a reflexão que a moda vinha a fazer, obrigou a virar-se para dentro com mais urgência e maior intensidade. “É um setor que está a sofrer muito, um dos mais difíceis relativamente à retoma. Não somos essenciais, não somos o primeiro produto que as pessoas pensam comprar”, afirma Katty Xiomara.

De repente, foi necessário colocar muitos assuntos em cima da mesa. O momento chegou. Repensar o consumo em termos de sustentabilidade, comprar menos, comprar melhor. Fará sentido desenhar uma coleção com 50 coordenados, mais de 200 peças de tamanho único, acumular um set enorme de amostras, criar um baú gigantesco todos os anos? É preciso pensar noutras formas de criar. “Reutilizar matérias-primas de coleções anteriores, renovar peças antigas, desenhar coleções mais pequenas, peças mais multifuncionais, aproveitar stocks de fábricas que se adequem à coleção.”

A Semana de Moda de Londres teve desfiles ao ar livre, como este, da jovem estilista britânica Paria Farzaneh
(Foto: Ben Stansall/AFP)

A porta do seu ateliê, na Rua da Boavista, no Porto, só se abre por marcação. O espaço é luminoso, a mesa de trabalho tem vista para um pequeno jardim. A designer de moda acredita que o setor dará a volta, haja união, reformulem-se conceitos e formas de trabalhar. Baixar os braços é que não. A sua coleção de inverno, “Alma”, de cores ténues baseada na reativação da humanidade, cancelada em março, está pronta a ser mostrada no próximo Portugal Fashion, mesmo em cima da estação. Quase tudo mudou e a apresentação será feita em vídeo, através de uma curta-metragem exibida numa sala com poucos convidados, em direto para quem quiser assistir por via digital em qualquer lugar.

Júlio Torcato também tinha tudo preparado para o Portugal Fashion de março, 90 pessoas da Orquestra Urbana da Trofa, músicos não profissionais de todas as idades, alguns com roupas de modelo, numa performance sobre inclusão, diversidade, identidade. Um projeto assim não morre e será apresentado, talvez em 2021. Desenhou um novo conceito para a próxima edição, dado o contexto, e apresentará uma performance como um comício político e social para falar do medo, do controlo, da manipulação dos sound bites. “Com algum sarcasmo pelo meio que tem a ver com a atualidade”, revela.

O momento é de transformação. Júlio Torcato vê marcas a definhar, negócios a cair, encomendas a emagrecer, uma nova forma de consumir pelas restrições físicas e psicológicas. “As estações vão ficar mais no lugar delas e as coleções mais pequenas.” A mensagem ganhará importância, as estratégias ficarão mais orientadas, o digital continuará a ganhar espaço. “A moda sempre teve a capacidade de se reinventar – parece uma frase feita, mas não é. Andamos todos à procura do caminho dessa reinvenção, o caminho mais natural e mais eficiente.” Com outros valores, com outras formas de criar, com mais elementos emotivos. “Como se as peças tivessem personalidade.”

Após 20 anos a marcar presença em Paris, a Valentino preferiu ficar em Itália e apresentar as coleções em Milão
(Foto: Miguel Medina/AFP)

O Mundo ficou suspenso pela pandemia e o impacto na indústria da moda é global. O setor virou do avesso. Desfiles cancelados em Nova Iorque, Milão, Londres, Paris, no início da pandemia. A Semana de Moda de Paris aconteceu na última semana com poucos desfiles presenciais, 18 em 84. Antes disso, em Londres, a maioria das apresentações foi feita online, tal como em Milão. Nomes como Prada, Versace e Armani optaram pelo digital. Gucci e Saint Laurent decidiram ficar de fora. E, em Milão, a Moschino apresentou a coleção primavera-verão 2021 com marionetas vestidas como manequins, numa evidente alusão ao tempo que vivemos. Portugal também não escapou.

Resgatar o passado, costurar o futuro

Na segunda-feira da semana passada, 28 de setembro, Alexandra Moura apresentou “Substrato”, coleção para o próximo verão, sem público, numa transmissão em vídeo na Semana de Moda de Milão, depois do cancelamento à última hora do desfile outono-inverno 2020/2021, em fevereiro passado. Na altura, Milão estava no olho do furacão e a designer de moda sentiu o início de uma nova era com todas as aflições e contrariedades associadas.

O confinamento deu-lhe tempo para refletir o que já andava na cabeça, o querer voltar às origens na descoberta da identidade. Aconteceu durante o isolamento, teve tempo para pensar sem deixar de criar. Olhou para dentro, inspirou-se nos alicerces da própria marca para a nova coleção, num resgate do passado para costurar o futuro. “Fomos ao nosso interior, ao nosso ADN, à base da marca e ao próprio espólio de tecidos, reutilizámos matérias-primas.” Resultado: uma coleção mais pequena, mais intensa também, com traços inconfundíveis da sua estética – a presença do preto, o jogo de volumes e silhuetas, a desconstrução do clássico. A mesma coleção apresentada há dias em Milão será mostrada, nos mesmos moldes, no próximo Portugal Fashion, na Alfândega do Porto.

“A pandemia tem impacto em todos os setores, em todas as áreas, em todas as vidas, em todas as pessoas, e a moda não é exceção. O consumidor mudou os hábitos, agora não há momentos especiais. Houve alguma reviravolta no próprio mercado. Ainda assim, o mercado de autor alberga outro tipo de público que gosta de consumir, independentemente do que está a acontecer no Mundo”, refere a designer de moda.

A preocupação existe em todo o lado na gestão de stocks, nas quantidades a encomendar, na reutilização de matérias-primas, em avançar ou não para novas coleções. “Há toda uma incerteza do que pode estar ainda para vir.” Seja como for, a inspiração não esmorece e este é também um tempo para fazer perguntas. “Repensar o excesso, as quantidades, a sustentabilidade das próprias matérias-primas, valores e conceitos.” Alexandra Moura tem esperança, desde que haja vontade de mudar. Até porque, diz, “as coisas não vão ser como eram.”

Parece que não. “Produzir o quê, para quem, que quantidades?”, pergunta Nuno Gama. Os tempos não são de compras, de sair à noite, de casamentos ou batizados. “A necessidade de vestuário reduziu muito. Uma coisa é comprar básicos, outra coisa é comprar para ocasiões especiais. Neste momento, não há ocasiões especiais.” O estilista estará na Moda Lisboa e não vai apresentar uma coleção. “Não se justifica.” Por causa do momento, devido às circunstâncias. Apresentará uma peça irrepetível, casaco bordado a fio de ouro, ponto por ponto numa espécie de introspeção, durante uma dança acompanhada por modelos, coreografia assinada por Olga Roriz. É uma carta de amor a Portugal, com símbolos fortes da portugalidade como, por exemplo, o fado e a caravela. É também uma procura por, assinala, “novas fórmulas que reescrevam a forma/função do vestuário na nossa vida, no que representa para todos nós, na eterna busca do que desejamos”.

Nuno Gama nota “alguma disfunção” no setor. “Não temos nenhuma varinha mágica para adivinhar o futuro, estamos todos na expectativa, procuramos alternativas, temos de encontrar formas de nos reinventar. Estamos todos à procura disso.”

Menos com menos dá mais

Primeiro subtraíram, depois multiplicaram. Menos meios, menos pessoas, menos perspetivas, menos liberdade. Mais atentos, mais disruptivos, mais pragmáticos, mais unidos, mais humanos. A ModaLisboa fez as contas numa altura tão atípica: menos com menos dá mais e é esse “Mais” o slogan da próxima edição que acontece de quarta-feira a domingo, de 7 a 11 de outubro, ao ar livre, nos jardins do Parque Eduardo VII. São 33 designers, 24 momentos, uma nova app mobile, uma inovadora app TV com lotação presencial bastante limitada.

No casting de modelos para a Moda Lisboa, o distanciamento entre os candidatos foi um dos procedimentos adotados
(Foto: Olga Barrisco)

As montagens começaram ontem no Pavilhão Carlos Lopes, a zona dos bastidores. “É tudo diferente”, garante Eduarda Abbondanza, presidente e diretora criativa da ModaLisboa. Não houve comparações com edições anteriores, a criação foi feita de raiz com alguns conteúdos pertinentes do passado. “Desenhámos este projeto de princípio, em função do momento que estamos a atravessar.” Com o máximo de respeito pelas regras. Há um plano A, um misto de desfiles ao ar livre com 200 pessoas na plateia e transmissões online, e um plano B de ser tudo digital. “Tudo vai acontecer com rigor, não queremos correr riscos”, assegura.

Inês Guimarães, diretora de produção da ModaLisboa, confirma. “Desenhámos normas de trabalho e de segurança para cada uma das áreas.” Há novos adereços, máscaras, luvas. Declaração de responsabilidade, formulário com contactos de emergência, medição de temperatura, duas salas de isolamento, normas cumpridas à risca, além do que foi recomendado. Tem sido um desafio e o chip mental teve de mudar. “Esta edição deu muito trabalho, as pessoas são a dobrar ou a triplicar, é um trabalho quase cirúrgico”, conta. E tudo é reavaliado dia a dia.

Tal como no Portugal Fashion que, em março, foi interrompido. O próximo está programado para 15 a 17 deste mês, na Alfândega do Porto. Será uma edição híbrida, entre desfiles físicos e formatos digitais, com uma TV digital para seguir, em direto, apresentações de coleções, entrevistas, reportagens, outros conteúdos. Mais no exterior do que no interior, se o tempo permitir, plano de contingência definido, lotação reduzida a cerca de um quinto da assistência habitual, não mais de 200 pessoas, acesso praticamente exclusivo a público especializado.

Mónica Neto, diretora do Portugal Fashion, sublinha que esta é uma edição especial que exigiu uma abordagem abrangente e estruturada. “Assinalamos 25 anos, mas não estamos em festa. Estamos, sim, num processo de reforço estratégico e de reinvenção operacional. Sabemos que nunca o conceito de semana de moda foi tão questionado, mas também sabemos que, como nunca, fica comprovada a importância destes projetos para o lançamento de novos talentos, a solidez das marcas de autor e o scale up do mercado como um todo.” “Por isso, experimentamos novos formatos, ousamos dinâmicas complementares de negócio e venda e, sobretudo, reforçamos a comunicação digital”, acrescenta.

Há duas semanas, a Alfândega do Porto recebeu o Modtissimo que, neste ano peculiar, foi o único salão têxtil da Península Ibérica com mais de 200 coleções, numa edição que apostou na tecnologia, na sustentabilidade, na segurança. Manuel Serrão, diretor-geral da Associação Seletiva Moda, está otimista, apesar das contrariedades que abalam a indústria têxtil.

Os sinais indicam esperança, uma recuperação nas exportações em agosto, investimento em novas máquinas, alargamento de mercados, procura de alternativas digitais. A indústria tem dado provas de vida. “Por um lado, tem sabido reconstruir a sua parte produtiva e, por outro lado, tem mostrado que está com vontade de continuar e ir à luta.” A pandemia veio acelerar o que se previa que teria de mudar. “A indústria têxtil vai dar a volta, está a lutar por isso.”

Luís Borges, manequim internacional, parece não ter dúvidas de que assim será. “É impossível a moda parar, a moda também é arte, também é economia”, realça. É necessário contornar dificuldades e seguir em frente. “Há uma adaptação dos designers à situação que estamos a passar, as marcas também se estão a adaptar à nova normalidade, o trabalho não pode parar.”

O trabalho parou temporariamente para Catarina Santos, modelo internacional, que sentiu na pele os efeitos da pandemia. Todos os seus desfiles lá fora foram cancelados, esteve em casa dois meses, há quatro meses voltou à passarela, a agenda começou a ficar composta. “Mas tenho a noção de que não é a realidade para toda a gente, houve uma grande quebra no trabalho.”

A equipa da ModaLisboa preparou mais uma edição distribuída por vários espaços e com reavaliações diárias por causa da covid
(Foto: Olga Barrisco)

As circunstâncias são outras, mudaram as condições, as equipas têm o máximo cuidado para garantir a segurança de todos. A modelo sente que o regresso à normalidade é possível e tem esperança no que aí vem. “A moda está a passar por grandes dificuldades, mas vai reerguer-se. Temos todos de ajudar para que as coisas voltem ao normal, para recuperarmos o que perdemos nestes meses, e que é muito.”

O digital como tábua de salvação

“O impacto da pandemia é imenso em todos os aspetos e na moda, claro, também tem impacto.” A estilista Ana Salazar fala no aumento das vendas online, procura por roupa mais desportiva, menos desfiles, cadeiras sem convidados, transmissões online, menos estações num ano, cancelamentos de grandes eventos de moda. “A indústria têxtil tem sofrido imenso a nível global.” A perspetiva também muda do outro lado. “O consumo vai ser muito mais imediato”, prevê.

Na alta-costura, no segmento de luxo, com poucos clientes, dos vestidos de princesa e dos fatos de príncipes feitos à medida, um nicho cada vez menos presente na Europa e na América, com cada vez mais peso nos países árabes, não se adivinham alterações. “O luxo, em si, não vai acabar. O luxo continua a vender-se.” De qualquer forma, a moda não passa pelos pingos da chuva. “A cada dia, há uma incerteza.” Novos dados, análises, recomendações, regras para cumprir. “Há tantos ‘ses’.”

Agora, como sempre, os criadores não ficam imunes ao que se passa. Ana Salazar não tem dúvidas de que o atual contexto interfere nas coleções. “As coisas que nos rodeiam sempre nos influenciaram, com certeza que estes tempos influenciam quem cria e haverá mais vestuário a reportar esta situação pandémica, claro que cada um pode interpretá-la à sua maneira.” Cada cabeça, sua sentença. No caso de Ana Salazar, se tivesse de criar uma coleção, frisa que não seria pelo lado negativo. Chega de sombras, é preciso luz.

Reunião da organização da Moda Lisboa
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

O setor não pára, continua a viver, a existir, a fazer, apesar das contrariedades. A socióloga Cristina Duarte, professora e investigadora na área da moda e do design, considera que as atuais circunstâncias obrigam a olhar para este universo de outra maneira, tanto por quem cria, como por quem consome. “Por um lado, os designers de moda recém-licenciados já estudaram a sustentabilidade aliada à moda nos seus cursos.” Alguns, aliás, já desenvolvem linhas de vestuário slow fashion com materiais tradicionais e técnicas e saberes de gerações passadas. “Por outro lado, na frente de consumo, há uma tendência para a mudança de paradigma, com acesso aos mercados e/ou lojas de segunda mão, fazendo a roupa circular através de novos usos e, espera-se, novos costumes.”

A moda pode ganhar ou perder importância neste contexto tão atípico? A resposta não é linear. Para quem estuda a moda como fenómeno social, como é o caso de Cristina Duarte, há muitos fatores a ter em conta, além da pandemia. “Claro que há sempre um antes e um depois.… Que consumo é o nosso, quando surge uma situação de crise? Tudo depende de uma consciencialização por parte da nossa sociedade”, defende a socióloga.

Menos coleções, menos apresentações, e o digital parece que veio para ficar. Para Katty Xiomara, a ferramenta é boa para os mercados, não tanto quando se pretende que o público tenha a experiência da peça. “O digital é visto como uma grande tábua de salvação e é uma grande tábua de salvação para quem tem capacidade financeira para ativar esse mecanismo, que é ótimo.” Mónica Neto salienta que a digitalização da moda era incontornável e acabou por alargar-se às semanas de moda, numa perspetiva de adaptação a um contexto de maior restrição por causa da pandemia. “Não será este o futuro, mas será parte dele. Esta indústria, como muitas outras, vive também de networking e interação física. Pode voltar a ser mais restrita, mas voltará certamente a ser mais próxima dos seus profissionais”, sustenta.

Há perguntas sem resposta que são transversais, dúvidas que se sobrepõem nos fóruns de discussão internacionais do mundo da moda, e a incerteza sobre o amanhã é constante. “A moda é um setor que leva tempo a reorganizar-se, envolve muitas indústrias, envolve muitas coisas na sua cadeia”, lembra Eduarda Abbondanza, diretora criativa da ModaLisboa.

Mónica Neto, diretora do Portugal Fashion, vê solidez na moda nacional e lembra que a competitividade industrial é um pilar de sustentabilidade e de futuro. “A moda de autor e as marcas de cariz criativo são as vertentes menos sólidas e menos preparadas para dar a volta. É na marca própria que reside a nossa fragilidade, e também na consistente ligação entre indústria e design”, observa. Unindo tudo isso, e reforçando a promoção, a comunicação e a estratégia de negócio, acredita que há capacidade de reposicionar a indústria da moda. “No pós-pandemia, a moda será seguramente diferente, mas não necessariamente menos bem-sucedida. Pelo contrário.” Mas nada será como dantes.