Rui Cardoso Martins

Uma hora de herança

Todos ficaram descansados, até o arguido, um engenheiro careca, pareceu conformado. Tinha insultado a velha viúva do seu pai, sua madrasta, insinuando que ela, agora com 80 anos, há muitos anos se casara por dinheiro, escrevendo-lhe uma carta em que dizia que só conseguia ver o pai (um avarento rico) chamando a polícia, rebentando a caixa do correio da senhora e arrombando-lhe a casa, tentando desligar a água, a electricidade e o gás a uma recém-viúva, enfim, mais uma história de heranças que corroem a vida das famílias. Depois do pedido do Ministério Público, o trabalho era fácil para o advogado de acusação. O homem entrara na sala mansinho e manso, de voz trémula, esbranquiçado por recente doença e coberto na toga negra, pedindo desculpa pelo corpo convalescente, que todos lhe reconheceram com sofrida educação. Nos seguintes três minutos, a conversa foi digna das velhas arcádias e parnasos da oratória judicial. Começou o advogado:

– Com a devida vénia, vou tentar fazer as alegações sentado…

– Com certeza, sôtor, e como foi dito, se precisar de fazer algum intervalo… nós sabemos que o sôtor está a convalescer, atalhou a simpática juíza na sua beca.

Numa segunda vénia, continuou o advogado: “Em primeiro lugar, quero cumprimentar a vossa excelência meritíssima juiz com humildade e respeito e também dizer que não tenho que fazer nenhuma apreciação em especial, mas cumpre-me mostrar o apreço pela forma, pelo modo magnânimo, com equilíbrio e coração, pela sua tolerância que bem casam com o poder, com a justiça e o seu exercício. Por isso faço este cumprimento, porque creio que assim todos reconhecemos que a função magnífica que os tribunais têm na nossa sociedade é essencial. Cumprimento também a senhora magistrada do Ministério Público e o meu ilustre colega por quem renovo o agradecimento que já lhe fiz pessoalmente pela magnanimidade e pela bondade que também teve na consideração da particularidade que me afligiu. Cumprimento também a senhora funcionária pelo apoio aos trabalhos. E então centro-me agora no que diz respeito à alegação propriamente dita sobre o caso. Não serei tão sintético quanto gostaria, e talvez fosse bem conveniente, como o digno magistrado do Ministério Público que sintetizou aquilo que é essencial no sentido de que os três crimes de que o arguido vem pronunciado, porque vou mais além de alguma ‘nuance’ que me pareceu se poder inferir da compreensão dos comportamentos, e que eu diria que de facto os comportamentos do arguido são muito censuráveis e devem ser efectivamente reprovados e assinaladamente reprovados”.

Havendo pessoas no mundo que ainda falam deste modo, mesmo doentinhas, imaginem a hora inteira que se seguiu, sempre nestes termos que acabaram de ler. O cómico da situação foi quando se percebeu que a doença do advogado de acusação se curava acusando, porque quanto mais falava mais forças ele ganhava, e alimentava o discurso com lamentos, psicologias sobre as intenções moralmente reprováveis do arguido (diacho, já estou a escrever como ele fala!…), isto é, quanto mais cansados estávamos de ouvir o aborrecido advogado, mais saudável ele se sentia.

E repetia, repetia as expressões “crueldade”, “maldade”, “afronta” por parte de alguém que “tem o dever de controlar determinados impulsos e não os controla”, “desferir a estocada final”, “uma premeditação de anos”, “uma estruturação do momento em que ele faz coisas não só para prejudicar, mas para ferir, para ferir…”. Foi ao minuto 49 do solitário relambório, quando já parecia pronto a correr a maratona de S. Silvestre, e a audiência se despenhava no sono, que a juíza lhe cortou a palavra:

– Senhor doutor, peço desculpa por o incomodar, mas alerto-o para o tempo do artigo 360 do Código de Processo Penal, de que o doutor tem uma hora para as alegações, o senhor doutor começou às 11 horas e neste momento são dez para o meio-dia.

Dez minutos depois calaram-no à força e o advogado envelheceu vinte anos. Nasceu para a barra, dêem-lhe tempo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)