Texto de Filomena Abreu | Fotos de Artur Machado/Global Imagens
Tem havido problemas na cantina. Desentendimentos entre colegas. Assunto sério. Há quem não respeite a ordem da fila. A informação escapa pela porta aberta de uma sala onde um 6.º ano está reunido. Mesas em “U”. A professora sentada entre os alunos. Camuflada no silêncio. Deixa-os falar. De pé, uma menina vai dando palavra a quem põe o dedo no ar e regista tudo no quadro. É hora da Assembleia de Turma.
Um tempo comum com o diretor, mas este pouco intervém, a não ser para orientar. “Agora que já sabemos o que está mal, que soluções podemos propor?” Nova vaga de dedos em riste. Pontos para as ideias que fomentam o respeito e o civismo. É esse o objetivo – pôr o aluno no centro da atividade escolar. Dar-lhe liberdade, responsabilidade, incrementar nele o espírito crítico. E tem sido assim no Agrupamento de Escolas de Arouca, em Aveiro, que no ano letivo passado esteve entre as 235 escolas que integraram o projeto piloto da flexibilidade e autonomia curricular.
A proposta do ministério da Educação correu tão bem que, neste ano letivo, foi alargado a todas as escolas, através dos Decretos Leis da Educação Inclusiva e da Flexibilidade Curricular, que o queiram aplicar. Um programa que tem ajudado a revolucionar as salas de aula e dar outro entusiasmo a quem ensina e a quem aprende. As escolas passaram a poder gerir até 25% do currículo. O que lhes permite introduzir novas metodologias, alicerçadas no trabalho dinâmico e colaborativo.
Em Arouca, quando foram desafiados a entrar na experiência, usaram os projetos que já existiam no agrupamento, mas que não podiam ser introduzidos nos currículos dos alunos. Adília Cruz, a diretora, viu na proposta do ministério “uma forma de dar uma grande volta às coisas”. As mudanças começaram nas turmas do 1.º, 5.º, 7.º e 10.º anos (onde também entram os cursos profissionais).
Neste segundo ano letivo, as assembleias de turma já são comuns a todos os alunos do agrupamento. Mas há outros exemplos. “Sempre fomos muito bons na área das ciências. Temos uma oficina onde os alunos desenvolvem projetos por gosto.”
Alexandre e Celeste Justo estão no 10.º ano. Depois das aulas, têm passado algum tempo no laboratório a estudar o impacto dos incêndios nos caracóis e no musgo. Graças à autonomia e flexibilidade já podem negociar esse trabalho extracurricular com outras disciplinas. Escolheram o Inglês. Ou seja, hão de apresentar as conclusões do projeto na aula. E vão ganhar pontos na avaliação por isso.
“É uma forma de premiar os que querem ir mais além. Muitas vezes só nos focamos nos que têm dificuldades e esquecemos-nos de dar desafios maiores aos bons alunos”, recorda Adília Cruz. Noutro piso, uma turma do curso profissional de Multimédia partilha a sala com três professoras: a de Matemática, a de Física e a de Área de Integração. Juntos desenvolvem um projeto no âmbito do Domínio de Autonomia Curricular.
“Colocamos nestas horas o conhecimento de disciplinas diferentes. Apesar de ser intenso não é massacrante porque estamos a trabalhar em algo que propusemos e gostámos”, explica Márcio Pinho, 17 anos.
A indisciplina era, há muito, o grande problema do agrupamento de escolas Gonçalo Sampaio, na Póvoa de Lanhoso, em Braga. “Sendo que isso levava a que os resultados estivessem num patamar abaixo do desejável”, conta a diretora Luísa Dias. Por isso, a escola decidiu “apostar no resultados sociais”.
E assim surgiu, há quatro anos, o programa de gestão e mediação de conflitos em contexto escolar. Que antes não contava para nota, mas que depois de ter passado no crivo do projeto-piloto passou a poder integrar o currículo de cerca de 80 jovens voluntários, do 8.º e do 9.º anos, que abdicam dos intervalos e que ajudam os colegas, inclusive na hora de almoço, a resolver conflitos que surjam provocados por zangas, ameaças físicas ou verbais.
A mediação, que também é uma forma de prevenção de bullying, tem potenciando “a valorização das atitudes que está expressa no Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória e na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania.” “Documentos importantíssimos do ministério da Educação, onde se reconhece que, além do conhecimento, deve haver um forte investimento nas capacidades e atitudes dos nossos alunos.” Caso contrário, “mesmo os mais dotados, terão fortes constrangimentos para entrar no mercado de trabalho, que já não seleciona só pelas pontuações máximas obtidas à saída das universidades”.
“O tempo dos marrões acabou”
Os resultados estão à vista, aponta a diretora. “Houve uma diminuição de conflitos no recreio e uma melhoria do ambiente no refeitório”. A tarefa desta “brigada” – que veste colete, usa crachá e anota tudo nos bloco de ocorrências – extravasa os portões da escola, conta Francisca Lopes, 14 anos, uma das alunas. “Sinto que os meus colegas percebem que não podem fazer algo de mal quando estamos por perto e que também não devem fazê-lo quando não estamos. A mediação não é só em contexto de escola, é também para levar para a nossa vida fora dela: em casa, na rua, com qualquer pessoa.”
Lara Cave acrescenta que voluntariar-se foi das “melhores coisas” que fez. “Mudei o meu comportamento. Passei a ver as coisas de forma mais positiva e a perceber que na escola somos todos uma família.” Maria Vale, a mãe da Lara, não só apoia o projeto, como todas as reformas que a autonomia e a flexibilidade possibilitam. “Dentro de casa, tento fazer o meu papel, mas ela passa um tempo considerável na escola. De facto, se nos focarmos só no conteúdo, não estamos a formar seres humanos preparados para as exigências diárias da sociedade. E nós precisamos de seres interventivos e autónomos.”
Já dentro das salas, Luísa Dias, a diretora, é a favor da “anarquia controlada”. Entenda-se: “O tempo dos marrões acabou”. Porque neste contexto já não contam só os testes, o conhecimento, mas também (e muito) as atitudes. “Já não podemos ter os alunos sentadinhos e caladinhos a ouvir o professor porque os alunos são o centro. É essa a escola que todos nós precisamos. Uma escola que demonstre as capacidades de cada um, que muitas vezes estão encobertas”. E termina: “É impressionante perceber como os alunos que antes não estavam contemplados no mérito dos conhecimentos se revelam líderes na cidadania. E tudo isto é um desafio para os alunos, para os professores e para os pais.”
Os pais são um dos grandes capítulos desta história. Que pode muito bem começar com o testemunho de uma aluna de oito anos, a quem vamos chamar Júlia. “Aqui não nos dão trabalhos de casa, mas a minha mãe diz que tenho de fazer porque na escola a seguir vou ter muitos e tenho de estar habituada.” Minutos antes, Joana Pinto, da direção geral da Casa do Cuco, no Porto, um estabelecimento de ensino privado que tem creche e 1.º ciclo, abordava o tema. “Eles não levam os livros para casa, não têm trabalhos de casa, é das primeiras coisas que comunicamos aos pais”.
Mas do outro lado a reação nem sempre é favorável. “Toda a sociedade está balizada pelas médias, pelos rankings e os pais têm medo que se não houver trabalhos de casa então não se está a puxar por eles”. Carla Pereira, coordenadora do 1.º ciclo na escola, dá seguimento ao tema. “Julgam que por não haver TPC não haverá método de estudo e de trabalho quando chegarem ao 5.º ano, onde há imensos testes e trabalhos de casa. Tentamos tranquilizá-los, explicando que aqui os alunos trabalham o suficiente, dão o melhor de si todos os dias.” Portanto, o natural seria depois da escola eles poderem “contar as coisas deles, fazer desporto ou outro tipo de atividades.”
Aprender no exterior é das coisas que os pequenos mais gostam na Casa do Cuco. “Investimos muito na parte de artística e no envolvimento deles com a natureza. Claro que temos que cumprir aquilo que nos é obrigatório pelo ministério, principalmente no 1.º ciclo, mas podemos dar o currículo de forma diferente”, revela Joana. É assim que muitas vezes têm Português no jardim, Estudo do Meio na horta e Matemática na cozinha. Mas qualquer uma das disciplinas também poderá ser lecionada na sala de música, no ateliê de olaria, na sala de teatro ou na oficina de carpintaria e tecelagem.
“Eles participam na descoberta dos conteúdos. Nós só orientamos, para que sejam alunos mais curiosos, mais ativos, que se exprimam de formas diferentes, que façam debates, que façam pesquisa, que coloquem questões, que saiam da caixa”, reforça Carla. Pelo meio de tudo isso ainda há o ioga e a meditação, para os ajudar na gestão das emoções. Desde bebés. “Não nos focamos muito em que eles sejam muito bons às nucleares, interessa-nos o todo. Daqui por 20 ou 30 anos eles vão ser o quê? Isto está a mudar tanto que acho que o segredo é dar-lhes capacidade para na oralidade dizerem o que pensam, não terem medo de falar em público, etc. São essas técnicas que no futuro lhes podem dar jeito”, afirma Joana.
“Por isso, estamos a puxar pela criatividade deles, pela autoconfiança e pela autoestima”, remata Carla. A pequena Júlia não quer mudar de escola. “Adoro andar aqui. A minha irmã diz que tenho muita sorte porque faço coisas que ela não faz. A escola dela só tem um recreio com cimento e a minha tem um jardim. Aqui todos aprendem à sua maneira. Eu já percebi tudo. Só há uma coisa que ninguém entendeu bem ainda ” O que é? “O sistema reprodutor.” Haverá de chegar a hora. Antes disso, as educadoras esperam que a entrada para o ensino superior deixe de ser por médias e haja outros critérios de admissão.”A aplicação da autonomia e da flexibilidade tem de acabar por ter outra dinâmica.”
“Uau, que fixe!” O entusiasmo tem vozes tenras de meninos. Sai de uma das salas do Jardim de Infância Porta Aberta. A responsável pelo alvoroço é Maria João Estevão, professora de Ciências e Matemática do 1.º ciclo, de uma outra escola do agrupamento da Gardunha e Xisto, no Fundão. Para deixar os pequeninos de quatro e cinco anos espantados, a docente limitava-se a colocar tinta de óleo de diversas cores num recipiente onde, com a ajuda deles, mergulhava as bolas de esferovite. Depois de perceber que as tintas, por não se dissolverem na água, se agarram aos objetos, o pequeno Miguel Lopes perguntava se podia fazer a experiência em casa. “Parecem planetas”.
A professora, “que veio da escola dos meninos grandes”, como eles costumam dizer, vai frequentemente ali “fazer magia”. Não tanto pelos conceitos que eles possam adquirir. “A maior parte ainda tem uma compreensão muito pequena. O importante é despertar-lhes a curiosidade”, defende Maria Gavinhos, a educadora que cedeu a sala para a sessão de Ciências. Às vezes é o contrário, são os seus meninos que vão às salas dos “grandes” do 1.º ciclo, onde irão ingressar em breve. “Precisamente para eles começarem a conhecer o espaço, o meio, as regras.”
Essa colaboração entre professores também acontece com os alunos do 1.º e do 2.º ciclos e tem ajudado a diminuir os problemas na transição dos anos. “Conhecem os professores e alguns colegas e desenvolvem conhecimentos que vão encontrar, por exemplo, numa sala de Ciências. E, depois, há a dimensão das competências sociais, o respeito e toda essa partilha gera uma consciência de cidadania que necessariamente tem de melhorar os comportamentos”, garante a diretora do agrupamento, Cândida Brito. E a avaliação? Pois, responde a professora Maria João Estevão, “é tudo muito lúdico, mas tem de haver uma formalização”. Mesmo na pré-primária.
E como é que se põem meninos que não sabem escrever a fazer relatórios? “Muito simples, com a linguagem que eles conhecem, o desenho. É um instrumento de avaliação como outro qualquer, mas sem esse stresse de estarem a ser avaliados”. Algo que esbate um bocadinho, quando chegam ao 2.º e 3.º ciclos. “O impacto do relatório, que é sempre uma coisa que os assusta muito, não vai ter esse peso”, garante a professora.
Ana Batista, 11 anos, tem mochila, mas não leva livros lá dentro. É aluna do Agrupamento de Escolas da Boa Água, em Sesimbra, que ao contrário das outras não tem 25% de flexibilidade e autonomia. Tem 100%. Isto por ser uma das setes escolas PPIP – Projeto Piloto de Inovação Pedagógica – do país. O objetivo dessa carta branca por parte do ministério da Educação é combater o insucesso, implementando soluções que diminuam a taxa de retenção nas escolas. Através da criação de projetos audazes, adequados às necessidades dos alunos.
Mesmo que Ana Batista não perceba o porquê de passar a ter aulas com os alunos do 5.º ano, sabe que as coisas estão melhores agora. “É diferente trabalhar e partilhar ideias em grupo, aprendo mais a conversar do que quando estava sentada só a ouvir o professor falar.” As aulas tradicionais ainda acontecem, explica o diretor da Boa Água Nuno Mantas, mas só quando é necessário. “As aprendizagens são essencialmente informais.”
Neste caso, em grupos de quatro alunos, misturando turmas do 5.º e do 6.º anos (porque há vantagens dentro do mesmo ciclo). Mas se o professor não ensina, o que faz? “E se o professor ensinar o aluno aprende?”, pergunta Nuno, para logo a seguir responder. “Por vezes, para o aluno aprender é necessário que o professor ensine, mas a maior parte das vezes só é necessário que ele prepare os trabalhos, oriente, faça o acompanhamento do grupo, faça avaliação e faça a consolidação.” Ou seja, “até pode ensinar no fim, mas todo o processo deve implicar que o aluno aprenda e perceba porque é que está a aprender”.
Isto obriga a que os docentes, por não serem a única fonte de conhecimento, precisem de ser capazes de se reinventar dentro da sala. Foi assim que desapareceu a indisciplina e apareceram os resultados. “A indisciplina vinha do “está calado, vira-te para a frente, ouve o que estou a dizer.” Ora, se eles estão em grupo, se estão envolvidos no trabalho, esses comportamentos deixam de fazer sentido”. Outra questão são os trabalhos de casa. “Não sei se têm”, diz o diretor. “Eles sabem que se não fizerem as tarefas na sala de aula têm que as fazer em casa, porque têm um plano quinzenal a cumprir.”
Os manuais só precisam ser comprados se os pais quiserem. Há uns adotados, mas é para trabalhar em digital. O que torna engraçado a entrada numa sala de aula, onde há um caos ordenado. Barulho, fichas, telemóveis e tablets nas mãos. No entanto, os docentes sorriem e garantem: “Eles estão mesmo a trabalhar. E trabalham melhor do que nunca”. O diretor põe o dedo na ferida. “Os professores queixam-se que não temos alunos autónomos. Pois não. O que fizemos foi treiná-los para serem totalmente dependentes. Dando-lhes as páginas dos livros, os exercícios, o teste, a correção. Quando eles querem dizer alguma coisa eu mando-os calar e prestar atenção. Eles fazem uma pergunta e dizemos “isso não está na matéria”. Assim, mata-se a autonomia, a criatividade, mata-se a responsabilidade, a intervenção, a oralidade e uma série de coisas.”
Nesta escola e nas demais que visitámos, há só uma grande preocupação. Armindo Serra, professor de TIC na Boa Água, será o porta-voz. “O grande entrave a estas novas metodologias poderão ser os exames nacionais, porque o que se procura muito neles são conteúdos, conteúdos, conteúdos. E o que temos estado a trabalhar com estes garotos são as competências.” Sobre isso, o Ministério da Educação responde que “já foi publicada a carta de solicitação dos exames nacionais, que explicita que os referenciais são o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e as Aprendizagens Essenciais”.
Acrescentando que, “numa análise aos resultados dos exames dos últimos dez anos, verifica-se que os alunos têm piores resultados nas questões relacionadas com análise, interpretação e raciocínio, que são exatamente o que se pretende trabalhar e aprofundar com as novas metodologias”.
“Experimentar, experimentar”
Nos Aprendizes, as metodologias são outras há muitos anos. A começar pelo jardim da casa, onde uma cadela brinca entre as crianças. “É o lado esotérico da escola”, brinca Sofia Borges, a dona e diretora do estabelecimento de ensino privado, em Cascais. Quando há 11 anos iniciou o projeto, nunca quis que fosse “diferente”. Só ambicionava “aquilo que achava que melhor potenciava o desenvolvimento de cada uma das crianças, para virem a ser seres humanos capazes de contribuir para uma sociedade sustentável.” Nesta escola privada, que tem alunos da pré-primária ao 6.º ano, tudo é feito tendo por base a experiência.
“É a nossa filosofia: experimentar, experimentar, experimentar. A generosidade, o cuidado com o ambiente e tudo o resto, sempre ao ritmo de cada um.” Sem manuais, vai-se seguindo o currículo dando, a determinado momento, provas de que os alunos estão a evoluir e a adquirir competências. Como? O primeiro passo é pô-los em contacto com os conceitos. Se a ideia é que percebam na disciplina de História a Invasão de Ceuta, então os alunos invadem o refeitório. Se o professor de Físico-Química quer que eles percebam o movimento, os alunos saltam para as hoverboards. Para aprenderem as frações em Matemática, podem partir maçãs em pedaços. Desta maneira, “em vez de decorarem, vão aceder, sempre que quiserem, à experiência que tiveram”. O que se revela “muito mais giro do que mostrar powerpoints”.
Para Sofia, “se as aulas vão dizer o mesmo que um vídeo do Youtube ou um texto do Google, então a escola não serve para nada”. A recente liberdade concedida às escolas serve precisamente para tornar o ensino mais sedutor e útil. Mas antes foram precisas provas de que o caminho era por aqui. “Todo o percurso que temos feito na Educação, com verdadeiras mudanças estruturais, tem sido acompanhado com enorme preparação e auscultação, recorrendo à implementação de projetos-piloto”, disse à NM Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação.
A Flexibilidade e Autonomia Curricular, conclui o governante, “não é um fim em si mesmo, mas um conjunto de ferramentas que estão agora à disposição das comunidades educativas e que lhes permitem melhorar as aprendizagens e trabalhar mais eficientemente contra o insucesso escolar, aumentando a equidade”. É é por tudo isso que se torna inegável que há uma verdadeira (r)evolução escolar em curso.