Texto de Sara Dias Oliveira
João André Cardoso tem em si vários mundos que moldam a sua maneira de ser e de estar na vida. Em Londres, interiorizou a pontualidade britânica. Em São Paulo, tornou-se mais emocional na partilha do que lhe vai na alma. Em São Francisco, percebeu o valor do pragmatismo nos negócios. Em Paris, aprendeu a ser direto na forma de comunicar. Nunca perdeu a arte do desenrasque de Portugal, aquele jeitinho de dar a volta. “A minha forma de ser e de trabalhar acaba por ser um resumo dos países onde estive.” É um exemplo da nova vaga da emigração portuguesa.
Sai de Leiria aos 18 anos para estudar Economia em Lisboa. Aos 21, está a estudar em Bruxelas, e hoje, aos 36, lidera uma startup de seguros em Paris, a Lovys, conhecida como a Netflix dos seguros em França e que acaba de receber uma injeção de capital de 3,3 milhões de euros. Gere uma equipa de 18 pessoas, de oito nacionalidades, tem centenas de clientes. E é o acionista maioritário da Tá Certo, startup que fundou no Brasil em 2011, primeiro fornecedor de seguros numa plataforma digital e que permite subscrições mensais, procedimento inédito num país com mais de 200 milhões de habitantes.
“Vivemos num Mundo maravilhoso. O único limite é a própria imaginação.” Aos 22 anos, está em Londres como analista no melhor banco de investimentos do Mundo, na Morgan Stanley. Na altura, sabe que é uma “ave rara”. “Há tanto Mundo por descobrir, vou desafiar-me ao máximo para ser a melhor versão de mim mesmo.” Assim pensou, assim foi. Quatro anos na banca, dois anos num fundo de investimento em Londres e, enquanto isso, a apalpar terreno para instalar o seu próprio negócio no Brasil. Aos 28 anos, aterra em São Paulo e cria a Tá Certo.
Muda a agulha no país habituado a comprar seguros a corretores, a empresa cresce rapidamente, uma média de mil novos clientes todos os meses, 150 funcionários no final de 2014. “Inovámos neste mercado, criámos um modelo de distribuição diferente, baixámos os preços, tornámos o negócio mais transparente e seguro para os clientes.”
O colapso do real no início de 2015 coloca tudo em perspetiva. Cria uma plataforma tecnológica com imobiliárias para vender seguros no momento da compra de habitação. Não corre mal. Nos últimos seis meses de 2016, muda-se para São Francisco, Estados Unidos, para analisar novos territórios e decide apostar na Europa. Muda-se para Paris com vontade de ser disruptivo num “mercado mais sofisticado” com o mesmo produto do Brasil mas com novas tecnologias.
A emigração é um fenómeno que marca Portugal. De várias formas e feitios. A percentagem de emigrantes portugueses a viver na Europa tem aumentado: de 16% em 1960 para 53% em 1990, de 62% em 2015 para 66% em 2017, nas estimativas das Nações Unidas. No final de 2017, Portugal é o país da União Europeia com mais emigrantes em proporção com a população residente. Nesse ano, 22% dos portugueses vivem fora do país.
João Cardoso é um deles e um dos rostos de uma nova vaga de emigrantes, diferente da dos anos 1960 e 1970. “Já não há o sentimento de inferioridade. Os portugueses que estão fora vibram com o nosso sucesso, têm orgulho.” As saudades atenuam-se todos os dias num ecrã, num telemóvel, numa chamada em tempo real, em vídeos e mensagens. A distância deixou de ser um peso no coração. E França, onde João Cardoso tenciona ficar algum tempo, continua a ser o país do Mundo onde vive o maior número de emigrantes nascidos em Portugal, mais de 615 mil em 2017.
O clima, a gastronomia, o jeitinho de receber
Depois de França e da Suíça, os Estados Unidos da América são o terceiro país onde residem mais emigrantes portugueses, eram 148 mil em 2016. Filomena Gomes, 34 anos, natural de Braga, é nutricionista em saúde pública, trabalha no 40.º andar do World Trade Center, no coração de Nova Iorque. Gere programas do Sackler Institute for Nutrition Science, que pertence à Academia de Ciências de Nova Iorque, que colabora com a Unicef, a Organização Mundial da Saúde, a Fundação Bill e Melinda Gates, entre outras organizações internacionais. É a única portuguesa num instituto com cerca de 80 funcionários, desenvolve projetos de nutrição, muitos dos quais em países em desenvolvimento, como o combate à deficiência de tiamina no Cambodja ou a múltiplas deficiências nutricionais em grávidas de Madagáscar.
Há dez anos que vive e trabalha fora de Portugal. Sabe que tem a vida mais facilitada quando compara com a emigração do século passado. “Não consigo imaginar o que seria passar meses sem fazer uma videochamada entre a minha filha e a família em Portugal, nem quero imaginar o que seria ir a casa apenas uma vez por ano”, diz numa chamada por skype, a partir de Nova Iorque. É uma nova geração melhor qualificada e preparada, quanto mais não seja, enfatiza, “com algum domínio da língua do novo país”.
O trajeto tem valido a pena por várias razões: “Oportunidades profissionais únicas, pela exposição a uma grande diversidade cultural, pelas amizades fortes que ficam por todo o Mundo”. No quinto ano da licenciatura muda-se para San José, Califórnia, para um estágio. A primeira saída mostra-lhe que há mais chão. “Foi essa experiência que me fez pensar que podia ir um bocadinho mais além, na quantidade e variedade de experiências que estavam à disposição”, recorda. Volta a Portugal, trabalha na Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso. Um ano depois, é selecionada entre mais de dez mil candidatos para um estágio na Comissão Europeia em Bruxelas, onde trabalha na legislação alimentar.
Cinco meses depois, muda-se para Londres para tirar o doutoramento em Ciências da Nutrição no King”s College, conduz estudos para determinar a associação entre o estado nutricional e os desfechos clínicos no pós-AVC, colabora no desenvolvimento de linhas de orientação nacionais nessa área, e arranja trabalho num hospital como nutricionista clínica e investigadora num projeto sobre desnutrição em idosos. Em 2015, muda-se com o marido para Zurique, Suíça, e cria dois empregos em duas cidades. Numa, desenvolve um novo serviço de nutrição numa clínica de reabilitação para doenças neurológicas; noutra, integra uma equipa de investigação para colaborar em ensaios clínicos sobre desnutrição em contexto hospitalar. À noite, aprende alemão. No início de 2018, muda-se para Nova Iorque com o marido e a filha de meses.
Nunca esquece as raízes. “Não podia ser mais orgulhosa do país onde nasci e onde me formei como nutricionista.” Tem saudades do clima, das praias, da gastronomia, da família e dos amigos, dos sotaques típicos, daquele jeitinho de receber, da atenção especial do comércio tradicional, do sapateiro ao empregado do café da esquina. O regresso não está afastado. “Continuo a ter como objetivo de vida um dia regressar a Portugal e contribuir para a melhoria do país, com os conhecimentos que vou adquirindo fora dele.”
Outras prioridades, uma forma de crescer
Tiago Fernandes é informático, tem 30 anos, também é natural de Braga, também pensa voltar, mas não sabe quando. Neste momento, trabalha na Google, em Dublin, Irlanda, como gestor de produto. A Irlanda é, atualmente, o 17.º país para onde os portugueses mais emigram, com subidas e descidas nestes números. Eram cerca de quatro mil em 2016.
“A nova emigração é feita de pessoas qualificadas com outro tipo de pensamento. Vivemos mais a vida, já não vamos com o intuito de sofrer tanto, de trabalhar muitas horas. A cultura, as viagens, o conhecer são a nossa riqueza.” As prioridades mudaram. “Apesar do caminho que percorremos ser diferente, o objetivo acaba por ser o mesmo: voltar a Portugal.”
Segundo o Eurostat, 16,1% dos portugueses que residem no espaço europeu são licenciados, um aumento de 10,5% relativamente a 2007. Mesmo assim, Portugal está na lista dos países da União Europeia em que os emigrantes possuem um nível de educação inferior comparativamente aos que permanecem no país de origem. E não está sozinho. Bulgária, Croácia, Luxemburgo, Estónia, Lituânia e Letónia estão do mesmo lado. Em 2017, Portugal manteve a maior percentagem de emigrantes não qualificados no espaço europeu, seguido da Bulgária e da Grécia. São os portugueses menos qualificados que continuam a sair para trabalhar noutros países europeus.
Tiago Fernandes contraria esse cenário, não encaixa no perfil. Antes da Google, vários países. Três anos e meio em Brno, na República Checa, a trabalhar na multinacional informática IBM. Entra como helpdesk, chega a gestor de uma equipa de 50 pessoas. Uns meses antes, está em Istambul, Turquia, na coordenação do gabinete de receção aos alunos estrangeiros. E é numa pequena cidade da Polónia, durante o Erasmus do curso na área de informática industrial, que percebe que havia mais mundo e que o Mundo não era todo igual. “Foi o primeiro passo que me abriu os horizontes, para explorar o Mundo e mais de mim próprio. Estar fora do país dá um crescimento enorme, ver como outras pessoas trabalham, conhecer outras culturas. É sempre mais uma experiência, uma forma de crescer. Se for preciso, parto para outra aventura.” Com a ideia do regresso na cabeça.
Para Rita Ochoa, arquiteta, 43 anos, de Lisboa, a emigração nunca foi um mundo estranho. A história que a avó lhe contava do bisavô que deu a volta ao Mundo para perceber como funcionavam os sistemas políticos, por volta de 1905, está viva na memória. Tal como as idas e vindas dos familiares emigrados nos anos 1970 e 1980. Nessa altura, tão miúda, não entendia as longas viagens muitas vezes sem paragens para dormir. “Não conseguia perceber por que vinham sempre a Portugal, para a aldeia, e não sentiam vontade de ir para outros sítios passar férias.” Em criança, viveu um ano na Suíça e isso conta. “Ajuda imenso a abrir horizontes, a perceber que o Mundo é muito maior.”
Vive e trabalha em Manchester, Reino Unido, há quase seis anos. A primeira mulher e a primeira estrangeira na gestão do gabinete de arquitetura AFL, com 80 funcionários e trabalho nos cinco continentes. Há cerca de um mês, estava no Japão e agora tem entre mãos a construção de um estádio de futebol em Londres. O Brexit retraiu a emigração, mas não os planos de Rita, que faz parte dos 131 mil emigrantes portugueses que lá moram. De 2016 para 2017, o número de entradas de portugueses no Reino Unido teve uma quebra de 26%. Ainda assim 23 mil portugueses mudaram-se para o Reino Unido em 2017.
Trabalhou noutros países, deu formação e aulas no Lobito, Angola, esteve envolvida na construção de um estádio em São Petersburgo, Rússia. Entre Lisboa e outras geografias, vem a crise e Inglaterra parece-lhe boa ideia. “Tinha imenso para aprender, imenso para dar.” Envia por e-mail o portefólio para uma agência de emprego numa quinta-feira à meia-noite e às oito da manhã do dia seguinte tinha resposta. Na semana seguinte, sete entrevistas em Inglaterra e a possibilidade de ficar onde queria. Muda-se de malas e bagagens. “Valorizo muito a amplitude da visão que fui ganhando do Mundo”, conta.
Outros horizontes, outras oportunidades
Renato Silva, 46 anos, de Oliveira de Azeméis, também tem uma visão alargada do Mundo. É inquieto. Nas férias do liceu e da universidade, partia de mochila às costas para a apanha da maçã em França para melhorar o francês, trabalhou num restaurante italiano em Londres para aperfeiçoar a língua.
Neste momento, trabalha na Maersk, líder mundial do setor de transporte marítimo, multinacional dinamarquesa com negócios em mais de 130 países. É diretor do serviço de apoio ao cliente a nível global da Safmarine, empresa adquirida pela Maersk, e responsável pela mesma área para a região da África Subsariana de todo o grupo. Num mês, passa uma semana em Copenhaga, duas semanas a trabalhar a partir de casa na ilha espanhola de Menorca, alguns dias na Cidade do Cabo na África do Sul e viaja por todo o Mundo. Quando entra na cantina na sede da empresa, em Copenhaga, encontra gente de 85 nacionalidades.
A miscelânea cultural faz parte dos seus dias. Quando se anda pelo Mundo não se é verdadeiramente nada, é-se um bocadinho de tudo. Sente-se um pouco assim sem cortar o cordão umbilical. “Conheço novos mundos, novas maneiras de pensar, aprendo novas realidades, não deixando de respeitar as minhas origens e honrar as minhas raízes”, sublinha. Faz parte da nova geração de emigrantes. “Há um enfoque maior em fazer algo em que se sinta orgulho e não tanto no que dê mais dinheiro.”
Portugal é o quarto país da União Europeia com mais cidadãos em idade ativa, cerca de 848 mil, a residir noutro país da Comunidade Europeia, apenas superado pela Roménia, Lituânia e Croácia. Os dados são do Gabinete de Estatística da União Europeia. Renato Silva está nestes números. Licenciado em Relações Públicas e Internacionais, entra na Maersk para as vendas no norte de Portugal. Dois anos como executivo de vendas, mais dois como chefe de vendas. Depois Madrid, para chefiar um departamento de preços e produtos na América do Sul e América do Norte. Dois anos na capital espanhola. Segue para Casablanca, Marrocos, como coordenador da integração desse país na área do grupo da Península Ibérica.
Dois anos depois novamente Madrid como responsável pelo serviço de apoio ao cliente de Portugal, Espanha e Marrocos. Três anos e meio em Madrid. Nova restruturação, muda-se para Valência, Espanha, como diretor-geral da Safmarine para a região ibérica, onde fica quatro anos. Passa por Lisboa, no cargo de diretor nacional, durante 14 meses. Mais mudanças e a proposta de instalar-se em Varsóvia, na Polónia, como diretor comercial da Maersk da Europa Central e Oriental. Um ano e meio na capital polaca. Passa a diretor do serviço ao cliente a nível global da Safmarine. Vai para Copenhaga, fica dois anos e meio até negociar a situação em que agora se encontra. Adaptou-se rapidamente à mentalidade nórdica. “É uma empresa dinâmica, em constante mudança, nada é adquirido. Há uma hierarquia e respeito pela individualidade.”
Quase 2,3 milhões de portugueses são emigrantes, mas a emigração portuguesa tem vindo a diminuir desde 2016, depois de, nos últimos anos, ter atingido o pico em 2013 e 2014, quando saíram do país mais de 120 mil portugueses. Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística indicam que saíram do país 81 051 emigrantes em 2017.
Paula Tulha não se sente a emigrante típica, que se encaixa no perfil do antigamente. É engenheira geotécnica, tem 43 anos, é do Porto, trabalha em todo o Mundo. Faz análises de solo para fundições em água, estudos para companhias petrolíferas. Este ano, esteve no Brasil e na Guiana. No ano passado, no Senegal, no Azerbaijão, no Gana e no Brasil. Passa quatro a seis meses do ano fora de Portugal, sobretudo em plataformas petrolíferas. Se não fosse engenheira, seria hospedeira/assistente de bordo. Sempre gostou de viajar.
Em 2001, vai para Holanda tirar o mestrado na Universidade de Delft. Era para ficar dois anos, ficou 11 anos. Arranja trabalho numa multinacional holandesa da indústria de exploração e produção de petróleo e gás. Em 2012, vai para o Rio de Janeiro, Brasil, e trabalha no mesmo setor. No início de 2016, regressa a Portugal. Adora o que faz, mesmo que a mala não tenha sossego, e prefere usar a palavra “desafiador” à palavra “complicado” quando fala da vida e das suas opções.
O Mundo é global, o distante se faz perto, os emigrantes de ontem não são os mesmos de hoje. “É muito diferente, as razões são outras. Os emigrantes desta nova geração vão mais pelas oportunidades geradas, não tanto por questões económicas. Não somos escravos do trabalho da maneira como era antigamente. Gastamos o dinheiro que ganhamos, temos um horizonte diferente, outras informações, novas tecnologias. Não nos acomodamos, temos de criar as nossas próprias oportunidades”, acrescenta Paula Tulha. E, quando se sai, percebe-se o valor de Portugal. “É o melhor país do Mundo.” Ontem, hoje, sempre.