Bola atrás de bola, número atrás de número, sem parar. Paredes cheias de ecrãs, cartões amarelos, azuis, brancos, marcadores para marcar, riscar, sublinhar. Canta-se linha, ouve-se bingo. Todos os dias, até de madrugada. Há menos salas, menos faturação, a concorrência aperta, arranjam-se estratégias para manter a clientela agarrada à cadeira e atrair a juventude. Bebidas mais baratas, comes e bebes gratuitos, espumante e marisco à borla. Entrámos neste mundo sem janelas, onde se ganha, onde se perde, e onde a sorte pode espreitar.
Faltam alguns minutos para que o Bingo do Estrela da Amadora, edifício de rés-do-chão cinzento, numa zona residencial da Reboleira, abra a porta da sala. Ainda não são três da tarde, é sexta-feira, dia a seguir a feriado, meio do mês, e a fila anda pelas 30 pessoas, homens e mulheres, na sua maioria com mais de 60 anos. Os que entram à primeira hora têm direito a almoço gratuito, pode ser um bife para comer de faca e garfo, pode ser uma coisa mais ligeira, bebidas, café, gelados. Na sala, também cinzenta, conferem-se as bolas para mais um dia de bingo que terminará às três da manhã. Empregados e empregadas posicionam-se, distribuem as listas com o menu de almoço, o jogo está prestes a começar.
Moedas e notas em cima das mesas, cartões amarelos, marcadores vermelhos. Joaquim Costa, 71 anos, da Damaia, sempre gostou do ambiente noctívago dos bingos e casinos. É de dia, mas sem janelas esquece-se que o sol brilha lá fora, as paredes têm ecrãs com indicação das bolas sorteadas, dos prémios de jogo, dos petiscos e bebidas que saem de uma cozinha que não se vê – tapas no prato a 3,5 euros, amêijoa à Bulhão Pato a 3 euros, gambas à la guilho a 3,5. Mesas de mármore, cadeiras de couro preto. “Estamos cá para nos distrairmos, encontrar amigos, como não há um clube para jogarmos sueca, vimos para o bingo. Onde é que os reformados podem ganhar dinheiro? É no bingo, não é?”, brinca. Costuma sentar-se no mesmo lugar, pelo sim, pelo não.
João Preguiça, de 75 anos, de Benfica, colega de jogo, concorda com o que diz. Jogam, conversam, por vezes contam anedotas, mas sempre com o olho nas bolas que saem, nos números que vão sendo debitados uns atrás dos outros. Joaquim Costa, volta e meia, cantarola baixinho umas músicas, alguém na mesa sugere que tente a sua sorte num programa de televisão, todos riem.
Alguém faz linha, segue-se para bingo. Joaquim, reformado da função pública, costuma ir ao bingo às terças e sextas, à noite vai com a mulher ao casino. “Só gasto aqui o que posso e mais nada”, garante. João Preguiça é mais assíduo. “Só não venho ao bingo no Natal e na Páscoa”, revela. “Às vezes, ganha-se.” No dia anterior, ganhou 50 euros nos cálculos entre o que gastou e o que levou para casa. Já fez bingos, alguns de respeito. “É uma distração que fica cara se não se ganha”, comenta Joaquim Costa. “É um jogo em que tanto se ganha como se perde”, acrescenta João Preguiça.
A linha começou em 2,06 euros, a meio da tarde já vai em 16,40, o bingo em 54, a sala vai ficando mais composta, as vozes masculinas e femininas vão debitando número atrás de número, sem intervalos, os clientes assinalam-nos nos cartões. Joaquim e João abandonam o bingo antes das cinco da tarde sem linhas, sem bingos. Por eles, está feito, por hoje. Paulo Soares, de 49 anos, chega para jogar, conhece bem o meio, trabalhou nele, admite que gosta daquela adrenalina, mas queixa-se. “Agora, o bingo não dá nem metade. Dantes havia filas à porta, hoje até se escolhem as cadeiras.” A responsabilidade, na sua perspetiva, está do lado de quem manda. “Quem gere é quem faz a casa.”
Quanto mais gente na sala, mais cartões vendidos, mais o valor das linhas e dos bingos sobe. Mais jogadores, melhores os prémios em jogo. O Bingo da Trindade, numa rua de sentido único na baixa do Porto, é uma sala bonita, alcatifa vermelha, cadeiras a condizer, dois pisos abertos, de teto único, em baixo para não fumadores, em cima para os que fumam, a máquina das bolas na escadaria que liga os dois andares. Há 29 anos que a sala de cinema se transformou em bingo, primeiro do Salgueiros, a partir de dezembro de 2012 entregue a uma concessionária que remodelou o espaço e colocou um elevador para facilitar a mobilidade. São 572 lugares e empregados vestidos a rigor. O parque de estacionamento é gratuito, basta entregar o ticket na receção.
Às quartas-feiras é a festa do marisco, bar aberto com comida e bebida à descrição. O buffet é ambulante, os carrinhos com salgados, sandes, cachorros, espumante fresco, vão a todo o lado, os quentes, e há creme de marisco, chegam de bandeja. É véspera de feriado, o final de tarde está a meio gás, à medida que as horas avançam, mais gente, mais jovens, que chegam sobretudo em grupo, e a sala começa a ficar mais composta. Em média, por hora, fazem-se oito jogadas com cartões que custam um euro.
Há um senhor, cabelos brancos, óculos colocados quase na ponta do nariz, olhos atentos. É binguista militante, do tempo do dinheiro em escudos e contos e das pesetas quando tentava a sorte em Espanha. Não será um dia de sorte no jogo. Por volta das nove da noite, o bingo já anda pelos 130 euros, quem ganha tem troféu em cima da mesa, o cartão é levado para confirmar, o prémio chega no final da jogada e manda a tradição que se pague os cartões a quem se encontra na mesa, conhecidos ou não, na jogada seguinte. E as mesas cheias de petiscos e de bebidas.
É terça-feira à tarde, o bingo abriu há pouco tempo, Jaime Pereira, aposentado de 60 anos, chama o elevador do Bingo da Trindade. Duas a três vezes por mês, joga com a ideia de gastar 10 euros e tenta cumprir a regra que ele próprio estipulou. “É um divertimento, é como ir ao cinema e comprar um bilhete, e tudo o que vier a mais é um extra.” Não tem razões de queixa e nunca mais se esquece dos 700 contos que ganhou em abril de 1997.
“É como um desporto, um divertimento. Agora há menos gente, desde que passou do escudo para o euro que há menos clientes, na minha maneira de pensar, mas noto que há mais juventude agora e mais à noite”, observa. Juliana Silva, de 30 anos, aproveita alguns dias no Porto para passear e ir ao bingo antes de voltar para a Alemanha, onde está emigrada. Vem acompanhada.
“Vimos passar um bocado de tempo, distrairmo-nos”, diz. Apenas isso, tentar a sorte, ver o que acontece, não gastar além do que está na carteira, resistir ao multibanco que está à entrada, ir embora com menos ou mais dinheiro. O que vier é sempre bem-vindo. Em dezembro do ano passado, houve prémio de encher o olho na bela sala da Trindade, 2 083 euros de prémio de bingo.
Multibancos à entrada, superstições na cabeça
Em Portugal, o jogo do bingo está enquadrado juridicamente desde 1982. O nível de faturação atingiu o seu pico em 2002, com uma faturação global superior a 138 milhões de euros, numa altura em que estavam a funcionar 31 salas. Nesse ano, cerca de 34,4 milhões de euros reverteram para o Estado. Depois disso, foi sempre a descer. Menos cartões vendidos, descida dos valores líquidos dos prémios pagos aos jogadores, menos receita para os concessionários, menos percentagem de IRS arrecadado, menos verbas para o setor público.
Em 1990, havia 38 bingos e a descida nunca mais parou. Vinte e nove bingos em 2000, 22 em 2010, 15 em 2015, 14 no ano passado e mais um este ano. São 15 salas de bingo e cerca de 400 funcionários diretamente ligados ao jogo, mais cerca de 320 indiretos nos bares de apoio, limpeza, manutenção, administrativos. O número da força de trabalho dos bingos poderá ultrapassar os mil funcionários caso o vídeo-bingo, uma nova modalidade considerada fundamental para a sobrevivência da atividade e atração de novos clientes, seja autorizado.
Há meses melhores e meses piores. Dezembro e janeiro são normalmente bons, julho e agosto também pelas férias, turistas, emigrantes, fevereiro e novembro nem por isso. A clientela não tem variado. Sobretudo reformados durante a tarde, os clientes fixos, mais juventude pelo jantar ou antes de uma noitada, com amigos para passar o tempo. Há também gente supersticiosa, a mesma cadeira na mesma mesa, ser o primeiro a entrar na sala, não querer que se passe um pano húmido na mesa.
“Ladies night” e “happy hours”
No jogo, os detalhes andam na cabeça de cada um. Numa mesa logo à entrada, está um panda de peluche com uma tabuleta que diz bingo. Sala com mesas de tampos de vidro, cadeiras cor de laranja, ala dos fumadores, parte dos não fumadores, a hora de jantar aproxima-se e Maria de Fátima, empresária de 57 anos, acaba de fazer bingo. Continuará a jogar até às oito da noite, depois levanta-se, vai-se embora porque sábado é dia de trabalho e acordará cedo.
Uma vez por semana, à quinta ou à sexta, joga no Panda Bingo, perto do Areeiro, zona central de Lisboa. Normalmente, joga séries, seis cartões de cada vez. “É uma limpeza mental, enquanto estou aqui não penso em mais nada, é um refúgio”, confessa. Conhece empregadas e empregados pelos nomes, as bolas que quase nunca saem, percebe que há gente agarrada ao jogo como vício, e lembra que o bingo já não é o que era. “Antes, havia dress code, agora até pode entrar de sapatilhas.” Como se quiser, na verdade.
O jogo continua, linha, bingo, linha, bingo. O jantar é oferecido para quem joga sem parar. Bife com ovo, arroz de pato, feijoada de chocos, delícia de bacalhau figuram nas opções, mais bebidas para acompanhar, tudo gratuito, desde que se continue com cartões em cima da mesa e se jogue ininterruptamente. Às quintas-feiras, é “ladies night” das oito da noite às duas da manhã, cinco senhoras juntas têm direito a uma garrafa de espumante, há “happy hours” todos os dias das 21 às 23 horas com algumas bebidas a 50%, bar aberto das 19 às 21 horas e das 23 à 1.45 horas.
Na Gare do Oriente, encaixado entre as linhas de comboio e o metro, está o “filho” do Panda Bingo, o Koala Bingo, mais pequeno em espaço, 150 lugares, o mesmo sistema, as mesmas cores alaranjadas, aberto 12 horas todos os dias, das duas da tarde às duas da manhã, há 13 anos. Cá fora, anuncia-se o que se pode ganhar lá dentro. É hora de jantar e a sala não está muito cheia, nem muito vazia. Jorge Trindade, de 73 anos, e Ana Rosa, de 62, ocupam uma mesa junto a uma abertura de onde saem bebidas e comidas.
Os koalas de peluche são colocados em cima da mesa quando há linha ou bingo. Jorge e Ana vão ali, de vez em quando, passar algum tempo, beber uma cerveja, antes de irem para casa numa sexta-feira ao início da noite. Ele, reformado, começou a frequentar o bingo há relativamente pouco tempo, sobretudo para combater a solidão. “Há bingos e bingos. Perde-se mais do que se ganha.” É preciso contenção, saber parar, é mais um jogo, não um vício. Mais um cartão amarelo, de 50 cêntimos, e dali a pouco irão à vida. “É uma distração, mais para passar o tempo, gosto do ambiente, bebe-se uma cerveja, e joga-se”, assinala Ana Rosa. Lá vão falando das suas vidas, do que fizeram hoje, do que podem fazer amanhã.
Festas temáticas, almoços e jantares gratuitos
O setor tem tentado remar contra a maré. Nos últimos oito anos, a receita bruta foi aumentando, de 44,9 milhões de euros em 2013 para 46,9 milhões em 2015, fechando o ano de 2018 com 54,3 milhões. As concessionárias, sem poder alterar as regras do jogo, têm apostado em tornar o bingo num jogo mais apelativo e dinâmico, para renovar a clientela, para captar o interesse das gerações mais novas, como festas temáticas, almoços, jantares e cocktails gratuitos.
Paula Castro, presidente da Associação Portuguesa de Bingos, e responsável pelo Panda Bingo e Koala Bingo, em Lisboa, garante que essas ofertas não chegam para reverter a menor intensidade na procura. “É fundamental isentar os prémios de IRS, de modo a tornar o jogo mais atrativo. Uniformizar a incidência fiscal no setor, sujeitando o jogo do bingo a um só imposto, à semelhança do que acontece com os casinos e o jogo online. Criar novos prémios e novas formas de jogar o jogo do bingo, como o acumulado nacional e o vídeo-bingo. Combater o jogo ilegal.”
Em 2000, venderam-se cerca de 112 milhões de euros em cartões, os prémios rondaram os 46,5 milhões e a receita das concessionárias andou pelos 37 milhões. Em 2010, já tinha descido para os 74,3 milhões de euros de cartões vendidos nos bingos portugueses e pouco mais de 30 milhões em prémios. No ano passado, menos de metade de 2000, cerca de 54,3 milhões de cartões e um valor total de prémios de 22,4 milhões. “A tributação dos prémios de bingo, inicialmente no âmbito da Tabela Geral de Imposto de Selo e, presentemente, em sede de IRS, foi criada posteriormente à definição das regras do jogo do bingo e sem ter em conta o equilíbrio indispensável à repartição de receitas previamente estabelecidas”, sublinha Paula Castro, lembrando que com a subida da taxa de IRS sobre prémios de 25 para 35%, encerraram 15 salas de bingo entre 1994 e 1997. Em 1998, a taxa voltou a descer para os 25%.
Paula Castro fala da apertada concorrência que os bingos sentiram com a lotaria clássica e o totobola no início dos anos 1980 e agora com o Euromilhões, as raspadinhas, um novo sorteio do Totoloto, o Placard, o jogo online. E fala também de um sistema fiscal pesado. “O enquadramento fiscal continua a ser altamente penalizador para os apostadores, sendo uma das principais condicionantes da procura legal deste tipo de jogos, sendo razoável concluir que os circuitos ilegais de apostas em explorações onde o Estado não tem, obviamente, qualquer participação, são estimulados pela existência de uma elevada tributação nas apostas legais.” A total liberalização das regras concursais introduzidas em 2015, “não mantendo qualquer garantia de possibilidade de renovação da concessão e não tendo sido previsto qualquer regime transitório para as concessões atribuídas”, levou a uma retração dos agentes de mercado “no levar a cabo investimentos nas salas que, em alguns casos, já há muito se justificariam”, acrescenta.
Outros jogos tentam abafar os bingos. Há menos procura, menos salas, menos faturação. O setor tenta contrariar essas quebras, resiste como pode, com ofertas, bolas da sorte, prémios especiais. É feriado, a tarde vai a meio, o tempo não está famoso para a praia, as obras à porta do casino e do bingo de Espinho estão temporariamente interrompidas. No primeiro piso do edifício frente ao casino, é a sala de bingo com vista para o mar, cadeiras roxas a condizer com a alcatifa, 280 lugares disponíveis, funcionários bem vestidos, colete e laço ao pescoço, eles e elas. Não está muita gente, gente mais velha sobretudo, que vai tentando a sorte. Este mês, uma sanduíche de porco bísaro mais uma bebida ficam por quatro euros, há “happy hours” aos domingos e feriados das 19 às 21 horas. Super prémio à terça e quinta de 150 euros.
Segunda-feira é dia de muito movimento em Espinho, feira semanal, férias escolares, marginal com gente, praia bem frequentada. O bingo não pára, o prémio acumulado ronda os 26 mil euros. Às 17.15 horas, vai-se na 41.ª jornada, a linha está em 5,55 euros, o bingo em 26,75. Um minuto depois ouve-se linha, dois minutos a seguir, bingo. A próxima jogada começa às 17.18 horas, linha um minuto a seguir, bingo às 17.21 horas a 23 euros. O prémio bingo acumulado anda pelos 26 mil euros. Alguém comenta que há umas semanas, um jogador, que parece que não era daquelas bandas, terá ganho 62 mil euros no bingo acumulado, que terá levado em dinheiro.
Maria Alice, 73 anos, ainda tem de ir apanhar o comboio, entra, senta-se, moedas, nota de cinco euros, vai partilhando o que lhe vai na alma. “Venho cá para passar o tempo, mas fica caro.” Não lhe peçam para fazer contas. É o que é, quando é, e quando lhe apetece. “Olhe, divirto-me e vou brincando.” Pergunta por uma ou outra senhora, os clientes mais assíduos conhecem-se pelo nome, quase se sentem da mesma família. E são horas de ir apanhar o comboio. Outro jogo? Fica para a próxima, depois de o bingo ter ido para outra mesa.