Fazer milagres com quase nada

Sara Proença estava ainda na faculdade quando, em 2012, partiu para São Tomé e Príncipe. Viveu sem água, sem luz e sem porta de casa

Texto de Ana Sofia Rocha

Podiam ser viagens para cenários idílicos, não fosse a pobreza, a guerra, a doença. Ou os efeitos da natureza que, de vez em quando, fustigam terras e povos sem dó nem piedade. São, na verdade, viagens para cenários de terror, com destino a lugares onde homens e animais apenas existem. Onde se morre ao nascer e o som das bombas cala o chilrear dos pássaros. Onde a força da natureza afundou a existência.

“É uma viagem ao desconhecido, ao que ninguém sabe, ao que ninguém quer saber”, diz Gustavo Carona, médico anestesista. Já fez 12 missões de ajuda humanitária em dez países. “Àquilo que nunca ninguém viu.” E por isso não existe para muitas pessoas. Em África, esteve em Moçambique, na República do Congo, na República Centro-Africana e no Burundi. Em 2011 e 2012, viajou para o Paquistão e o Afeganistão. Em 2013, aterrou na Síria e há dois anos voou para o Iraque. Este ano já esteve no Iémen e na Palestina.

Não há manuais que antecipem o que se vê na chegada. “Nada nos prepara para a realidade nestes países esquecidos. É muito dura”, lamenta Gustavo. “Mas, em alguns deles, a violência sexual é pior do que aquilo que alguma vez imaginei. A quantidade de crianças que morrem à nascença. A quantidade de mulheres que morrem a dar à luz. É grotesco.”

Tinha 25 anos quando decidiu ser voluntário. Era um jovem médico e tinha em si ganas de ver o Mundo. De ajudar. Parecia-lhe incoerente não exercer medicina onde ela é mais necessária. “Por aqui [Portugal], há muitas pessoas como eu, mas, nestes lugares onde ando, há poucas ou nenhumas e por isso pareceu-me egoísta não fazer nada.” Decidiu dedicar-se aos outros mesmo custando deixar tudo para trás. “É preciso algum desprendimento”, explica.

Conhece os conflitos como a palma das suas mãos. Sabe quais são os motivos que levam tantos países a viver em guerra e a ceifar a vida de milhões de pessoas. Mas o que interessa é ajudar. Por lá, a medicina é rudimentar e os profissionais são escassos.

Nas primeiras missões não esperava ver o sofrimento de tanta gente. Não pensava que teria tantas pessoas a morrer nos seus braços. “Muitas vezes penso que poderia salvar a vida dessas pessoas com alguma facilidade se estivesse nas condições de trabalho que tenho em Portugal.” Afirma não ter fantasmas. Mas é atormentado pelos momentos em que perdeu vidas por não ter o necessário. Muitas vezes, instrumentos básicos da medicina ocidental.

Por saber que o essencial faz a diferença, Márcio Silva, enfermeiro, admite que “não é preciso ter nenhuma especialidade para ajudar”. Aos 40 anos, já passou por locais atormentados por guerras políticas e conflitos territoriais, mas também já testemunhou a força da natureza.

Era o ano de 2010. O chão do Haiti tremia. “Foram cerca de 300 mil mortos. Quando chegámos, ainda víamos pernas e braços pendurados nos beirais. As casas todas destruídas e o cheiro a carne morta que emanava dos escombros.” Um cenário impossível de desenhar pela mais fértil das imaginações.

Gustavo Carona, médico anestesista, já fez 12 missões de ajuda humanitária em dez países

Lá, esteve dois meses. A sua primeira missão como voluntário em cenário de emergência. “Foram meses muito intensos. E pode ter sido traumatizante, mas havia tanto que fazer que nem tínhamos tempo para pensar nisso”, recorda Márcio.

Fazer tudo o que faz falta

É voluntário desde os 25 anos. Começou pelos bombeiros, mas rapidamente passou à ajuda humanitária internacional. E nem sempre desempenhou o papel de enfermeiro. “Toda a ajuda é necessária. Desde varrer, a dar banho a crianças e idosos, a cortar relva. Até apanhar fruta para dar de comer às pessoas. É fazer o que faz falta.”

Os relatos são perturbadores do tanto que já viu. Já esteve na Guiné-Bissau e no Quénia. Crianças que apareciam violadas porque tinham ido à casa de banho sozinhas. Mulheres espancadas, sem razão nem porquê. “É uma questão cultural e é difícil mudar isso”, suspira. Mas não se resigna, não desiste.

Timor-Leste foi um dos sítios mais complicados para este enfermeiro. Pela incapacidade de fazer amigos e de estabelecer ligação com os locais. “São muito desconfiados, o que é compreensível. É muito difícil entrar num sítio onde as pessoas veem os seus filhos mortos, decapitados e entregues aos porcos para serem comidos.”

Apesar de dar o que tem e o que não tem por quem não conhece, Márcio admite que o que o faz deixar tudo para trás não é apenas o inconformismo ou a compaixão. “Continuo a acreditar que o voluntariado é o expoente máximo do egoísmo. Enaltece-nos o ego. E sempre que venho sei que trago mais do que aquilo que dei.”

As motivações de quem faz voluntariado diferem de pessoa para pessoa. A motivação de Sara Proença foi, mais do que a paixão pela medicina humanitária, a vontade de exercer medicina onde os meios são exíguos. “A arte do engenho, os meios escassos e a sabedoria científica com alguma arte de mudança podem fazer a diferença”, esclarece a jovem médica ginecologista.

A primeira experiência de Márcio Silva foi em 2010, no Haiti, onde um sismo fez 300 mil mortos

Cedo percebeu que ajudar fazia parte da sua vida. Estava ainda na faculdade quando decidiu ser voluntária. Em 2012, partiu para São Tomé e Príncipe, onde esteve quatro meses. Viveu sem água, sem luz e sem porta de casa.

Não viu guerra, nem a calamidade de um desastre natural, mas testemunhou o subdesenvolvimento, a parca educação e a falta de meios. Viu um lugar que apenas precisa de pouco para fazer a diferença. “Às vezes, pequenos gestos, como educação básica para a saúde (lavar as mãos, utilização de rede mosquiteiro, corte de matas – capinar) podem fazer a diferença a longo prazo.”

Apesar de estar segura, sentiu medo. “O medo de querermos ajudar e termos de enfrentar os nossos medos e a solidão. De o normal ser não haver nunca luz nem água e a única casa de tijolo ser a do centro de saúde.”

Do muito que imaginou e conseguiu fazer, o mais difícil foi tentar abordar a população para lhes explicar que não podem ter porcos ou galinhas nos corredores do centro de saúde e no local de internamento.

Como nos disse Gustavo Carona: “O maior flagelo da sociedade é as pessoas não irem à escola. É não saberem ler nem escrever”. E foi essa a maior luta de Sara em São Tomé e Príncipe.

“Ao final de alguns meses começámos a perguntar-nos se não é deletéria a presença de equipas de voluntários. Isto porque sentimos que nas zonas com Organizações Não Governamentais (ONG) não há qualquer investimento na população, na educação, na saúde por parte do ministério e que estas condições, básicas numa sociedade ocidental, passam para terceiro plano nestes países.”

Na Síria, os intermináveis conflitos empurraram e continuam a empurrar milhares de pessoas, principalmente mulheres e crianças, para os campos de refugiados. Uma cama, uma almofada, um teto, são quimeras para este povo mutilado e castigado.

“Era dentro do hospital, em contacto com os refugiados, que o peito apertava. Não por uma questão de insegurança, mas sim pela bofetada na cara que é ver o desespero de quem perdeu tudo e todos”, conta João Martins.

Tudo podia acontecer a qualquer momento

Tem 35 anos e é cirurgião plástico. Em 2014, esteve num campo de refugiados sírios na Jordânia. “A situação na Síria era catastrófica e nos países mais próximos do norte da Jordânia – Líbano, Israel e Iraque – a situação era muito instável, parecia que tudo podia acontecer a qualquer momento.”

A sabedoria popular sempre diz “longe da vista, longe do coração”. Contudo, se se estiver atento, facilmente se vê que vivemos num Mundo “mais intolerante à diferença, seja por preconceitos ou crenças”, observa João.

“Assistimos diariamente a crimes de ódio e realidades em que se descartam vidas humanas por interesses políticos e económicos. Tenho a noção que vivemos numa espécie de casulos. As guerras e a violência parecem-nos distantes e pouco reais.”

Na Jordânia, João conheceu Mahmud, um cirurgião perseguido na Síria. Mahmud teve de fugir do país por ter aceitado tratar pessoas feridas em luta com os militares. O melhor amigo está preso, a mulher e filhas vivem na Síria, sem eletricidade há dois anos.

Não podia não o lembrar. Apesar de tudo o que passou, com a colaboração de médicos jordanos, teve força para montar as instalações hospitalares na Jordânia para receber pessoas dos campos de refugiados espalhados pela fronteira com a Síria. Um exemplo de força e devoção. “O voluntariado não pode ser visto como uma experiência fora da nossa realidade, que tem um início e um fim, valendo apenas como isso mesmo: uma experiência. Somos voluntários quando, sem contrapartidas, dizemos que sim e nos entregamos à simples vontade de querer ajudar porque podemos, porque sim, porque alguém precisa.” Tal como Mahmud. E a ajuda é realmente precisa.

João Martins tem 35 anos e é cirurgião plástico. Em 2014, esteve num campo de refugiados sírios na Jordânia

África parece ser o continente onde não é conhecida a paz, a felicidade, a calma. Também Armindo Ribeiro lá esteve, foi ajudar na mais recente tragédia que abalou Moçambique. Mas uma das missões de voluntariado que mais o marcou foi há 20 anos. A primeira. Tinha rebentado uma onda de violência após o referendo sobre a independência de Timor-Leste. Esteve lá três meses.

“De todos os cenários onde estive o de guerra [Timor] foi aquele em que senti mais medo. E nunca pensei encontrar aquilo que vi: foi impressionante constatar a energia que os guerrilheiros gastavam para exterminar tudo”, relata Armindo, médico de medicina interna.

Traz na bagagem milhares de histórias, mas gosta de lembrar aquelas que mostram que, mesmo sem nada e com o coração preenchido de dor e escuridão, a bondade não se perde. Em Timor fez um parto de risco a uma criança. “Tinha apenas 14 anos.” Estava grávida de gémeos. O pai (dos bebés) tinha sido morto por guerrilheiros. A situação era frágil, mas todos sobreviveram. Criança e filhos foram para casa. Não tardaram em voltar ao hospital.

“A família da jovem apareceu lá a dizer que não tinha dinheiro para alimentar os bebés porque a mãe não tinha leite.” A fome era geral e a jovem, desnutrida, não produzia leite. “Com o pouco que tínhamos demos à rapariga alimentos ricos em nutrientes, barritas… O que havia. Rapidamente voltou a produzir leite e puderam voltar para a aldeia.”

Não fizeram “nada de especial”, mas foi o suficiente. Aquela família, que nada tinha para dar a miúdos e a graúdos, com o apoio de toda a aldeia, comprou uma cabra para oferecer ao pessoal do hospital. “Não há palavras para descrever.”

“Partir somente porque faz sentido”

As pessoas são a razão da paixão de Inês Felizardo, de 29 anos, pelo voluntariado. “Partimos para podermos cuidar de pessoas e darmos o nosso melhor”, explica a jovem médica.

A mais recente missão de voluntariado fê-la na Beira, Moçambique, onde todas as mãos eram precisas. É destemida. Não receia os lugares nem as situações. Arriscar em cenários de desastre é, para Inês, onde faz mais sentido. “Temos uma falsa noção de segurança, mas a impermanência está ao virar da esquina no nosso dia-a-dia.” É preciso o desprendimento para “partir somente porque faz sentido”.

Nunca sentiu que estaria a arriscar nem mais nem menos. E as doenças nunca a assustaram. “Viver neste contexto implica, acima de tudo, muito respeito pela condição humana.” Em Moçambique, onde, do avião, conseguiu contar pelos dedos os telhados que resistiram, encontrou pessoas pouco acomodadas e que não ficavam à espera da ajuda que poderia nunca chegar.

“São as pessoas que fazem todas as nossas experiências de vida, quer sejam as com quem trabalhamos, quer sejam as de quem cuidamos.” Terá com certeza amarguras e tristezas, mas gosta de lembrar os “sorrisos-lua” das pessoas que por ela passaram.

Acima de tudo, acredita que a ajuda humanitária, seja ela qual for, leva “esperança” às pessoas. “É uma mensagem muito poderosa. É o haver pessoas no Mundo que se importam”, remata.

Da solidariedade ao conforto. Do egoísmo aos corações onde cabe todo o amor do Mundo, são várias as razões que movem estes profissionais de saúde nesta nobre missão que é ajudar. Poucas ou nenhumas são as que os prendem e impedem de partir.

Para Gustavo, parar não é uma opção. Há muito por fazer. A mãe bem que lhe diz para deixar para os outros porque já fez que chegue. Mas nada o demove. “Nunca vou desistir, mesmo que não seja na linha da frente.” Quer continuar a sentir que está na equipa dos bons, na luta por um Mundo melhor. Só pensa nas pessoas, que são “reféns de todos os conflitos políticos e económicos” que semeiam a discórdia e a desgraça.

Márcio não sabe se será capaz. Sabe que quer continuar, sabe o que o motiva, mas sabe que é uma ajuda intermitente. “No dia em que deixar de ser egoísta, vou e não volto. Espero um dia ter coragem para o fazer.”