Todos temos o direito de saber toda a verdade sobre o nosso estado clínico. Mas há formas de contar essa realidade. Com esperança, com exemplos positivos, com tato, sensibilidade e sem matar a fé.
Um cancro no ovário em estado avançado com metáteses no útero e na pleura. A 5 de maio de 2016, Teresa Malafaya, engenheira informática, então com 49 anos, escutava o seu diagnóstico. O chão fugiu-lhe dos pés. “Em confronto com a notícia, a vida perde sentido. Habituamo-nos a viver a vida do dia-a-dia e os limites, a morte, a doença, a fragilidade, não fazem parte dessa vida, não fazem parte das redes sociais”, desabafa. Estava sozinha, as filhas na queima das fitas, o marido numa viagem de trabalho. Precisou de quatro dias para contar à família. “A notícia foi muito violenta. Temos noção de que perdemos o nosso bem mais precioso, a saúde, e a angústia do impacto que a doença vai ter na vida da nossa família.”
Foi operada, fez quimioterapia, começou a ser seguida no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto. Avisou que dispensava saber tudo de uma vez. “Não queria ser confrontada com o quadro completo, pedi para me darem informações às pinguinhas. Não queria saber detalhes técnicos para não viver por antecipação. Sabia que ia ser uma escada muito íngreme e é importante traçar objetivos.” Informação a conta-gotas para digerir com tempo e, se possível, acompanhada de exemplos de tratamentos que estão a correr bem. “As más notícias não devem ser omitidas mas tem de haver esperança, isso é fundamental, senão um doente oncológico perde a vontade de lutar”, diz.
Respeitou a indicação de não ir à internet ler o que não devia, confiou a 100% na equipa oncológica, contou com o apoio total da família. Entrou no grupo de doentes Ao Terceiro Dia, que se reúne uma vez por mês para partilhar o que vem de dentro. “Precisava de encontrar um sentido que me permitisse aceitar a doença sem deixar que ela me definisse. Uma forma de encarar a fragilidade e de ter um sentido para essa fragilidade. E deu-me um sentido de urgência para realizar os meus sonhos.” Mais tempo com as filhas e o marido, mais passeios em conjunto, viagens que tinham ficado por fazer.
Teresa, 51 anos, é uma mulher de sorrisos. Acredita no futuro e tem na família o maior pilar. No ano passado, o cancro reapareceu. “A minha reação foi muito diferente da primeira; à segunda já é algo de que estamos à espera.” A doença deixou de ser uma coisa estranha. Seguiram-se mais seis meses de quimioterapia. Os exames mais recentes indicam que a doença está estável. “Agora faço um tratamento oral que leva a que a doença esteja quietinha”, revela. Decidiu diminuir o ritmo de trabalho como empresária num negócio de carteiras de senhora. Os últimos dois anos não têm sido fáceis. Primeiro um mal-estar abdominal para o qual não havia diagnóstico, depois uma falta de ar que a levou a falar com um médico que a internou de imediato e pediu uma TAC abdominal. Logo aí percebeu que era grave.
Há seis anos, Manuela Santos, médica de clínica geral, descobriu o seu próprio cancro numa apalpação à mama. “Tive logo a sensação de que era uma coisa má.” Confirmou-se. Apesar da quase certeza, o impacto da notícia foi duro. Ficou pálida, suou, pensou que seria o princípio do fim. Depois respirou. “Senti-me um bocado perdida mas, ao mesmo tempo, precisava de forças para vencer o obstáculo. Não se pode fazer um drama, é preciso fazer frente às coisas.”
Para Manuela, doente e médica, tudo deve ser contado. Com jeito, com sensibilidade. “A verdade tem de ser dita, mas criando sempre alguma esperança. Se percebemos que o doente vai deprimir, tem de ser contada com tato e pedir ajuda à família.”
Manuela, 59 anos, já esteve dos dois lados, como mensageira e destinatária. Fez quimioterapia, radioterapia, foi operada duas vezes. Deixou de trabalhar há três anos e meio, continua a ser seguida, faz medicação oral e análises de três em três semanas. Os últimos marcadores tumorais foram negativos. “Sei que não estou totalmente livre da doença, mas confio nas pessoas que me seguem, tenho o apoio da família e sei que tenho de ser otimista.”
Digerir informação
Não há um manual de instruções para dar más notícias aos doentes, nem se ensina o que dizer nestas situações nos cursos de medicina. Seja como for, os doentes têm o direito de saber a verdade. Porque precisam de reorganizar a vida pessoal e profissional. Porque os seus dados clínicos pertencem-lhes. A realidade não deve ser escondida, mas há formas de contá-la, tentando não pecar por excesso ou por defeito. É um equilibro complexo.
Dar uma má notícia é difícil. “É sempre um ato doloroso”, garante Deolinda Pereira, diretora do serviço de Oncologia Médica do IPO do Porto. Não há maneiras rígidas de atuar, normas inflexíveis, um guião em cima da secretária. “Cada caso é um caso. Cada profissional é um profissional.” Há doentes que querem saber tudo, há doentes que preferem ser poupados a pormenores médicos, a sentenças de tempos de vida. Há médicos que doseiam dados e filtram informação. “Nós médicos, nós oncologistas, devemos conhecer o doente que temos à frente. Há doentes que querem saber a verdade toda, mas depois não sabem gerir essa verdade”, refere.
A gestão tem de ser individualizada e com a perspetiva de que há tratamentos, nem que sejam para controlar sintomas, a falta de ar, a dor. “Não podemos escamotear a situação mas devemos sempre colocar esperança no nosso diálogo. Temos armas terapêuticas para atuar. Mesmo nas fases mais críticas, os doentes têm de saber que vamos continuar a tratar, que não os vamos abandonar.” O trabalho em equipa, em todos os momentos da doença oncológica, é fundamental. Tal como ajudar os doentes, cada vez mais informados, a entender os dados que pesquisam, que leem.
António Araújo, diretor do serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar do Porto e professor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, destaca a transmissão da notícia. “Quando damos uma má notícia a um doente devemos falar sempre a verdade, mas transmitindo informação até onde o doente quer ouvir. Há os doentes que querem ouvir a verdade toda e outros que só querem o que é importante naquele momento.” Os médicos devem ter a perceção da forma como as notícias estão a ser processadas. Cada reação é uma reação. “Temos de adaptar a mensagem ao grau de entendimento do doente, temos de facultar o entendimento da mensagem.”
Depois da má notícia, há a gestão das expectativas dos pacientes. “Não podemos matar a fé dos doentes mas, ao mesmo tempo, temos de ser o mais realistas possível, ajudar a perceber o que estamos a fazer, porque o estamos a fazer e o resultado das nossas ações”, adianta. Para garantir comprometimento nos tratamentos médicos e evitar desistências. É uma gestão complexa. “O equilíbrio entre dar informação a mais ou dar informação a menos é muito difícil.” Não há um instrumento clínico com a dose exata.
Dignidade e humanidade
O confronto com um diagnóstico de cancro é doloroso. “Quanto mais o médico conhece o doente, melhor poderá dar a notícia”, afirma Vítor Veloso, presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Nessas horas, é preciso “dignidade e humanidade consoante o tipo de doente. Nunca se deve tirar a esperança ao paciente. Descobertas acontecem de um dia para o outro. O que hoje é incurável, amanhã pode não ser”. Perceber a capacidade emocional é importante. Há quem caia em depressões profundas, não conseguindo lidar com uma doença grave. “Muitas vezes, é dramático. É necessário conhecer a pessoa e a abordagem mais adequada para dar essa notícia. Se ela não tem capacidade para aguentar esse impacto, alguém da família próxima deve saber tudo.”
As crianças devem ser protegidas
As más notícias de saúde também atingem crianças, sem maturidade para entender que dentro do corpo há mecanismos que não funcionam como deveriam. Os pais assumem o papel de digerir informação. “São situações que têm de ser muito bem ponderadas para se encontrar um equilíbrio”, refere o oncologista António Araújo. Mesmo assim, e como doentes, os mais novos “devem ter o mínimo de informação”. É preciso explicar-lhes com o máximo cuidado, ou pelos pais ou pela equipa clínica, o que pode acontecer. Por que lhes vai cair o cabelo, por que vão ser picadas duas ou mais vezes por semana, por que terão de andar de máscara, por que terão de dormir no hospital, por que terão de fazer uma TAC todos os meses. Deixá-las sem dúvidas é algo muito importante.