Clara Sottomayor: “Não me arrependo de nada. Paga-se um preço, mas não me importo”

Foto: Rui Oliveira/Global Imagens

Engana-se quem confundir a timidez natural com fragilidade, a cortesia com maciez. A voz doce de Clara Sottomayor, 53 anos, corta a direito nos temas que lhe são caros. Sem temer excessos, assume orgulhosamente a condição feminista, a resistência aos que tentam ter poder sobre ela, a impossibilidade contida no conceito de submissão. Chegou pontual a um hotel de Lisboa, a cidade onde trabalha. Vive no Porto, na Foz, perto do mar e aí escolheu ser fotografada. Duas horas de uma conversa marcada por duas das palavras mais queridas da conselheira do Supremo Tribunal de Justiça: Direitos Humanos.

Mulher, feminista, juíza, por onde começaria a traçar o perfil?
Começava por dizer que sou uma pessoa inconformada, que quer sempre mudar as coisas. De temperamento sensível e reativo. Inquieta e que essa inquietação levou ao caminho do feminismo.

Quando ganha noção de que é feminista?
Com 15, 16 anos, numa tarde de verão, em Vila do Conde. Estava num grupo de diversos jovens, falava-se das diferentes valorações que a sociedade faz sobre o comportamento sexual dos homens e das mulheres, nomeadamente no adultério, e foi então que eu, muito inflamada e convicta, me declaro contra essa injustiça a que chamei, lembro-me perfeitamente, moral sexual dupla. Nunca tinha ouvido nem lido essa frase, saiu-me. E mal a pronunciei, disse um dos rapazes, “tu és feminista”. Bom, devo dizer que na altura não tinha bem a noção do que significava ser feminista, mas gostei. E recordo a admiração com que todos me olharam, sendo que eram, repare-se, filhos de famílias católicas e conservadoras, para as quais o tema não era assunto.

No Porto, no início dos anos 1980, não era comum.
Na altura, não se falava em feminismo, é certo, mas também não se notava o antifeminismo. Não lia nada sobre feminismo, nem estava inserida em associações, como hoje. Mas intuía a injustiça e os outros jovens ficavam muito admirados. Ficavam a pensar no que eu dizia. Eu fazia as pessoas pensar. Hoje é que a palavra é usada pejorativamente.

O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses foi além e declarou-a “feminista excessiva”.
Foi pior de que isso. Chamou-me radical e colocou em causa a minha imparcialidade, a qualidade principal de um juiz ou juíza, sem a qual não pode exercer as suas funções. Fez uma acusação gravíssima, com base numa informação absolutamente falsa, que tinha obrigação de ter confirmado comigo. E não era difícil. Eu até era sócia da dita associação. Era, já não sou.

Porquê esses ataques?
Tudo o que vou dizer sobre isso é interpretativo, mas acredito que o facto de ter entrado na magistratura por concurso público e diretamente para o Supremo tenha criado alguns anticorpos, visíveis logo que tomei posse, em 2012. Por outro lado, sempre fui conhecida, e com muito orgulho, por combater a desigualdade entre homens e mulheres e todas as formas de violência de género e de abuso sexual de crianças, com posições que claramente nunca agradaram ao setor mais conservador da magistratura.

Foto: Rui Oliveira/Global Imagens

Recentemente, a propósito de um acórdão de que foi relatora sobre a constitucionalidade da lei dos metadados, foi acusada de ativismo feminista, um processo que a levaria a optar pela renúncia ao Tribunal Constitucional (TC). Que justificação encontra para aquilo que aconteceu?
O TC, como instituição, merece o meu respeito e a minha confiança. Mas, por razões ligadas à sua específica composição, num determinado momento histórico, vivi no TC um ambiente institucional hostil, que culminou com a minha renúncia e com a publicação de notícias falsas sobre as suas causas. Falsas e de fonte anónima, mas claramente algumas só podem ter sido provenientes do TC, até porque foram invocadas “fontes judiciais”.

Mudou de secção duas vezes, invocando fontes judiciais, por desentendimentos com colegas?
Em defesa da minha honra vou responder. Mudei de secção apenas uma vez, e a meu pedido. E não se tratou de um mero desentendimento, dado o interesse público em causa. Num acórdão em que fiquei vencida, na fiscalização concreta da constitucionalidade, foi invocada uma regra não escrita para que eu relatasse contra a minha convicção e depois fizesse um voto de vencida a mim própria. Tive de invocar o Código de Processo Civil e exigir mudança de relator, o que efetivamente veio a fazer-se. Mas interpretei toda a situação como um atentado à minha liberdade de julgar e pedi para mudar de secção.

Foi também acusada de incluir no texto do acórdão a comparação entre violência doméstica e terrorismo.
É completamente falso que tenha colocado no projeto de acórdão qualquer comparação entre violência doméstica e terrorismo, ou sequer feito qualquer referência ao fenómeno da violência doméstica. Isso foi inventado.

Com que objetivo saíram essas notícias falsas, volto a perguntar?
Segundo a minha interpretação, essas notícias visaram encobrir as verdadeiras causas da renúncia, ligadas à defesa da minha liberdade de julgar e da independência do poder judicial nas relações interpares.

Houve quem a considerasse o reverso da medalha em relação a Neto de Moura, o juiz que invoca num polémico acórdão sobre violência doméstica o apedrejamento e a lapidação de mulheres. Como reagiu?
Senti muita vontade de rir. Neto de Moura representa a sociedade do passado, que não queremos para nós, a sociedade em que as mulheres eram delapidadas por adultério ou punidas à mocada. Se o juiz Neto de Moura está, nas suas valorações, atrasado dois mil anos anos, eu, sendo o contrário dele, estarei dois mil anos anos à frente dos dias de hoje. (ri) Seria uma visionária. Representaria, então, o progresso.

Como reagiram os pares nesse processo?
No Conselho Superior da Magistratura, onde entreguei uma exposição sobre alguns dos factos que antecederam a minha renúncia, reduziram o caso a uma questão de organização e funcionamento do Tribunal Constitucional. Mas entendo que não é apenas isso. É uma questão de independência nas relações interpares.

Era expectável essa reação?
Esperava que o Conselho Superior da Magistratura, sendo o órgão ao qual compete a tutela da independência do poder judicial, me autorizasse a falar publicamente sobre as causas da minha renúncia e a desmentir as notícias publicadas na comunicação social.

Foto: Rui Oliveira/Global Imagens

Nas notícias foi publicado que o presidente do TC a ameaçou com um processo disciplinar. É verdade?
Em defesa da minha honra vou esclarecer: houve uma reunião do Plenário para discutir a relevância disciplinar do meu comportamento na preparação do projeto de acórdãos dos metadados. Esta reunião foi antecedida de outra destinada a colher declarações minhas sobre as divergências de fundamentação verificadas no processo dos metadados, por ter rejeitado subscrever, na qualidade de relatora, partes do projeto de acórdão que não foram escritas por mim e com as quais não me identificava.

Estamos a falar de um processo disciplinar em que, segundo a lei orgânica do TC, o juiz ou juíza é investigado/a, suspenso/a preventivamente e julgado/a pelo TC com recurso para o próprio TC. Ou seja, eu seria julgada, em última instância, pelos próprios inquisidores, sem direito de acesso a um tribunal comum para impugnar qualquer decisão que viesse a ser tomada. É a própria lei orgânica do TC que nega, ela mesma inconstitucional, o direito fundamental de acesso à justiça.

Quais os motivos desse processo?
Sendo eu relatora, por sorteio, no processo dos metadados, o Plenário veio a assumir um projeto de acórdão diferente, nalguns aspetos para mim essenciais, daquele que eu apresentei, e que continha textos que não foram escritos por mim e com os quais não me identificava. Invoquei as regras do Processo Civil que permitem a mudança de relator em caso de divergência na fundamentação. Mas foi-me imposta uma regra consuetudinária, que não permitia mudança de relator na fiscalização abstrata sucessiva. Em defesa da minha honra de juíza, não aceitei continuar a ser relatora.

“As pessoas encostam-se a quem tem poder e não a quem perdeu poder. Não querem problemas”

Foi o primeiro incidente ou a gota de água?
Este foi o mais forte. Mas vinham de trás outros incidentes de stresse e de pressão. Senti-me alvo de tratamento discriminatório. E que fique claro que nada disto foi por causa do meu feminismo como se quis fazer crer através das notícias saídas na comunicação social: as divergências eram outras.

Recebeu solidariedade dos colegas?
Não quero que ninguém se sinta culpado por não ter sido solidário. Nalguns momentos, no TC, houve colegas solidários. Mas poucos. O que mais vi foi o “silêncio dos bons”. De qualquer forma, também encarei este assunto como uma questão de consciência, que tinha de resolver sozinha.

Tinha à partida alguma ilusão?
Nenhuma ilusão. (ri) Sei que normalmente as pessoas se encostam a quem tem poder e não a quem perdeu poder. As pessoas não querem problemas.

A violência doméstica é comparável ao terrorismo?
Em Portugal mata mais do que o terrorismo. A vida de uma mulher em Portugal periga por causa da violência doméstica e não do terrorismo. Isso não deixa de ser uma verdade. Mas, repito, nunca tive sequer a pretensão de escrever isto no projeto de acórdão.

Pergunto agora à feminista: o Direito tem género e não é feminino?
O Direito na sua origem é masculino. As leis eram feitas apenas por homens e a perspetiva das mulheres era excluída. Ainda hoje está pouco representada. O Direito aplicado era masculino. Como se sabe até 1974 as mulheres estavam excluídas da magistratura. Nos tribunais superiores, ainda hoje, temos mais homens do que mulheres. No Supremo há, se não estou em erro, 47 homens e 18 mulheres em exercício de funções, sendo que oito destas mulheres vieram de fora da magistratura, que é o meu caso. Ao Supremo chegou apenas uma percentagem muito baixa de mulheres que fizeram carreira na magistratura desde a primeira instância. Já para não falar do número superior de juízes a intervir no espaço público, em jornais e televisões. Mulheres juristas, advogadas ou académicas vão aparecendo, mas mulheres juízas quase não se encontram. Duvido até que os portugueses conheçam o nome de três ou quatro mulheres juízas, como conhecem de alguns juízes.

Como é a relação interpares?
A minha experiência na 1.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça foi e continua a ser de um enorme respeito interpares. Já no Tribunal Constitucional não posso dizer o mesmo. Reparei que as mulheres não são tão escutadas quanto os homens. São mais vezes interrompidas.

Há uma forma feminina de julgar?
Tanto quanto sei não está demonstrado isso. Estes assuntos só há muito pouco tempo começaram a ser estudados. E eu prefiro pronunciar-me com base na ciência. Mas acredito que a experiência de vida das mulheres, sendo diferente da dos homens, pode ter permitido o desenvolvimento de capacidades diferentes, que são novas no exercício de algumas profissões e que ajudam a promover a qualidade das instituições e das decisões. Na magistratura e na advocacia também. De acordo com um estudo apresentado numa conferência a que assisti há uns anos na Assembleia da República, há entre as juízas, por comparação com os juízes, uma taxa superior de decisões favoráveis aos queixosos. Segundo esse estudo, essa será a única diferença visível.

Essa diferença corresponde à sua experiência?
Inteiramente. É possível que as mulheres sejam mais sensíveis à pretensão de alguém cujos direitos foram violados e que sofreu danos. Porquê? Porque, nas suas experiências de vida, as mulheres registam mais danos, resultado da discriminação de género de que são alvo.

O tradicional papel da mulher como cuidadora pode interferir nesse julgamento, criando maior empatia com as mães, por exemplo, nos tribunais de família?
Aí tenho dúvidas. No domínio da família e dos cuidados não se joga apenas a sensibilidade pessoal da mulher. Também, e muito, a cultura em que está inserida. E não é por serem cuidadoras das suas famílias e dos seus filhos que necessariamente vão compreender, por exemplo, os dilemas de uma mãe cuidadora, que está subjugada ao poder de um agressor que usa os processos judiciais de guarda e de visitas para a perseguir depois do divórcio.

Como explica esses dados?
As mulheres, como quase toda a população, são socializadas num contexto cultural machista, em que continua a preponderar, no inconsciente, a figura do chefe da família. O Ensino, que devia ter papel essencial, nunca fez essa desconstrução. É por isso urgente derrubar esses estereótipos tal como impõe a Convenção de Istambul, ratificada pelo Estado português.

“A discriminação e a violência de género são tão estruturais da sociedade que devia ser também estrutural ao Ensino promover uma educação para as combater.”

Portugal tem duas mulheres em lugares de topo da Justiça – a ministra, Francisca Van Dunem, e a Procuradora-Geral da República (PGR), Lucília Gago. Tem sentido as consequências dessa realidade?
Não. Mas admito que para a população, no plano das representações, o facto de haver uma mulher ministra da Justiça e uma PGR possa ter influência. Se as pessoas se habituarem a pensar as mulheres como detentoras de poder, a ideia de que a justiça é masculina começa a ficar diluída. Mas o que interessa é a mudança nas práticas efetivas. E essa só as mulheres no seu conjunto a poderão fazer.

Foto: Rui Oliveira/Global Imagens

Na ministra da Justiça, o que releva de mais importante para o combate à discriminação, o facto de ser mulher ou de ser negra?
Ambas as coisas. Ser mulher e ser negra significa ser duplamente diferente dos indivíduos brancos, do sexo masculino, que normalmente assumem estes cargos. A ministra fez discursos muito importantes. Nomeadamente quando equiparou a violência doméstica à tortura, declaração fundamental, porventura resultado de uma sensibilidade acrescida por pertença a um grupo historicamente discriminado em função do género e da etnia.

Existe em Portugal formação competente especializada em violência de género para os operadores de justiça?
Está prevista a sua obrigatoriedade na lei desde julho de 2019. Mas não sei se já está a funcionar e não conheço os conteúdos.

E nas universidades?
Praticamente nada. E devia existir com caráter curricular obrigatório. A discriminação e a violência de género são tão estruturais da sociedade que devia ser também estrutural ao Ensino promover uma educação para as combater.

O juiz militante, ligado a causas sociais, tende a distorcer o sentido da lei à sua convicção? Há esse perigo?
Ter causas não significa perigo algum para a isenção do ato de julgar. À partida até beneficia, pois a pessoa que tem causas cívicas, ligadas aos direitos humanos, por exemplo, é alguém que está habituado a pensar na sociedade e nos interesses dos outros, é alguém que conhece experiências diferentes da sua e tem empatia com os outros. É alguém que não está centrado em si e que se abre aos outros. O fundamental para o ato de julgar, como diz um colega meu do Supremo Tribunal de Justiça, é a capacidade de ouvir os outros. E – acrescento eu – a capacidade de construir a realidade a partir da experiência dos outros, que pode ser muito diferente da experiência da juíza ou do juiz que julga e decide um caso.

Em 2019, qual é o maior entrave à equidade e igualdade entre homens e mulheres?
O maior entrave à igualdade, na minha opinião, é a violência contra as mulheres pelo seu efeito traumático e inibidor do desenvolvimento pessoal, desde a infância até à morte. Para uma mulher não é preciso ser vítima de violência para sofrer este efeito. Habituou-se desde muito cedo, quando circula nas ruas sozinha ou quando sai à noite, a perceber que é uma vítima potencial de violência só pelo facto de ser mulher. E este sentimento condiciona todo o comportamento das mulheres, cria obstáculos à sua participação na vida pública e impede a construção da igualdade.

Como tratam os tribunais portugueses a violação – ainda se releva a forma como a vítima estava vestida?
Acho que já não estamos aí, já não haverá o despudor de se perguntar se vestia minissaia, o que não quer dizer que a questão não esteja na mente de quem avalia os casos.

Outra paixão: Direito de Família e direitos das crianças. Na regulação do poder paternal, as mães são sempre o melhor para os filhos?
Nunca fiz essa afirmação. Em primeiro lugar, só falo por referência a casos em que há conflito judicial. Não falo de todas as mães e pais, apenas dos que entram em litígio quanto à regulação das responsabilidades parentais e que são uma minoria. Quando se toma decisões judiciais, há que ser muito objetivo. Por isso, defendi, no meu trabalho de investigação, enquanto académica, um critério neutro em relação ao sexo – sempre que os pais não se entendem quanto à guarda, deve assumir a guarda o progenitor que durante a constância do casamento tomou conta da criança em termos predominantes. Ora, ainda que em muitas famílias exista um certo grau de divisão, é quase sempre a mulher quem faz mais de 50% das tarefas. Não é crença minha: é um dado científico, objetivo, estatístico. Neste contexto social, é normal que as mães, havendo um conflito, estejam melhor posicionadas para assumir a guarda das crianças, porque, e no interesse destas, é importante manter o mais possível o status quo. Há que escolher um progenitor de referência, porque também não concordo com a regra ou presunção da residência alternada.

“Não percebo um sistema que aplica pena suspensa a condenados por violência doméstica”

Porquê?
Não concordo que seja uma regra, desde logo porque a maior parte das famílias não o deseja. E são poucas as que a praticam. A maior parte das famílias não opta pela residência alternada. Pensam no interesse dos filhos e reconhecem que viver em duas casas não é o melhor para as crianças, sobretudo quando são mais pequenas. Eu, que sou adulta, cheguei a viver metade da semana no Porto e metade da semana em Lisboa e não imagina o stresse que isso me causava.
Por vezes, ao acordar, nem sabia onde estava. E os pais-homens são os primeiros a não desejar a residência alternada – um pai que invista na carreira não consegue ir buscar os filhos à escola na semana que lhe compete e passar os fins de tarde com eles. A lei das responsabilidades parentais depois do divórcio não é um instrumento para concretizar a igualdade de género, mas para promover o interesse das crianças, no seu contexto vivencial e social concreto.

Muitas vezes, o pai quer a guarda partilhada e a mãe opõe-se. Imagina o que sente um pai quando lhe retiram um filho do seu dia a dia?
Imagino, claro. O divórcio gera sentimentos de perda. E é preciso superar e ter apoio psicológico. Os regimes de visitas têm, e muito bem, sido alargados. Mas a guarda das crianças não pode ser vista como um bem que se divide, metade para cada um dos pais. Há que ter em conta que, nos casos de conflito parental, a residência alternada aumenta o stresse e a angústia das crianças. E ainda o drama das vítimas de violência doméstica. Tem havido casos de pais indiciados ou até condenados por violência doméstica, que, inconformados com o divórcio, continuam a perseguir as mulheres e usam os filhos para o efeito. Foi por isto que a Convenção de Istambul impôs novas regras de guarda para os casos de violência doméstica.

Se há uma queixa há um agressor, logo não pode ter a guarda dos filhos. É assim?
Tem de ser. Não presumo que as mulheres mintam. Quando uma mulher apresenta uma queixa e tem estatuto de vítima, isso significa que a sua queixa foi considerada credível pelo sistema, e que é preciso acautelar de imediato o interesse da criança. Estas regras são impostas, como referi, pela Convenção de Istambul.

As pessoas por vezes mentem.
Nestes casos, é raríssimo. É uma taxa muito mais baixa do que nos outros crimes. Nem vejo esta preocupação com as queixas noutros crimes. Porquê aqui? Porque estão em causa os interesses dos homens. Até 1982 não havia sequer crime de maus-tratos conjugais e a violação da mulher pelo marido não era crime. A aplicação judicial do critério da alienação parental para retirar a guarda à mãe cuidadora e a imposição da residência partilhada, nas famílias com história de violência doméstica, promovem a família patriarcal e perpetuam a dependência de mulheres e crianças.

E a presunção de inocência? Os homens são potenciais agressores?
Claro que não são potenciais agressores. Isso são ilações abusivas que alguns movimentos retiram do sistema de proteção das crianças. O princípio da presunção de inocência aplica-se em toda a sua plenitude no processo-crime. Mas, do ponto de vista da proteção da criança, nos processos tutelares cíveis, prevalece o seu interesse e as suas necessidades de proteção contra um perigo. É a lei que o afirma. Não podemos abstrair do perigo enorme que representa a violência doméstica só porque não há uma sentença de condenação transitada em julgado.
A comissão encarregada de analisar o sistema diz precisamente que os profissionais não veem a violência doméstica como crime. Por vezes, os relatórios das técnicas alegam a alienação parental em casos de violência doméstica e deixam as crianças em perigo. É na altura do divórcio que os agressores aumentam a intensidade da violência.

Um homem que bate na mulher deve ficar imediatamente impedido de receber o filho?
Se não impedido, pelo menos com visitas supervisionadas, caso a criança deseje ver o pai. Bater não é algo normal. Não pode ser naturalizado. As crianças que assistem à violência também são vítimas. E é fundamental dar primazia à proteção. Repito, havendo estatuto de vítima, é porque a queixa foi considerada fundada, logo tem de haver medidas.

Foto: Rui Oliveira/Global Imagens

Por exemplo?
Suspensão de visitas, por exemplo. E medidas de coação efetivas e céleres. Nos casos em que se verifiquem os pressupostos legais, essa medida pode ser a prisão preventiva. O problema está desde logo nas primeiras 72 horas, quando, nos casos de elevado risco, há perigo de vida. O agressor tem de ser imediatamente detido e aplicada a medida de coação. Se não for aplicada a medida de coação nas primeiras 72 horas ou ainda antes, ele pode matar. Este ano, a média foi quase de uma mulher assassinada de dez em dez dias. Outra coisa incompreensível é a percentagem de 90% de penas de prisão suspensas. Não percebo um sistema que condena a prisão efetiva pequenos traficantes de droga, que são consumidores, e pessoas que conduzem sem carta e aos indivíduos condenados por violência doméstica aplica uma pena suspensa. Mesmo sujeitos a medidas de vigilância podem continuar a perseguir as vítimas.

Voltemos à adolescência. Porquê o Direito?
Aos 14 anos tinha a decisão tomada. Aparentemente era até uma jovem discreta, como sou hoje, não dava nas vistas. Mas fui sempre muito sensível à injustiça.

Fale-me da infância.
Nasci em Braga, e sou uma de quatro filhos. O meu pai era geólogo e a minha mãe professora de Inglês. Com seis meses de vida fui para a Vista Alegre, uma terra pequena habitada pelos trabalhadores da fábrica de porcelana na qual o meu pai também trabalhava. Aí vivi até aos 14 anos. Como as outras crianças, brincava na rua, ia a pé para a escola sozinha, vivi em relações de amizade e solidariedade com as pessoas que moravam ali. A Vista Alegre ainda hoje é o meu mundo encantado. Lembro-me que comecei a pensar na diferença de género, embora não conhecesse a palavra género, quando pensei que sendo rapazes e raparigas iguais nas brincadeiras que fazíamos, em casa os homens e as mulheres adultos tinham funções diferentes.

Era assim em casa dos pais?
Os meus pais contratavam uma empregada, porque a minha mãe sempre trabalhou fora de casa. Mas era a minha mãe que cuidava dos filhos e que geria a vida doméstica. Eu falava pouco. Discutia mais com os meus primos e só quando ouvia algo injusto, como uma vez em que um deles disse que o adultério da mulher era mais grave do que o adultério do homem. Felizmente, os meus pais não eram machistas. Nunca lhes ouvi um discurso machista. E eu era hipersensível nessa matéria.

Da adolescência guardou algum livro importante?
O primeiro livro com orientação feminista – Política Sexual (Kate Millet). Descobri-o tinha 19 anos, andava no primeiro ano da faculdade. Folheei-o, por acaso, na feira do livro e comecei a gostar. Aquilo era tudo novo para mim. Comprei. E foi o primeiro passo.

Assédio de rua marcou-a desde muito jovem.
Quando aos 14 anos fui morar para o Porto, havia muito assédio de rua. Sentia-me impedida de estar na rua, a rua era dos homens e eu estava ali a ocupar espaço. Tinha medo. Por isso fiquei muito feliz com a criminalização do assédio. Na altura pensei: até que enfim, uma lei vem refletir a experiência que eu e outras miúdas tivemos.

O que remete para o seu percurso na Justiça. Quando haverá mulheres suficientes no Supremo Tribunal de Justiça?
Quando estiver numa secção só com mulheres (ri).

Daqui a dez anos?
Penso que não chegará a acontecer no meu tempo de vida. Mas vai haver evolução, progresso, com certeza. Mas, em termos sociais, neste momento estamos numa fase de recuo. À medida que o feminismo conseguiu algumas conquistas para as mulheres, aumentou o antifeminismo. Eu continuarei a lutar pela igualdade. Não me arrependo absolutamente de nada. Mesmo quando me declaram excessiva. Paga-se um preço, mas não me importo.