Era dia de festa no Casino Estoril. A Samco, marca de vestuário, apresentava a nova linha de casacos de pele de raposa, com pompa e circunstância. A apresentação, como era hábito naquele tempo, estava carregada de encenação. No palco, até dois caçadores improvisados havia. E uma mulher, loira e vistosa, imponente casaco de peles vestido.
Às tantas, abre os braços. Mas o momento escapa ao guião. O casaco abre-se e o burburinho é imediato. Mesmo que a protagonista tivesse um bódi preto, a tapar-lhe o tronco, e que as pernas estivessem disfarçadas por collants de tom escuro. A polémica instala-se. “Aquilo deu muito que falar. A minha foto até saiu no jornal. E lembro-me que as senhoras [as responsáveis da marca] ficaram furiosas”, conta Ria Leitão, a loira vistosa que se fez modelo num tempo em que as manequins se contavam pelos dedos das mãos.
Estávamos no pré-25 de Abril e o país vivia ainda amordaçado por uma ditadura que tocava em todos os pontos da sociedade portuguesa. A moda, enquanto forma de expressão artística, não era exceção. Os desfiles rareavam e as apresentações de coleções aconteciam quase exclusivamente como iniciativas de boutiques frequentadas por um leque restrito de compradores. Além de que o decoro extremo era obrigatório. “Na altura, tinha de ser tudo muito tapado”, lembra a ex-manequim, agora com 73 anos.
Mais de quatro décadas depois, quase custa a crer que o episódio do bódi preto tenha acontecido no mesmo Portugal que tem manequins a desfilar para as grandes marcas mundiais e criadores a ganhar prémios nos quatro cantos do planeta. Mas aconteceu. Culpa de um regime fechado ao mundo, que ditou um atraso de décadas na generalidade das áreas. A moda, em particular, estava a anos-luz da efervescência das principais capitais europeias. E só o 25 de Abril ajudou Portugal a apanhar, aos poucos, o comboio das tendências que já reinavam pelo mundo fora.
“Nessa altura, muito do que havia cá era feito por costureiras e modistas e era tudo muito formal, pouco ousado, tudo muito cinzento. Tudo pouco criativo e estimulante. Em Inglaterra, já se faziam coisas coisas incríveis.” Susana Marques Pinto, stylist, sabe do que fala. Em 1974 já trabalhava em Londres, na Yves Saint Laurent.
A moda inglesa ia chegando a Portugal a conta-gotas, quase exclusivamente pela mão de boutiques e lojas de moda jovem, como a Tara, a Migacho e a Porfírios. Esta última, com lojas no Porto e em Lisboa a partir da década de 1960, assumiu um papel particularmente relevante. Tanto que houve quem lhe chamasse a “meca da moda jovem”.
No fundo, a ousadia das peças vendidas na Porfírios (jeans justíssimos, camisas floridas, cintos e pulseiras “prá frentex”) e o próprio conceito do espaço – as lojas tinham uma coreografia própria e as funcionárias usavam minissaia – encontravam correspondência perfeita na fome de modernidade e rebeldia que os jovens começavam a ter. A sintonia era tanta que havia quem andasse com autocolantes das lojas Porfírios colados no vidro de trás do carro.
Mas foi já na década de 70, dois anos antes de Abril, que abriu, em Lisboa, a loja que haveria de ser “a revolução antes da revolução”. Chamava-se Maçã e foi um projeto da estilista Ana Salazar, vista por muitos como a “a mãe da moda portuguesa”. O que tinha de tão inovador a Maçã? Essencialmente, o último grito do que se fazia em Londres: gangas com delavées (processos de lavagem) e “patchworks” ousados, vestidos compridos, às flores, e um magote de peças com influências etnológicas – dos casacos à afegã às túnicas indianas. “Antes da revolução, as pessoas já estavam com uma enorme apetência para mudar”, aponta Ana Salazar.
Não espanta, por isso, que a revolução levada a cabo a 25 de Abril de 1974 tenha servido para acentuar esse desejo de romper com a tradição e fazer diferente. “A seguir à revolução, há uma informalização. Os bancários tiram a gravata, os militares andam de cabelo comprido, as calças de ganga banalizam-se. Há até um célebre caso em que o ministro do Trabalho chegou ao Ministério de carro e, quando o porteiro o viu sair do carro de calças de ganga, pô-lo na rua, porque aquele era o lugar do ministro”, recorda Paulo Morais-Alexandre, professor de História da Moda na Escola Superior de Teatro e Cinema.
Por fim, o conservadorismo dominante e a roupa feita por medida são destronados pelo estímulo da criatividade e a multiplicação dos pronto-a-vestir. “As pessoas começam a vestir-se de forma mais liberta, mais contemporânea. Usam ganga, roupa colorida, imensos padrões. Há uma modernização gradual”, explica a stylist Susana Marques Pinto.
A mudança de regime também se fez sentir na Maçã. “Com a revolução, o interesse pela loja cresceu ainda mais. Os ordenados subiram e as pessoas começaram a querer vestir-se de forma mais descontraída e divertida. Nos dias em que chegavam os artigos novos, era tanta gente que cheguei a ter de chamar a polícia para ir para a porta da loja”, conta Ana Salazar.
Mas o papel da estilista, hoje com 77 anos, não se limitou ao êxito da roupa que fazia chegar de Londres e vendia na Maçã. Com as licenças de importação a serem canceladas, Ana inverteu a lógica do jogo: começou a fazer produção própria e a vender para Inglaterra. Pouco depois, criou a Harlow, a primeira marca própria. E assim se tornou força motriz de uma recém-nascida moda de autor, até pelos muitos desfiles que ia promovendo. “Na altura em que comecei não havia nada. Hoje, temos pessoas pelo mundo inteiro a trabalhar com grandes estilistas”, contrapõe.
Bairro Alto é epicentro da movida da moda
Manuela Gonçalves também foi uma das precursoras da moda em Portugal. Quando voltou de Londres, onde estudou moda ao abrigo de uma bolsa concedida pelo antigo Fundo de Fomento de Exportação, começou a trabalhar para marcas industriais (como a Fábrica Simões). Paralelamente, desenvolveu uma marca própria, que deu a conhecer na Carmim e na Loja Branca.
Outro nome incontornável deste período é Manuel Alves, que deu os primeiros passos na moda de autor na Invicta. “No Porto já havia gente muito interessante, mas, talvez por causa dos conceitos burgueses, as pessoas não eram tão recetivas às novas ideias. O homem ainda era muito clássico. De qualquer forma, havia um nicho que se podia conquistar. Gente que procurava fugir do convencional e queria coisas inovadoras ao nível do design, da cor, da forma, do padrão”, enfatiza Manuel Alves, o estilista que, na viragem da década de 1970 para a de 1980, abriu no Porto a loja “Cúmplice”, dedicada ao trabalho de autor.
Anos depois, o criador da Invicta muda-se para Lisboa, uma cidade “mais recetiva às novidades”. Não é à toa que, nos primeiros anos da década de 1980, o Bairro Alto se faz epicentro de uma certa movida da moda, formada por jovens criadores, que emergem com o novo cenário político e social proporcionado pelo pós-25 de Abril.
“Nessa altura, há um grupo mais alternativo que se começa a juntar no Frágil [bar/discoteca de Lisboa], do Manuel Reis, e que engloba muitos dos primeiros criadores de moda portugueses. A Manuela Gonçalves, o Manuel Alves, o José Manuel Gonçalves, o Filipe Faísca, a Eduarda Abbondanza”, enumera Paulo Morais-Alexandre, professor de História da Moda.
Tudo jovens criadores que, além das lojas próprias (os que as tinham), começaram a produzir para as feiras da moda que ocorriam na FIL, em Lisboa, e na Exponor, no Porto (neste caso, com grande peso do gabinete Portex, criado em 1977 pelas associações têxteis portuguesas).
O florescimento do setor têxtil e do vestuário, que, nos anos 1980, se torna o eixo central da economia portuguesa, coincide com um período dourado para as manequins em princípio de carreira. Que o diga Dalila Martins, a professora que, no final da década de 1970, se lançou na carreira de modelo. “Nessa altura havia tanto trabalho que eu chegava ao ponto de recusar trabalhos ao fim de semana e de dizer que não a tudo o que metesse fatos de banho e lingerie. Lembro-me de uma vez que pedi um cachê exorbitante e mesmo assim aceitaram. Na altura, vivia tão bem que a minha primeira casa foi decorada por um decorador que trabalhava nas embaixadas.”
Yolanda Lobo também foi manequim neste período, entre 1980 e 1984. Tempo de sobra para testemunhar uma realidade “completamente diferente da de hoje”. “Nas feiras de moda, os desfiles eram verdadeiros espetáculos, dançados e coreografados. Tínhamos coreógrafos que passavam dias a ensaiar connosco. Eram espetáculos muito apelativos”, destaca a atriz que, em 1981, quando foi desfilar a Paris, ficou boquiaberta com as diferenças: “Tinham cabeleireiros, maquilhadoras, tinham tudo. Cá, nós é que fazíamos tudo: dos cabelos postiços às pestanas postiças”.
É também na década de 1980 que se começa a perceber a importância de encontrar pontes entre os estilistas e as fábricas. São então criados os primeiros centros de formação de moda. É o caso do CITEM (Centro Internacional de Técnicos de Moda), que, em Portugal, é o primeiro a disponibilizar um curso profissional de estilismo. Depois, surgem o CITEX (Centro de Formação Profissional da Indústria Têxtil) e o CIVEC (Centro de Formação Profissional da Indústria de Vestuário e Confeção).
Em conjunto, esses centros lançam a primeira grande geração de designers emergentes. Paralelamente, os acontecimentos de moda multiplicam-se a ritmo acelerado. Ana Salazar, por exemplo, chega a promover desfiles que chamam ao Coliseu perto de cinco mil pessoas. Em 1986, é a vez de a associação cultural Manobras promover, na rua de O Século (Bairro Alto), uma passagem de modelos que haveria de ficar na história da moda: as Manobras de Maio.
É também nesta altura que manequins como Ricardo Carriço e Sofia Aparício dão os primeiros passos. “No dia em que cheguei a casa dos meus avós e disse que queria ser modelo as reações não foram muito positivas. Na altura, não era uma coisa muito bem vista”, revela o ator, que começou no mundo da moda aos 20 anos.
“Os manequins eram um bocado atores. Sempre que uma marca apresentava uma coleção, eram-nos dadas diretrizes para que criássemos personagens. Éramos vendedores de sonhos. Não olhar para as pessoas era proibido. Hoje em dia, isso não existe. Os manequins limitam-se a desfilar.”
Democratização da moda começa na rua de Santa Catarina
Sofia Aparício, que começou ainda em 1983, com 13 anos, atesta as diferenças. “Os desfiles eram gigantes, chegavam a durar hora e meia. As maquilhagens eram pesadas. Estávamos nos anos 1980, era tudo muito exagerado. Sentia-se essa vontade de olhar lá para fora e rasgar os céus, mas faltava profissionalismo. Agora, há equipas muito boas que mudam um desfile em dois tempos. Hoje em dia, estamos ao mesmo nível do resto do Mundo”, defende a ex-manequim que, no arranque da década de 1990, venceu o Miss Wonderland.
Entretanto, a moda vai deixando de ser apanágio de um nicho para se abrir à sociedade. Para isso, muito contribuem a chegada das grandes marcas internacionais a Portugal, com designs inovadores e preços relativamente acessíveis.
A italiana Benetton abriu a primeira loja em Portugal em 1984 na Rua de Santa Catarina, no Porto, o mesmo local escolhido pela espanhola Zara para inaugurar o primeiro espaço no nosso país, em 1988. Estava desbravado o caminho para a democratização da moda, na perspetiva do consumo. “Essa democratização faz-se com mais qualidade de vida e, se existe uma oferta inovadora que vai ao encontro das possibilidades das pessoas, tudo se conjuga. Do ponto de vista do trabalho de autor, a democratização não acontece ao mesmo tempo, porque cada um tem o seu próprio público”, elucida a socióloga Cristina Duarte.
Para a democratização contribui também a televisão, e em particular as apresentadoras, que dão a conhecer a todo o país um tipo de vestuário mais moderno. E ainda há as revistas femininas, que surgem no final da década de 1980, com secções dedicadas à moda. É o caso da Máxima e das edições portuguesas da Elle e Marie Claire, como destaca Cristina Duarte, no livro “Moda” publicado em 2004.
“As pessoas começaram a mostrar-se mais recetivas a seguir as tendências e nós procurávamos descodificá-las e adaptá-las à revista, com a nossa visão pessoal. Na altura, Portugal estava muito fechado e as pessoas ainda não percebiam bem o que era a moda. Acho que as ajudámos a olhar para o mundo da moda de outra forma”, admite Paula Mateus, editora-assistente da secção de moda da Máxima durante os primeiros anos da revista.
E se, para a generalidade da população, a moda se ia tornando menos inacessível, no mundo dos criadores e dos manequins a profissionalização ganhava forma. Em 1970, o inglês Bryan McCarthy abriu em Portugal a primeira escola de manequins e, quase duas décadas depois, Tó Romano deu o passo que faltava: em 1989, lançou a Central Models, a primeira agência de modelos 100% portuguesa.
“Estive fora durante cinco anos, a trabalhar como modelo, e foi aí que vislumbrei a possibilidade de organizar a atividade dos modelos em Portugal, que tão importante seria para dar resposta a dois booms inevitáveis: o da moda e o da publicidade, este último graças ao aparecimento das televisões privadas”, descodifica Tó Romano, antes de traçar o retrato daquele tempo: “O campo da imagem praticamente não existia. Nenhum modelo tinha portefólio. E o mundo da moda resumia-se a um núcleo muito pequeno de pessoas. Hoje, é possível que existam aproximadamente mil modelos em Portugal. Na altura, eram uns 60”.
Nesse período, começam também a surgir novas profissões ligadas à moda, em que se englobam os produtores de moda (Paulo Gomes é um nome incontornável), cabeleireiros, maquilhadores, fotógrafos e jornalistas.
Pouco depois da Central Models, nasce também a ModaLisboa – na primeira edição como iniciativa das festas da cidade de Lisboa e, na segunda, em 1991, já como um evento “a sério”. “Nessa altura, começavam a aparecer criadores de relevo, mas, até aí, havia fenómenos isolados, quase só de venda aos amigos. Achámos que era o momento para tentarmos fazer uma mudança. É claro que na altura ainda havia poucos cabeleireiros, poucos maquilhadores. As pessoas chegavam a esperar uma hora por um desfile. Mas, mesmo assim, foi um sucesso”, recorda Mário Matos Ribeiro, ele que, ao lado de Eduarda Abbondanza, fundou a ModaLisboa.
Quatro anos depois, surge, no Porto, o Portugal Fashion. Inicialmente, era para ser um evento único, para celebrar o décimo aniversário da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE). Mas o facto de nesse ano não ter havido ModaLisboa, o que permitiu juntar quase todos os criadores de relevo a nível nacional, e a presença de top models, como Claudia Schiffer, Carla Bruni e Elle Macpherson, causaram “um impacto tão grande” que passou a ser periódico.
“A ideia foi fazer um evento mais abrangente, em que, além dos criadores, estivesse também a indústria. Na altura, os fabricantes já estavam a perceber que tinham de deixar de competir só pelo preço, para acrescentar design. O impacto foi brutal, tanto para o reconhecimento da moda portuguesa, como para a sintonia da capacidade criativa dos estilistas com a capacidade produtiva das indústrias. Até aí, as indústrias olhavam para os estilistas como bichos-do-mato”, sublinha o empresário Manuel Serrão, responsável pela organização da primeira edição profissional do Portugal Fashion, no Coliseu do Porto (e de muitas outras desde então).
Por esta altura, brilhava nas passarelas Paulo Pires, um dos primeiros manequins portugueses verdadeiramente internacionais. Madrid, Barcelona, Londres, Milão, Munique, Paris, Viena e Tóquio foram algumas das cidades onde desfilou. “Na altura, a moda em Portugal ainda era um mundo pequeno, mas faziam-se produções super criativas. Era estimulante ver o que se fazia cá na altura, perceber que o melhor que se fazia lá fora já chegava cá, mesmo com poucas condições. Foi uma fase efervescente da moda em Portugal”, realça o ator.
Uma efervescência em que se incluem nomes como José António Tenente, Anabela Baldaque, Luís Buchinho, Nuno Gama, Miguel Vieira, Fátima Lopes, Maria Gambina ou Ana Sousa. Ou, mais tarde, Katty Xiomara, Nuno Baltazar e Micaela Oliveira. Já para não falar nos manequins portugueses que, com Sara Sampaio como principal bandeira, representam hoje as grandes marcas mundiais. Todos (incluindo outros já referidos ao longo deste trabalho) ajudaram Portugal a chegar ao momento de projeção internacional que hoje vive. E pensar que tudo isto acontece no mesmo país em que, há menos de meio século, um bódi preto deixou todos em alvoroço…