Maria Amélia Ferreira: “As mulheres do Norte deviam mandar neste país”

Texto de Sara Dias Oliveira

Maria Amélia, 63 anos, anda com desenvoltura pelos corredores do terceiro piso da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde tem o gabinete. Pára sempre para dois dedos de conversa com quem se cruza pelo caminho em mais um dia de trabalho numa casa que conhece há mais de 40 anos. Onde se tornou médica, onde é diretora, a primeira mulher na história da faculdade. Um privilégio, uma responsabilidade.

“Em termos de igualdade de género não será muito distintivo. Ser a primeira mulher em 190 anos é algo que poderá marcar a diferença naquilo que as mulheres têm de fazer: sentarem-se à mesa e assumirem as responsabilidades e os desafios”, refere.

É mulher de pulso firme. Perseverante, crítica sem ser rígida, flexível nas decisões. Não lida bem com faltas de transparência e de lealdade, com a mentira e a arrogância. “Tenho uma determinação fortíssima quando tenho convicções.” Formar médicos, transformar pessoas tem sido o seu lema na casa que tem 3 692 alunos, 206 professores a tempo inteiro, 164 funcionários não docentes.

O seu trajeto é denso. Em 2017, recebeu o Prémio Dona Antónia Adelaide Ferreira pelo percurso consolidado e merecedor “de inequívoco reconhecimento público.” Um orgulho imenso. “Significa um reconhecimento de toda esta atividade relacionada não só com uma atividade profissional, limitada a uma área universitária, mas a toda uma área social que tenho desenvolvido.”

Na hora do discurso, decalcou uma frase de Miguel Esteves Cardoso: “As mulheres do Norte deviam mandar neste país.” Não por uma questão de bairrismo ou de regionalismo. Mas por uma questão de fibra. “As mulheres do Norte têm assumido muito daquilo que é o comando das instituições familiares, o comando do que são os valores institucionais da sociedade. Isso tem sido muito marcado nas mulheres do Norte.”

No ano passado, no Dia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Maria Amélia é diretora da instituição desde 2014.

E no prémio da Ferreirinha, dessa mulher de pelo na venta, que lutou contra o monopólio inglês dos vinhos do Porto, pareceu-lhe apropriado. Maria Amélia é uma mulher do Norte, nascida em Vila Nova de Gaia. É portista ferrenha, sem cartão de sócia, mas com cachecol oferecido por Pinto da Costa. Sabe os nomes dos jogadores, vê os jogos em casa, não rói as unhas mas é incapaz de ver penáltis. “O F. C. Porto deveria ganhar sempre.”

É uma mulher que sabe o que quer. “O que me deixa realmente feliz é acordar de manhã, levantar-me para fazer o que gosto, pensar que venho trabalhar para um local de que gosto e que reconheço de qualidade na sua individualidade. E faz-me muito feliz saber que tenho uma família feliz.”

Gosta de cinema, de literatura, de estar em família, de organizar eventos na faculdade, da receção aos estudantes, das caminhadas às seis da manhã junto ao mar, de contemplar o rio Douro. Adora cozinhar. “É um momento cultural importante além de tudo o resto, um momento em que dá para tirar ideias interessantes”, confessa.

E é uma mulher de armas que não vergou a uma doença oncológica. Viu-se do outro lado. Foi uma lição de vida, um segundo emprego, como diz. “O estar do outro lado da história é muito importante.” Viver e ter a coragem de ser feliz é uma frase de uma canção de Maria Bethânia que transmite o que lhe vai na alma. Como um espelho.

Qualquer mancha nota-se na bata branca
Foi a primeira pessoa na família a ir estudar para uma universidade. Quase não foi médica. Foi por um triz. As aulas de Biologia Experimental da professora Luísa Cortesão no 7.º ano no liceu, em Vila Nova de Gaia, revolucionavam-lhe o cérebro. Mudaram-lhe a forma de ver e pensar o mundo. Começou a perceber a importância do pensamento científico. “Luísa Cortesão abriu-nos perspetivas”, recorda.

Nada foi como dantes. Maria Amélia, aluna de excelência, média de 18 no liceu que lhe valeu um prémio nacional, barra a Matemática, queria estudar Engenharia Aeronáutica em Lisboa. Queria trabalhar na NASA. Os altos voos esfriaram. Mãe doméstica, pai operário fabril, o dinheiro não chegava para estudar na capital. Com um avô que trabalhava no hospital militar, decidiu ir para Medicina no Porto. Não era propriamente uma vocação, mas não havia alternativa.

A relação não foi fácil no início. No primeiro ano do curso, quase desistiu. O inglês do liceu não lhe parecia suficiente para digerir os livros de Medicina. E, num dia de desespero, atirou o livro de Anatomia contra uma parede de casa. Ficou dividido em três partes, teve de o coser. Ironia do destino, acabou por ser professora catedrática de Anatomia.

Nos tempos do liceu, em Vila Nova de Gaia, cidade onde nasceu. Luísa Cortesão foi sua professora de Biologia Experimental no antigo 7.º ano.

Esteve sempre no grupo dos melhores alunos. Estudava muito. “É um curso muito exigente, como claramente tem de ser, que exige um trabalho muito intenso nos primeiros anos porque os conteúdos são importantes, estruturam o pensamento clínico.” Vestiu, pela primeira vez, a bata branca na disciplina de Propedêutica Médica no São João e sentiu o peso da responsabilidade. “Qualquer mancha que caia nota-se muito na bata branca.”

Ainda não tinha acabado o curso e já tinha um convite para ensinar na universidade. Doutorou-se em 1985, fez um estágio de quatro anos em Amesterdão. É provedora da Santa Casa da Misericórdia de Marco de Canaveses desde 2012. Orienta vários projetos que não se restringem ao trabalho no lar de idosos da Misericórdia. O serviço móvel de saúde SMS + Mais Cuidadores trata da comida, higiene e não só. Tem uma equipa multidisciplinar com enfermeira, psicóloga, farmacêutica, terapeuta ocupacional, médico, fisioterapeuta para qualquer necessidade, e dá formação aos cuidadores nas mobilizações e na alimentação. Um projeto que recebeu uma menção honrosa no Prémio Maria José Nogueira Pinto.

A Misericórdia trabalha em várias frentes. Faz rastreios cardiológicos aos idosos, promove projetos de literacia em saúde. “Nestas instituições de economia social, como as Misericórdias, nos cuidados continuados, nos internamentos, nos paliativos, podemos ensinar áreas emergentes que de outra maneira não seria possível.” Desafios que só são possíveis, realça, com equipas motivadas. Em julho, recebeu o Prémio Nuno Correa Verdades Faria, da Misericórdia de Lisboa, pelas atividades de responsabilidade social promovidas junto das populações idosas que vivem em ambiente rural.

Universidade, economia social, família
Durante quase dez anos, foi diretora do gabinete de Relações Internacionais da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Mais projetos para quem não consegue estar parada, na linha da frente em programas de cooperação para o desenvolvimento sobretudo com os PALOP.

A humanização da Medicina é uma missão que se lhe entranhou na pele. “Muito mais do que o tratar dos doentes, é o cuidar.” Envolveu-se no programa “A Name for Health”, financiado pela Comissão Europeia. Três anos em Angola e Moçambique para criar centros de informação médica, gabinetes de apoio aos estudantes, instalar um laboratório de simulação biomédica em Cabinda, tornar possível o ensino à distância de anatomia patológica numa universidade de Maputo.

“Ganhar mundo é absolutamente relevante para todos. A quantidade de conteúdos não falta, falta é saber gerir as coisas. A mobilidade cria mundo, cria oportunidades, e as instituições ganham muito com isso.” Em 2011, estes programas valeram-lhe o Prémio Educação da Fundação Calouste Gulbenkian.

É consultora para a área da saúde de Marcelo Rebelo de Sousa. Sobre os conselhos nem uma palavra, essas conversas são segredo de Estado. “O Presidente da República é a pessoa que o país precisava para unir os portugueses e tem-no conseguido pelas características ímpares de personalidade que tem mantido”, comenta. A saúde é o seu território.

Em seu entender, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) atravessa dificuldades financeiras e de reorganização de recursos humanos. Há mestres em Medicina que não têm acesso à especialidade porque o número de vagas é inferior ao número dos que saem das faculdades.

Os indiferenciados já são mais de meio milhar e há migração de médicos para o privado. “Haverá uma altura de falha de médicos especialistas”, alerta. “Com a evolução tecnológica, com as necessidades técnicas que são necessárias à área da saúde, é muito difícil uma gestão como a do Ministério da Saúde. O SNS, se compararmos com outros países, tem uma boa estrutura que não devíamos perder. Devíamos defendê-lo do melhor modo possível”, acrescenta.

Move-se numa tríade que considera perfeita, essencial para a sua vida como o ar que respira. Universidade-trabalho, solidariedade-economia social, casa-família. É mãe de um médico oftalmologista que gosta de tocar saxofone. E o que mudaria no mundo? “A ganância do poder pelo poder. Deteriora sociedades e torna aflitivas as vidas das pessoas. Há muitos atos de violência de países com excesso de tudo.”