Texto Catarina Fernandes Martins, em Paris | Fotografias Sandra Rocha, em Paris
O primeiro encontro de Lizzie Levée com o fado é uma história de fuga. Lizzie, nascida em Avignon numa família francesa, filha de um músico, estudante de piano clássico desde os 6 anos, ouvinte de Edith Piaf, Barbara e Jacques Brel, tinha 15 anos quando escutou Mariza num documentário sobre Lisboa exibido na televisão francesa.
A descoberta terá durado dez segundos, o suficiente para que Lizzie sentisse choque e uma necessidade imediata de rejeitar a própria reação. «Pensei que não era possível que alguém cantasse assim, que era uma alucinação auditiva, que era demasiado genial. Eu estava com dúvidas sobre a minha identidade de cantora e quando a ouvi pensei: ‘Não pode ser, vou passar a outra coisa…’»
Quase só coração, Lizzie decidiu aprender português, fazer Erasmus em Lisboa, morar em Alfama. Fez amigos portugueses, construiu uma «família lusófona».
A resistência de Lizzie durou até ao novo encontro, meses depois. «Ouvi‑a cantar Ó Gente da Minha Terra na televisão. Fiquei sem poder falar durante duas horas. Não entendia a letra, percebia apenas o título porque falava espanhol, mas pensei que tinha de digerir aquela emoção que senti. Era evidente o talento daquela mulher, mas havia algo mais. Havia algo na música e na língua que falava diretamente comigo, como se eu fosse portuguesa sem saber. Senti sempre saudade. De forma constante. Era um sentimento que me nutria, mas não percebia como porque sabia que não existia em francês», diz sobre a fase em que a cabeça combate ainda o coração, momentos antes da rendição.
Quase só coração, Lizzie decidiu aprender português, fazer Erasmus em Lisboa, morar em Alfama. Fez amigos portugueses, construiu uma «família lusófona». Em pequena morou perto do mar, cresceu fascinada pela liberdade selvagem dos flamingos de Avignon e por fantasias de partir e voltar. À beira do Tejo reencontrou esse imaginário. «Podemos ter raízes em todos os lugares onde nos sentimos bem.»
No regresso a França, compunha em francês, mas notava a influência dos sons portugueses, dos temas da navegação, da viagem. Da saudade. «Fiz um disco de canção francesa, mas percebi que andava entre duas margens, que ia da margem lusófona à margem francesa. Percebi que era uma viagem», diz. Como um bordado em que cosesse todas essas referências, adotou o nome artístico Lizzie Navegante.
«Demorei muito tempo até ter acesso à cultura fadista. Em Lisboa ouvi muito fado, sem compreender o que era o fado. Quando perguntava, diziam‑me que não se explicava, não se ensinava»
Lizzie sentia o que sentia, mas o cérebro da cantora queria compreender. Talvez a compreensão fosse a chave para entrar num mundo que tanto lhe dizia, mas que sentia vedado por não ser portuguesa. «Demorei muito tempo até ter acesso à cultura fadista. Em Lisboa ouvi muito fado, sem compreender o que era o fado. Quando perguntava, diziam‑me que não se explicava, não se ensinava», diz.
Nas noites de fado vadio, em Paris, conheceu Philipe de Sousa, um luso‑francês intérprete de guitarra portuguesa. Com a sua ajuda, Lizzie alargou o repertório e começou a cantar uma vez por mês, ritmo que não era suficiente para matar a «saudade».
Nessas noites conheceu também o português Nuno Esteves, que tocava viola e respondeu às perguntas de Lizzie. «Compreendi finalmente que, ao contrário da canção francesa, em que as letras são escritas para composições específicas, o fado tem um repertório de músicas e de poemas que joga com as estrofes e as métricas e que podemos escolher uma letra para um fado musical à nossa vontade.»
«Não gosto de etiquetas e daquela atitude de estarmos sempre a analisar se é fado ou não. É preciso saber o que é o fado, mas sem o limitar. A etiqueta pode ser uma gaiola, uma prisão.»
Dessa triangulação surgiu o grupo Fado Clandestino que, segundo Lizzie, permite aos três elementos «ter total liberdade artística» dentro do fado e em torno dos seus limites, expressão que põe a cantora a torcer o nariz. «Não gosto de etiquetas e daquela atitude de estarmos sempre a analisar se é fado ou não. É preciso saber o que é o fado, mas sem o limitar. A etiqueta pode ser uma gaiola, uma prisão.»
O encontro entre estes três elementos levou‑os a desafiar esses limites. «Não podemos cantar fado em francês num restaurante de fado, mas neste grupo fazemos o que queremos. É um diálogo entre um português, um luso‑francês e uma francesa apaixonada pela língua portuguesa que se baseiam no fado tradicional, mas gozam de total liberdade para transmitir a sua visão sobre o fado», diz.
Esse diálogo permite misturar o fado e o rock no Fado da Sina. Ao escutá‑lo pela primeira vez, Lizzie divertiu‑se com «o lado sádico» da música e resolveu que a mesma pedia uns acordes de rock.
«Costumo dizer que não gosto de canções de amor e os fadistas dizem‑me que o fado é só sobre o amor. Mas eu acho que o fado é acima de tudo sobre a dignidade, mesmo quando se fala do amor.»
Quando necessário, o grupo não hesita em unir o fado e o baile francês para cantar o poema Les Yeux d’Elsa com o Fado Alexandrino do Estoril. Tal como está à vontade na hora de musicar o poema Albatroz de Charles Baudelaire com o Fado Alexandrino de Joaquim Campos. Apesar de todas estas experimentações, Lizzie sentiu‑se realmente a transpor uma fronteira quando escreveu uma letra original para o Fado Margarida.
«Quis escrever um texto que não falasse de amor. Costumo dizer que não gosto de canções de amor e os fadistas dizem‑me que o fado é só sobre o amor. Mas eu acho que o fado é acima de tudo sobre a dignidade, mesmo quando se fala do amor. Canta‑se sobre humilhações que se sofreram por amor para recuperar a dignidade. Então não é sobre amor, é sobre o indivíduo que resiste às desgraças amorosas», diz, antes de cantar Fado Clandestino, poema que acabou por escrever e que inclui este verso-chave: Amor e saudade já os cantei, agora vou cantar o meu exílio.
«Eu queria escrever algo sobre a minha forma de ver o povo português, que é um povo que parte, que se exila, mas que transmite sempre a cultura e a língua aos filhos.»
O poema de Lizzie tem um engajamento político que lembra a canção francesa, conjugando simultaneamente a alma do fado e das canções de protesto portuguesas do período anterior ao 25 de abril. Um português disse‑lhe que cantava como um português que é obrigado a partir. E foi precisamente a identificação desse sentimento que inspirou a cantora.
«Eu queria escrever algo sobre a minha forma de ver o povo português, que é um povo que parte, que se exila, mas que transmite sempre a cultura e a língua aos filhos. A cultura portuguesa vive muito além das fronteiras e isso fascina‑me e enche‑me de ternura», diz.
Cabeça e coração finalmente em equilíbrio, porque era tão importante entender a razão por detrás da emoção do fado? «Queria que o público francês compreendesse realmente o fado. Geralmente acham a melodia muito bonita, mas sentem algo que não podem explicar porque precisam da parte cultural e não a recebem. Quando eu ouço fado tenho um grande prazer ao perceber o jogo cultural e quero dar esse prazer aos outros».
Mais do que ser chamada de fadista, aquilo que move Lizzie é a possibilidade de se expressar com total liberdade artística e pessoal, de viajar por todos os territórios, de criar raízes seja onde for que se sente em casa.
Os Fado Clandestino existem há cerca de um ano e têm cantado em França. Lizzie não está absolutamente convencida de que um grupo de fado que por vezes canta em francês seja bem recebido em Portugal, embora alimente o sonho de atuar no nosso país.
«Uma amiga portuguesa, escandalizada com o que eu fazia, disse‑me uma vez que o fado se canta em português. Respondi‑lhe que tinha de me ouvir antes de julgar. Aquilo que fazemos soa a fado, mas eu não estou a tentar ser fadista de raça nascida na Rua do Capelão», diz.
Depois dos ataques terroristas de novembro de 2015, Lizzie Levée, cidadã do mundo, precisou de processar o que se passava com o fado De mim para ninguém, escrito por Artur Ribeiro.
Mais do que ser chamada de fadista, aquilo que move Lizzie é a possibilidade de se expressar com total liberdade artística e pessoal, de viajar por todos os territórios, de criar raízes seja onde for que se sente em casa, ao mesmo tempo que deixa «a alma voar». Porque independentemente de o dizer em francês ou em português, Lizzie tem uma crença estrutural que não carece de tradução porque pode ser alimentada e sentida por todos: Não há fronteiras.
Depois dos ataques terroristas de novembro de 2015, que puseram o mundo a reerguer muros e fronteiras, Lizzie Levée, cérebro francês, coração também português, navegante entre todas as margens, cidadã do mundo, precisou de processar o que se passava com o fado De mim para ninguém, escrito por Artur Ribeiro.
«Os mortos chocaram‑me, mas o que me chocou mais foi que aqueles que mataram eram irmãos, vizinhos, amigos de amigos de infância. Um deles era amigo da filha de uma amiga. Dei por mim com aqueles versos na cabeça… Alguém que se perdeu nas ruas da ansiedade/ Que viveu a meu lado e a quem eu já quis bem / Alguém que enegreceu as ruas da cidade / Inspirou este fado de mim para ninguém. Eles cruzaram‑se connosco, eles eram nós.»
A fadista que não gosta de histórias de amor
Quando escreveu o poema Fado Clandestino, Lizzie Navegante quis desafiar a ideia de que o fado se debruça apenas sobre histórias de amor.
«Não é que não queira cantar canções de amor, mas não gosto muito de canções que contam histórias de amor porque as histórias parecem‑me geralmente superficiais», diz.
Aquilo que interessa à cantora francesa nas canções de amor não são as histórias, mas o que elas nos dizem sobre «os nossos sentimentos de solidão, de errância, de quanto nos podemos perder ou encontrar na relação com o outro».
Para Lizzie Navegante, o fado «é acima de tudo sobre as humilhações que se sofreram por amor e sobre a recuperação da dignidade depois do fim dessas histórias», algo que a cantora considera mais interessante.
«Adoro o fado. Se não sabes o que é fado, cantado por Fernanda Maria, mas não o canto. Este fado diz “fado é amor, que sobrou dalgum queixume, que se agarrou ao ciúme…”. Para mim não é assim. O fado não é amor, é a expressão de algo mais profundo que se encontra no “queixume” e no “ciúme”. Esses sentimentos é que nos dizem qualquer coisa das nossas vivências, dos nossos males, e, portanto, das verdadeiras problemáticas da vida.»