Irmãos do cancro

Texto de Cláudia Pinto

Foi sempre uma criança saudável até ao dia em que uma febre muito elevada não cedia nem com medicação. Até então, nada faria prever que Pedro, com quase quatro anos à época, poderia ter uma doença grave. O diagnóstico chegou de repente, sem pedir autorização. Como se explica a uma mãe que o filho tem uma leucemia linfoblástica aguda?

Passados cinco anos desse dia, Vera Pereira, de 48, ainda não sabe responder. Depois do embate, havia decisões a tomar. O tempo passava a inimigo e os internamentos hospitalares seriam uma realidade ininterrupta nos meses seguintes. Vera e o marido Rui têm mais dois filhos, Tomás (irmão gémeo de Pedro) e Catarina, dez anos mais velha do que os rapazes. O casal tinha ainda dois negócios próprios (um cabeleireiro e uma empresa na área de informática) e uma vida profissional repleta de compromissos.

Estava-se em fevereiro de 2013 quando Pedro começou a ser seguido no Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil (IPO-Lisboa). A partir desse momento, nada voltaria a ser como dantes. “De repente, vejo-me com um negócio para gerir, com três filhos, dois deles pequeninos. Um deles a precisar de mim mais do que tudo, e o outro, o Tomás, a perguntar-me: ‘Mãe, tu agora só gostas do mano?’ Eu explicava-lhe que os pais amavam os filhos de igual forma mas que tinham de se focar no mais frágil, e naquele momento era o Pedro que precisava mais de nós”, explica Vera.

Todos os anos, 200 mil crianças e adolescentes recebem o diagnóstico de cancro infantil em todo o mundo, 400 em Portugal. A notícia leva a uma concentração na criança doente mas atinge toda a família, desviando-a dos planos até ali estabelecidos. “Do ponto de vista psicológico, a doença espoleta uma crise psicossocial que rompe com a normatividade, as rotinas e a estabilidade prévia”, observa Magda Oliveira, psicóloga da consulta de psico-oncologia do Hospital CUF Porto.

Todos os anos, 200 mil crianças e adolescentes recebem o diagnóstico de cancro infantil em todo o mundo, 400 em Portugal.

Havia uma espécie de turnos parentais no hospital. A mãe dormia com o filho, tomava um duche rápido de manhã, e Rui dormia em casa, preparava as lancheiras e levava a prole restante ao infantário e à escola. O marido tentava trabalhar um pouco durante as primeiras horas do dia e encontrava-se ao almoço com Vera no hospital, ficando no seu lugar. Vera voltava ao cabeleireiro para tentar ajudar a única empregada que conseguiu manter na altura e para ganhar algum sustento para a família. Ia buscar os filhos à escola ao final do dia, preparava as refeições e voltava ao hospital. E assim sucessivamente, durante 97 dias de internamento consecutivo.

“Quando se vivem semanas de internamento, a noção de tempo e de privacidade pode ficar alterada. A ausência de casa e da vida dos outros filhos, por vezes, traz uma grande preocupação e até culpa em relação aos mesmos”, sublinha a psicóloga.

Da impotência à esperança
“O Tomás sentiu muito a falta do mano e sofreu com a logística do dia-a-dia. A Catarina foi confrontada à bruta com uma realidade dura. Na ideia dela, as crianças não morrem. Ainda hoje, tem muita dificuldade em lidar com a doença”, confessa Vera, lembrando os meninos que se tornaram amigos de Pedro no hospital e que não sobreviveram.

Pedro no hospital com a mãe, Vera Pereira.

Os pais tentaram manter as atividades extracurriculares, as rotinas escolares e a presença de ambos, na medida do possível, para que o impacto da doença não fosse tão grande. “A partir do momento em que recebemos o diagnóstico não vivemos: processamos a vida. Passamos a ser robôs”, afirma Vera, consciente do que se perde no meio do processo e do sentimento de impotência que teima em não desaparecer. Não existem dúvidas de que o diagnóstico de uma doença oncológica impõe a reorganização de papéis e desestrutura os dias. “Há uma consciencialização cada vez maior por parte das famílias do quanto é importante não negligenciar a prestação de cuidados e a manutenção das rotinas do filho saudável”, refere Magda Oliveira.

Goreti Marques foi enfermeira especialista em saúde infantil e pediatria na área de oncologia durante 16 anos, sendo atualmente professora na Escola Superior de Santa Maria do Porto, bem como investigadora no Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, na mesma cidade. É uma das coautoras do estudo “O impacto da doença oncológica nos irmãos saudáveis”, em 2016, em que se constatou que os irmãos de crianças com cancro experienciam “alterações familiares que podem provocar diminuição do rendimento escolar, sofrimento decorrente da separação durante os longos períodos de internamento, desajustamento psicossocial, sintomas somáticos, sentimentos de rejeição, isolamento, ciúmes, preocupação, ansiedade, tristeza e incertezas”.

Face às modificações nos papéis parentais exigidas pelo tratamento da doença oncológica da criança, os pais podem ainda vivenciar modificações no relacionamento conjugal. “Os tratamentos podem alterar o padrão de funcionamento familiar, modificar a divisão de cuidados parentais e promover o distanciamento físico do casal durante os longos períodos de hospitalização da criança, aumentando, em consequência, a incidência de conflitos conjugais”, salienta Goreti Marques. Os pais de Pedro são a antítese disto. Vera emociona-se quando recorda os almoços românticos que o marido insistiu em preparar na cantina do hospital. “É um homem maravilhoso. No meio das nossas dores, dizia-me sempre que íamos conseguir.” E conseguiram. Pedro está em remissão (isto é, sem atividade da doença) desde 2016. “Repetíamos que ele não tinha nascido doente e que esta era uma maldade que a vida lhe estava a pregar, mas que ia ficar bom.” Foi esta a esperança que alimentou os dias da família.

Pedro e Catarina, a irmã mais velha.

Irmãos que cuidam
Em 2010, Maria João Magalhães, 32 anos, foi confrontada com o diagnóstico de cancro no irmão João Maria que, aos 14, se viu a braços com um Linfoma não Hodgkin e contou com o apoio próximo da primogénita. “Lembro-me que tudo começou com uma infeção respiratória que não passava, além da perda de peso repentina e dos suores noturnos”, recorda. “Na altura, ainda vivia com os meus pais e percebemos que algo poderia não estar bem. O meu irmão era jogador de andebol federado, o típico atleta com uma boa alimentação, e nunca nos passou pela cabeça que pudesse ser cancro.” Um médico mais atento pediu exames complementares no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho e João Maria já não voltou a casa nesse dia, tendo sido internado no IPO-Porto. O diagnóstico foi recebido em sobressalto. “Era o primeiro caso a que assistíamos tão próximo e acho que ficámos meio adormecidos”, desabafa.

O rapaz passou por períodos de internamento e de isolamento, pelo menos no primeiro ano, com “várias complicações no percurso, algumas delas muito assustadoras”, conta a irmã. A estabilidade só chegaria ao fim de dois anos com o espanto de Maria João perante a força de vontade do irmão. “Desejei inúmeras vezes estar no lugar dele porque lhe estava a ser roubada uma fase fulcral no crescimento: a adolescência.”

O facto de já ser adulta e independente permitiu que se envolvesse diretamente em todo o processo, apoiando os pais de perto. “Fazia o papel de dona de casa, conselheira, amiga, irmã mais velha… Para os meus pais, foi algo que não se explica. A minha mãe despediu-se do emprego para acompanhar o meu irmão. É a pessoa mais corajosa e forte que conheço.”

Antes da doença, os irmãos andavam sempre “às turras”. Mas se houve algo que o cancro aprofundou foi “a grande amizade e o imenso amor” entre ambos. “Tenho uma grande admiração pela forma como ele lidou com tudo. Tentei ajudá-lo a recuperar a sua vida normal. O que mais me custou foi vê-lo sofrer e não poder fazer mais nada.”

Maria João Magalhães com o irmão. Há oito anos, João Maria Magalhães viu-se a braços com um Linfoma não Hodgkin.

Vera Pereira considera que Tomás foi “a chave para a recuperação do gémeo”. Perante a falta de força, numa fase em que deixou de andar, e quando teve de ficar mais tempo na cama, em casa, Tomás via filmes com Pedro, “fazia-lhe festinhas nas pernas”, brincavam juntos. “Foi difícil de gerir quando o Tomás nos pedia para não ir à escola para ficar a fazer companhia ao mano.” A cumplicidade foi uma constante.

Recomeçar teve desafios tão ou mais exigentes do que a própria doença. “Temos ainda fragilidades a colmatar, feridas a sarar, mas se já éramos um núcleo há cinco anos, hoje somos uma concha. Crescemos muito na dor, ajustámo-nos às necessidades uns dos outros, mas temos dois meninos de nove anos a começar a ter caráter e vontade próprias. A Catarina está no segundo ano de Design, no IADE, em Lisboa, e trabalha em part-time para ajudar em casa. Sempre fomos uma boa equipa”, frisa Vera.

O que restou do cancro? Como são hoje estas pessoas e famílias? Diferentes, asseguram. “Tenho uma filha de 15 meses e provavelmente não teria a atenção redobrada com a sua saúde se não tivesse acompanhado a doença do meu irmão”, sintetiza Maria João. “Além disso, não sou capaz de fazer planos a longo prazo. Toda a família aprendeu a viver um dia de cada vez.”

Rui e Vera também mudaram. “Nos dois anos e meio em que o Pedro esteve doente, tinha a sensação que estava num filme a ver a minha vida a passar em paralelo. Hoje, a família não está igual, continuamos a ter medo e dúvidas”, sublinha a mãe. Mas já é possível usufruir de momentos de paz.