Daniel Innerarity: “Estamos a prestar uma grande atenção aos provocadores”

Texto de Emanuel Carneiro | Fotos de Artur Machado/Global Imagens

Fala de forma suave, mas assertiva. Apesar de torrencial, o discurso surge claro, transparente. Afinal, as ideias são, mais do que nunca, armas para enfrentar um Mundo cuja complexidade só tende a intensificar-se.

O filósofo e ensaísta basco Daniel Innerarity, nascido em Bilbau, Espanha, em 1959, é um intelectual humanista, condição sob a qual lhe foi recentemente atribuído o Prémio Eulalio Ferrer. É mais um galardão no percurso deste professor universitário, que sucede a personalidades como Fernando Savater, Mario Vargas Llosa, Edgar Morin e Octavio Paz, entre outros, na lista de vencedores.

Catedrático de Filosofia Política, Innerarity é investigador na Fundação Basca da Ciência, diretor do Instituto de Governação Democrática e docente convidado do Instituto Europeu de Florença. É um especialista internacionalmente reconhecido no âmbito da teoria da democracia e governo das sociedades complexas.

A obra mais recente é “Política para perplejos”, deste ano. Daniel Innerarity esteve no Porto para participar no quinto encontro diocesano, ao abrigo do qual debateu o tema “Desamordaçar o futuro – os cristãos no mundo contemporâneo”. Depois de o escutar, percebe-se melhor por que é que a revista francesa “Le Nouvel Observateur” o considerou um dos 25 pensadores mais influentes a nível mundial.

Se fosse um eleitor brasileiro, em quem votaria nas eleições presidenciais: Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad?
No que representa o mal menor para a democracia. Neste momento, creio que o melhor é evitar a deriva para a Extrema-Direita, mais do que qualquer outra coisa. Portanto, tentaria evitar que Jair Bolsonaro fosse eleito.

Como é que um discurso como o de Bolsonaro resulta junto de extratos da população que muitas vezes são visados negativamente por esse mesmo discurso?
Há uma explicação que não se cinge apenas ao Brasil, mas que é geral – estamos a prestar uma grande atenção aos provocadores, aos de discurso politicamente incorreto. Aliás, mais do que politicamente incorreto, é feito para provocar verdadeiramente. Isto é parte da explicação do fenómeno. A outra é que são personagens políticas que questionam e exploram bem a deceção das pessoas, a raiva delas. Esse discurso não tem nada a ver com soluções para resolver os problemas que causaram essa raiva.

Julga que, pelo menos no continente americano, a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos serviu como inspiração para o recrudescimento dos populismos?
A eleição de Trump explica-se pela confluência de vários fatores. Um tem a ver com uma certa orfandade de um setor relativamente amplo da sociedade norte-americana que se sentiu fora de jogo num novo contexto. Passou de uma sociedade branca com minorias para uma sociedade de minorias. Parte da população, a branca, sentiu-se desclassificada. Também há o fator da crise económica e a sua repercussão no capitalismo industrial. As pessoas aperceberam-se de que podiam ser afetadas profissionalmente se o complexo económico que implica os benefícios da grande indústria fosse colocado em risco. Outro aspeto que contribuiu para a vitória inesperada de Trump foi a falta de um bom diagnóstico por parte das elites políticas para o que se estava a passar. E essa ignorância não se verifica apenas nos Estados Unidos da América…

Ainda assim, a ascensão da Extrema-Direita e de alguns populismos na Europa têm uma génese diferente.
Há aspetos comuns e aspetos peculiares de cada sistema. Por exemplo, o populismo de Viktor Orbán, na Hungria, é o de uma elite corrupta que utiliza valores e contravalores para fins políticos. Já o do Movimento 5 Estrelas, em Itália, é muito diferente. Vivemos num Mundo muito complexo, que é ininteligível para muita gente. Partidos, sindicatos e meios de comunicação social interpretam-nos, são instâncias de mediação. Para atenuar esta complexidade, há duas hipóteses: políticas mais sofisticadas – que envolvam, em pé de igualdade, as pessoas e as forças políticas – ou retornar a uma fórmula muito simples, que deriva nos populismos e na Extrema-Direita, mas que não resolve o problema. Por exemplo, recuperar o controlo do Reino Unido votando pelo Brexit, como defendido pela Extrema-Direita e por parte dos conservadores, não é boa solução porque os britânicos terão menos controlo do próprio destino depois da saída da União Europeia do que antes.

Qual é a Extrema-Direita mais preocupante a nível europeu? A italiana?
O risco em Itália vem da sintonia da Extrema-Direita com populismos de Esquerda, que levou a que essas forças fossem capazes de formar um Governo. Foi contra toda a lógica e isso é que é preocupante. Estávamos acostumados à Esquerda e à Direita. Há algo diferente: democracia por um lado e populismos por outro. Ou seja, um cosmopolitismo um pouco acético e com pouco apelo popular por oposição ao retorno ao mundo enclausurado de proteção dos estados que sabemos que não é eficaz num mundo aberto como o de hoje. É interessante como esta aparente lei inexorável que, para ter êxito, apresentaria fórmulas baseadas no fecho dos países sobre si próprios, é contrariada por exemplos recentes como o das eleições na Baviera, onde Os Verdes tiveram um belíssimo resultado com um discurso europeísta, cosmopolita e pró-imigração. Não é verdade que toda a gente queira a clausura. Uma parte da população – mais jovem, mais urbana, com um discurso progressista – não quer protecionismos nem de Direita nem de Esquerda.

Julga que o que se verificou na Baviera, bem como na Bélgica, também com Os Verdes, é já uma reação contra os populismos, aos ideais propostos pela Extrema-Direita?
Creio que Os Verdes vão ter um papel muito interessante na nova política. Mas desde há muito tempo que na Europa – e nas democracias ocidentais em geral – estamos a votar mais contra do que a favor. Claro que não é má ideia votar contra a possibilidade de a Extrema-Direita chegar ao poder. Porém, parece-me que todos os discursos contra, negativos, têm uma eficácia relativa. Os discursos positivos, com uma maior coerência do que simplesmente dizer que a Esquerda é a não-Direita e vice-versa, estão a ser abandonados. Essas formulações estão por fazer essencialmente porque os partidos estão desajustados às mudanças nas sociedades democráticas.

Ainda é possível ser otimista no que toca ao desenvolvimento político, na Europa pelo menos?
Sim, sim… À ameaça do fecho nacionalista há que responder com uma maior cosmopolitização do Mundo, mas uma cosmopolitização política, não uma tecnocrática ou acética. Ao descontentamento das pessoas com as atuais formas políticas não se pode responder com uma nova versão do elitismo. Estamos a passar por momentos de grandes dificuldades, em que as soluções não podem ser mais do mesmo.

A política “caiu” nas redes sociais?
As redes sociais implicaram um avanço no processo de intermediação nas sociedades contemporâneas, em virtude da qual as velhas instâncias que mediavam a construção da vontade popular – partidos, sindicatos e média – se encontraram perante um cenário muito mais horizontal. Há uns anos, era uma boa notícia. O que estamos a ver agora é que essa horizontalidade tem também um elemento inquietante na construção do espaço político. Devíamos aspirar a uma reconstrução das instâncias de mediação sobre a base de que já não vamos voltar ao que era. O objetivo deveria ser a convivência entre a horizontalidade das redes sociais e a verticalidade da autoridade que só se conquista nos partidos, nos média e nos sindicatos de uma maneira democrática. Não vai voltar o mundo em que os jornalistas, os clássicos meios de comunicação social decretavam o que era notícia e o que não era, o que se havia de informar e o que não se havia. Isso saiu-nos das mãos.

Mas não existem, agora, demasiadas formas de olhar para uma dada realidade? Pode potenciar a deturpação…
A maior parte do debate atual tem, precisamente, a ver com a interpretação da realidade. Por exemplo, saímos da crise económica? Isso não é um dado verificável. Porque, para mim ou para si, sair realmente da crise económica depende da interpretação do Mundo e da lógica. Daí a importância do combate às notícias falsas.

A polémica com a trasladação dos restos mortais de Franco [ditador espanhol] do Vale dos Caídos para outro local não radica, em parte, numa interpretação, neste caso, de factos históricos?
É um problema que deveria ter sido resolvido há muito tempo. Poucos países têm um ditador num monumento património do Estado. O que aconteceu foi que a Direita andou muito tempo a dizer que ainda era cedo para resolver essa questão porque a Guerra Civil estava ainda muito próxima. Depois, deu um salto e passou a considerar que era demasiado tarde para resolvê-la. Passou de demasiado cedo para demasiado tarde. Perdeu-se um ponto correto. No Governo socialista antes deste não se pôde solucionar porque tinha a ver com a Concordata, com as vítimas da guerra que estão lá sepultadas. É um assunto de grande complexidade. Mas tem de haver uma solução, sem dúvida…

E esta é a melhor?
Creio que o momento oportuno era muito antes. No entanto, parece-me uma manifestação de cinismo que a Direita considere que agora é demasiado tarde. É insustentável a homenagem contínua ao ditador e a ofensa contínua às vítimas da Guerra Civil implícitas na permanência de Franco no Vale dos Caídos.

Outra questão que parece primar pela ausência de bom senso é a catalã.
Sem dúvida. A situação atual da Catalunha é um indicador de que o sistema político constitucional e institucional em Espanha é incapaz de resolver um problema desta dimensão. Os dois lados do conflito não encontraram uma solução para algo que em outros lugares se resolveu de uma maneira democrática, como nos casos da Escócia e do Quebec, no Canadá. A ideia fundamental é que estamos perante um fracasso coletivo da sociedade espanhola, sobretudo, do sistema político. Distribuir parcelas de responsabilidade é difícil, pois cada parte pensou que a outra não era capaz de levar o respetivo programa até às últimas consequências. O Estado pensou que os catalães não convocariam um referendo sobre a autodeterminação e os independentistas catalães pensaram que o Estado não se atreveria a suspender a autonomia. Estas dinâmicas terminaram em situações insustentáveis como as que se vivem agora: pessoas na prisão, pessoas fugidas no estrangeiro.

Qual acha que seria a melhor forma de resolver o conflito?
Tem de se conjugar dois aspetos que são muito difíceis de alinhar. Reconhecer que os catalães têm direito a decidir o seu próprio futuro específico – e isso deveria incluir a possibilidade de independência – e, ao mesmo tempo, admitir que, num Estado como Espanha, uma decisão desta natureza tem de incluir, de alguma forma, o resto dos espanhóis. Parece-me que a solução de um referendo de autodeterminação que não conte com o resto dos espanhóis é irreal. Como inviável é a solução de que sobre esta questão deveria decidir-se indiferenciadamente, sem reconhecer que há uma sociedade diferenciada, a catalã, que tem de ter protagonismo. A arte da política seria conjugar todos estes aspetos num ponto intermédio. Uma fórmula imaginativa que proponha maior autonomia para a Catalunha, que blinde essa autonomia e que seja respeitada pelo resto do país. Temo que seja difícil de entender em Portugal; em Espanha, também é…

Sendo basco, reconhece ter uma sensibilidade mais aguçada em relação ao contexto independentista?
Aos bascos, é permitido ser uma exceção em Espanha. Temos um sistema fiscal soberano, que os catalães não têm; falamos uma língua estranha, que não ameaça a premissa do castelhano; somos poucos, não temos uma grande urbe; na Constituição espanhola, há uma fórmula de reconhecimento de direitos históricos… Portanto, isso permite um desenvolvimento de autogoverno num horizonte muito aberto. Isto não acontece na Catalunha, devido ao tamanho da região, por causa da língua, pela importância de cidades como Barcelona… Não tem um reconhecimento específico na Constituição. Sobre a Catalunha, impera o princípio da generalização e isso dificulta muito o caráter de exceção. Sem este aspeto salvaguardado, não há hipótese.

Espanha é uma espécie de manta de retalhos, com muitas províncias de forte identidade cultural. Um Estado federado seria uma solução?
Não. Porque para uns seria demasiado e para outros seria demasiado pouco. Creio que a solução teria de apontar no sentido de uma confederação ou, se quiser, uma síntese entre uma linha federal e uma de confederação. Seria uma fórmula interessante para resolver o problema.