A Coimbra que apaixonou Adriana Calcanhotto

Depois de um semestre em que deu aulas no ano letivo passado, Adriana Calcanhotto regressou à Universidade de Coimbra. Para ensinar e para aprender, garante a cantora brasileira, professora por uns meses em salas de inscrições esgotadas. Em vésperas dos concertos que dará em Portugal a partir de 10 de abril, fomos com a compositora num passeio pelos locais de que mais gosta na cidade dos estudantes.

O ponto de encontro é a Tasca das Tias Camellas, o bar do Sapientia Boutique Hotel, na Alta universitária de Coimbra, classificada pela UNESCO como Património da Humanidade. O local cruza antigo e moderno, há livros à vista e uma parede em que se lê «Coimbra é uma lição».

Mas é sobretudo «a vista muito bonita» sobre a cidade, o Mondego e a Academia que leva Adriana Calcanhotto a escolher começar aqui o roteiro pessoal pela cidade a que regressou no início deste mês. Depois da experiência no ano passado, a cantora e compositora brasileira veio novamente dar aulas na mais antiga universidade portuguesa, da qual é embaixadora no Brasil.

Lembra­‑se bem da primeira visita à Biblioteca Joanina. Ficou fascinada com um pequeno gabinete, com vista para o rio, logo à esquerda ao entrar. «Aquele canto era tudo o que eu queria na minha vida»

A poucos metros fica a Biblioteca Joanina, paragem obrigatória para a professora Adriana, que a descreve como «um dos grandes orgulhos de Coimbra». Lembra­‑se bem da primeira visita àquele lugar que «tem a prisão [académica] por baixo e na parte de cima tem livros, o oposto da prisão».

Ficou fascinada com um pequeno gabinete, com vista para o rio, logo à esquerda ao entrar. «Aquele canto era tudo o que eu queria na minha vida.» E revisita­‑o agora, com menções às duas colónias de morcegos que vivem naquele paraíso de livros em fundo dourado, onde até já atuou.

Não é novidade Adriana cruzar­‑se com conterrâneos na Universidade de Coimbra, considerada a mais brasileira fora do Brasil, porque atrai um elevado número de estudantes daquele país

«Sou fã das músicas dela, são muito lindas, sobretudo as que foram tema de novelas lá em Salvador», comenta Celso Santos, um brasileiro que trabalha na biblioteca e a reconhece.

Não é novidade Adriana cruzar­‑se com conterrâneos na Universidade de Coimbra, considerada a mais brasileira fora do Brasil, porque atrai um elevado número de estudantes daquele país – neste momento, serão cerca de dois mil (num total de 25 mil na instituição).

«Fiquei muito contente por ver tantos brasileiros estudando aqui, tão respeitados pelos professores – que dizem que nós somos a alegria da universidade», diz a cantora. «E isso não é pouca coisa.»

A Universidade de Coimbra, fundada no século XII, mais antiga do que o Brasil, «é uma referência importante para nós. Em muitos nú­cleos de pensamento no Brasil, a sementinha vem daqui, da elite de alunos que vieram para cá e começaram a discutir o Brasil do ponto de vista de quem o tinha visto de fora. Eu estou repetindo essas coisas séculos depois.»

A vivência que Adriana Calcanhotto tem da cidade já lhe permitiu testemunhar algumas tradições académicas que subsistem. «A Estudantina fez uma serenata para mim. Os meninos botaram uma capa nos meus ombros para eu ouvir as canções. E fui convidada para um jantar numa república. A convivência das pessoas nas repúblicas é uma coisa incrível – não tem que ver com o estudo académico, mas é do aprendizado humano, você está ali convivendo com pessoas. Chega uma pessoa para comer e tem de comer, e tem de ser recebida.»

A única que Adriana visitou até ao momento foi a Real República Baco, na Alta. «Eles me convidaram pelo facto de o Vinicius de Moraes ter ido lá.» Lembra­‑se de que em cada quarto havia pelo menos um instrumento musical, diz enquanto vai prendendo o olhar às fachadas dos edifícios onde estão as repúblicas, decoradas com objetos tão variados como sapatos, teclados de computador ou ferros de engomar. «Adoro essas coisas penduradas.»

«Se você não quebra certas coisas, não se adapta ao mundo, não se abre, você não sobrevive 728 anos. Eu penso que, se o fado de Coimbra quiser sobreviver, não vai poder continuar fechado no Clube do Bolinha»

No que diz respeito a grandes tradições da cidade, o fado de Coimbra, por outro lado, sempre a deixou «meio distante, por ser só para homens». E vê com bons olhos a existência de mulheres a cantá­‑lo.

«É isso que o reitor, João Gabriel Silva, fala a respeito da própria universidade, que tem agora 728 anos. Se você não quebra certas coisas, se você não se adapta ao mundo, se você não se abre, você não sobrevive 728 anos. Eu penso que, se o fado de Coimbra quiser sobreviver no mundo, não vai poder continuar fechado no Clube do Bolinha.»

Quando Adriana está longe de casa, no Rio de Janeiro, apazigua a falta que lhe fazem os seus cães e gatos acarinhando outros que encontra no caminho. Nas imediações da Real República Baco, é uma cadela, Kimura, que corre a cumprimentá­‑la.

E não será a única, nessa caminhada pelo centro histórico, com passagem pela famosa escadaria íngreme do Quebra Costas e pelo Largo da Sé Velha. «Por acaso a senhora é Adriana Calcanhotto? A gente gosta muito da senhora!», atira­‑lhe um casal de turistas do Recife.

A capa negra que lhe ofereceram tem, presos por alfinetes, vários presentes que foi guardando, desde bilhetes escritos à mão até versos d’Os Lusíadas ou um crachá com a inscrição «Fora Temer»

Mais acima, no Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras, fica o gabinete da professora, onde mantém alguns objetos desde que passou por lá, no ano passado. Entre eles, um violão – a avó deu­‑lhe um aos 6 anos, era quase do seu tamanho, e demorou algum tempo até se tornar o instrumento de eleição – e uma capa negra que lhe ofereceram e fez questão de usar no concerto que deu no Jardim da Sereia, no evento Sons da Cidade, em junho do ano passado.

Aquela capa é ainda mais especial porque tem, presos por alfinetes, vários presentes que foi guardando, desde bilhetes escritos à mão até versos d’Os Lusíadas, passando por um crachá com a inscrição «Fora Temer» ou um relógio de Siza Vieira que o próprio lhe ofereceu e no qual se lê «Rio Douro cor de prata».

O arquiteto já lhe tinha dado um igual – conheceu­‑o quando foi visitar o Museu de Serralves pela primeira vez, e esse relógio estava a ser lançado – mas foi­‑lhe roubado no Rio de Janeiro. «No ano passado, ele me deu o último», diz junto à secretária com uma edição do jornal universitário A Cabra e diversos livros.

A leitura é um dos prazeres da cantora e poder ler livros inteiros sem ser interrompida é um feito que a deixa satisfeita ter conseguido durante a primeira experiência como professora na universidade, entre fevereiro e junho do ano passado, altura em que esteve hospedada no Hotel Quinta das Lágrimas.

Esse local, associado aos amores míticos de D. Pedro e Inês de Castro, onde chegou a atuar, no âmbito do Festival das Artes, também faz parte do roteiro de eleição de Adriana. «Gosto muito dos jardins, sou muito amiga da árvore centenária. A fonte também é linda.» Espreita o jardim tentando avistar um gato que conheceu pelo nome Eusébio e vai falando: «Eusébio, meu amigo, era um pouco uma estrela. Há um outro, mas nunca me apareceu. Esse é mais estrela ainda.»

«Sou muito sensível a estes lugares onde acontecem coisas. A energia fica retida de alguma maneira. Um lugar em que a Amália [Rodrigues] gostaria de ter vivido não pode ser um lugar ruim»

Nota­‑se que a Quinta das Lágrimas foi a sua casa durante meses pelo à-vontade com que percorre os espaços, cumprimentando funcionários que reencontra no edifício histórico que tanto a seduz. «Sou muito sensível a estes lugares onde acontecem coisas. A energia fica retida de alguma maneira. Um lugar em que a Amália [Rodrigues] gostaria de ter vivido não pode ser um lugar ruim. E as pessoas são incríveis.»

O que Adriana acha «mais lindo» em Coimbra é justamente «a convivência dos tempos e dos povos, das culturas diferentes». E dá um exemplo: «No criptopórtico, no Museu Nacional de Machado de Castro, no meio do caminho de uma cidade toda planejada, que é uma cidade romana, você atravessa uma parede medieval. Eu acho isso lindo. Hoje, Palmira está destruída, Alep­po está destruída… Em Coimbra, as coisas vão sendo acrescentadas.»

Na primeira masterclass que Adriana Calcanhotto deu em Coimbra, no ano passado, centrada no seu percurso profissional, a artista disse que não era do seu feitio olhar para trás. Mas o que lhe ficou desse semestre, em que foi desafiada a «desenvolver um plano de atividades intenso» na Cidade dos Estudantes, e ainda esteve em residência artística?

Antes de mais, garante que aprendeu muito, quer com alunos quer com professores. Como Pedro Carvalho, da área de arqueologia, que «é uma sumidade, sobretudo do Portugal romano. Ele é que escavou Conímbriga, ele é que escavou o criptopórtico [no Museu Nacional de Machado de Castro], e é uma pessoa que ama transmitir o que sabe, então fiquei aluna dele e fui fazer campo com ele, fui escavar».

«Comecei a explorar o Portugal romano com o professor Pedro e a ir todos os finais de semana para algum sítio desses de escavação, ou alguma aldeia romana, até que descobri Idanha­‑a­‑Velha [concelho de Idanha­‑a­‑Nova, distrito de Castelo Branco], fiquei encantada… É uma aldeia tipicamente portuguesa. Vivem [lá] 50 pes­soas, que usam aquelas pedras do medievo e as pedras romanas – pegam num capitel romano e numa pedra do tempo dos templários e botam assim», gesticula. «Põem uma outra pedra no meio e botam uns vasinhos de planta. É de uma beleza!»

Além de ter feito escavações, que pretende retomar agora, durante aquele semestre de 2017 Adriana teve aulas de guitarra elétrica, estudou, compôs, escreveu até um livro para crianças sobre a história da universidade

A sede de conhecimento de Adriana parece ter começado a manifestar­‑se cedo. «Eu tinha um sonho muito antigo, de infância, de ser arqueóloga, veterinária, tenista… não dá para fazer tudo?» E também por isso se sente satisfeita por estar no sítio certo para aprender mais sobre muitos dos temas que lhe despertam interesse. «Qualquer coisa sobre a qual eu tenha curiosidade, aqui tem um mestre para me explicar tudo.»

Além de ter feito escavações, que pretende retomar agora – até comprou uma pá –, durante aquele semestre de 2017 Adriana teve aulas de guitarra elétrica, estudou, compôs, escreveu até um livro para crianças sobre a história da universidade, que vai ilustrar agora. Outro fruto da passagem por Coimbra, no ano passado, foi o espetáculo que está prestes a estrear em Portugal, A Mulher do Pau­‑Brasil [ler caixa].

Novidade é também o curso «Como Escrever Canções», que Adriana está a lecionar desde 5 de março e até 7 de maio, proposto pela universidade. «Não é mau esse curso, porque assim pode ser que eu aprenda», diz com humor.

A cantora diz­‑se «encantada» com os alunos, os seus «26 parceiros», com diferentes idades, formações e proveniências. Há até um que veio de Curitiba, no Brasil, de propósito para fazer o curso

Depois explica: «Não existe como escrever canções. Cada canção é o que ela é. Claro que é possível que, no meu comportamento criativo, que não é metódico, haja uma média da maneira que eu faço as coisas. Mas se eu ficar investigando isso, não faço a canção. A impressão que eu tenho é que cada canção pede o que ela precisa.»

A cantora diz­‑se «encantada» com os alunos, os seus «26 parceiros», com diferentes idades, formações e proveniências. Há até um que veio de Curitiba, no Brasil, de propósito para fazer o curso. É claro que vai dar­‑lhes algumas noções básicas, por exemplo, sobre melodia, a importância do ritmo, do andamento, que «é uma coisa determinante numa composição».

A especificidade da escrita de canções como uma atividade complexa, a evolução do formato canção desde as origens até hoje, estrutura e partes da canção, sentido e estrutura da canção e análise de canções são alguns temas abordados nas sessenta horas do curso. «Mas, embora você possa ter todos os elementos para como escrever uma canção, não quer dizer que você possa.» Não se espere, pois, uma receita. Se fosse assim tão fácil fazer um hit, «para quê os artistas?»

«Foi muito estimulante ver como a Adriana vestiu a camisola da Universidade de Coimbra, até no papel de embaixadora», para o qual foi nomeada em dezembro de 2015

No fundo, o que Adriana procura transmitir é a sua experiência. «Não chego dizendo “é assim que se faz”. É sempre do ponto de vista “foi assim que eu fiz até aqui”. E certas coisas que eu vi e me inspirei, que me formaram, que eu admiro. Por exemplo, há compositores muito metódicos, disciplinados… O Lulu Santos é um compositor de música pop, no Brasil, que faz uma música por dia, como exercício. Eu não tenho essa capacidade, eu só tenho inveja disso…»

A experiência como professora, no ano passado, foi diferente, a começar pelo facto de ter lecionado masterclasses para quinhentas pessoas. «Correu muitíssimo bem, e mesmo os espetáculos que [Adriana Calcanhotto] deu em Coimbra provam que há um interesse grande pelo que ela faz, do ponto de vista artístico», diz a vice­‑reitora da universidade para a Comunicação e Cultura, Clara Almeida Santos. «Foi muito estimulante ver como a Adriana vestiu a camisola da Universidade de Coimbra, até no papel de embaixadora», para o qual foi nomeada em dezembro de 2015.

A instituição não revela o valor que paga à artista para dar aulas ali – adiantando apenas que corresponde ao salário de professora auxiliar convidada. E continuar a apostar em professores menos convencionais é uma possibilidade. «Não fechamos as portas a outras pessoas que, com reconhecido mérito, possam vir a partilhar o seu conhecimento desta forma com estudantes da Universidade de Coimbra», diz a vice­‑reitora.

E como surgiu, ao certo, a ligação da artista brasileira à mais antiga universidade portuguesa? «Houve um concerto em março de 2015 na abertura da Semana Cultural e comemorando os 725 anos da Universidade de Coimbra. Nessa ocasião a Adriana visitou a universidade e ficou particularmente encantada com a Biblioteca Joanina.»

Para já, Adriana Calcanhotto não tem um disco novo em vista nem se imagina a largar «a maravilha de estar em Coimbra dando aulas, indo para a biblioteca», para fazer um álbum

Falou­‑se na hipótese de fazer um concerto lá, e ele acabou por se concretizar, no encerramento das comemorações dos 725 anos da instituição, no âmbito do «Congresso Internacional Língua Portuguesa: que Futuro». Estava criado o elo.

Para já, Adriana Calcanhotto não tem um disco novo em vista nem se imagina a largar «a maravilha de estar em Coimbra dando aulas, indo para a biblioteca», para fazer um álbum.

Mesmo o seu heterónimo infantil, Partimpim, está parado. «A Adriana Partimpim não combina com esse mundo tão organizado, metódico, disciplinado, da vida académica. Ali é tudo mais espontâneo. Ela está na caixinha, daqui a pouco chega lá do recreio.» Agora a Adriana crescida está na universidade.

Cantar, compor, escrever, ilustrar

Adriana Calcanhotto, 52 anos, iniciou o percurso artístico nos anos 1980, com apresentações em bares e casas noturnas da cidade natal, Porto Alegre, no Sul do Brasil. Tem mais de dez discos lançados e muito mundo corrido com concertos, performances e intervenções poéticas. E tem composições gravadas por intérpretes da música brasileira como Ney Matogrosso, Maria Bethânia ou Marisa Monte. Recebeu o prémio Grammy Latino em 2004, com o heteró­nimo Adriana Partimpim, de Melhor Álbum Infantil, e em 2010, com Tua, Melhor Canção em Língua Portuguesa. Além de cantora e compositora, é escritora, ilustradora e antologista. Em dezembro de 2015, foi nomeada embaixadora da Universidade de Coimbra no Brasil, e tem trabalhado na divulgação e no estudo da literatura portuguesa em universidades europeias e brasileiras.

Os espetáculos de abril

Adriana Calcanhotto está quase a estrear em Portugal o espetáculo A Mulher do Pau­‑Brasil, com concertos agendados para 10 de abril no Centro Cultural de Belém (Lisboa), dia 21 no Teatro Micaelense (Ponta Delgada) e dia 24 no Coliseu do Porto. Os bilhetes custam entre 15 e 55 euros. O novo espetáculo é fruto da residência da artista em Coimbra, no ano passado. A aprendizagem, a pesquisa e os trabalhos que desenvolveu como professora na cidade, onde pensou bastante sobre o diálogo Portugal­‑Brasil, serviram de base à sua criação. O espetáculo vai incluir êxitos, interpretações de temas de outros artistas e alguns inéditos.