Há duas fotografias tão bonitas na reportagem que faz capa desta edição, na página 26, atentem nelas. São dois pares de meninos, um deles é o mesmo, aliás, se virem com atenção tem o mesmo pijama vestido. Uma parece o inverso da outra. Na foto maior, os meninos estão a brincar, desabridos numa luta com algo que não se vê mas parece ser uma bola.
Na outra, estão ambos a posar com seriedade para a câmara do estrangeiro – na fechada Myanmar, os estrangeiros ainda são tratados com deferência e até com superstição, sendo sinal de boa sorte. Quase não se nota, nas suas faces mesmo assim sérias mas tão dignas, que um não tem uma perna e o outro já tem a data de amputação marcada.
Não vou fazer demagogia sobre estas duas fotos. Não vou dizer como a infância é tão forte, e a vontade de brincar pode ser tão indomável que aguenta tudo, ai aguenta aguenta, como diria o outro. Não vou tentar ironizar com a conversa de ambos que é descrita na reportagem – um quer ser piloto de aviões quando crescer. E nós sabemos, da história, que isto é um enorme «se» e não um eventual «quando».
Estes meninos das fotos são doentes da ala oncológica do Hospital Pediátrico de Yangon. Meninos com cancro são sempre um drama, não é preciso andar tantos quilómetros, dir-me-ão. E é verdade. Mas estes estão doentes com formas de cancro que, se estivessem em países ricos, seriam tratáveis. 84 por cento das crianças com cancro vivem no mundo pobre – não é por acaso, nem a causa nem o efeito, nestes países vivem noventa por cento das crianças do mundo.
A estes calhou-lhes terem nascido em Myanmar. E por isso resta-lhes apelar à sorte – e já é alguma o facto de estarem neste hospital em Yangon onde os apanhou a reportagem da Isabel Nery e do João Pina. É que uma das maiores dificuldades no tratamento de cancros infantis em Myanmar é a distância – doze horas em média – a que estão do hospital a maior parte das aldeias de um país que passa metade do ano inundado.
Foi por isso que os dois jornalistas portugueses estiveram em Myanmar. Foram acompanhar o português que criou o projeto Please Take Me There, Fernando Pinho – depois de ter apanhado um susto grande quando o irmão quase morreu de leucemia, percebeu que uma grande ajuda era simples: levar crianças ao tratamento.
Assim criou esta ajuda – que não é pouca apesar de muitas vezes não ser suficiente, como parece indicar a reportagem. E por causa disto, sim, vou ser um pouco, só um pouquinho, demagógica: o mundo não está fácil e há muito para fazer nele. Aquilo que há uns anos se acreditava ser o tal «fim da história» acabou por revelar ser um embuste. A vida está complexa e foi ainda mais dificultada pelas desigualdades. E é com isso que somos confrontados nesta reportagem tão sensível e tão pungente.
Talvez o facto de serem crianças o foco desta reportagem a torne mais difícil de ler. Torce-nos o coração, esmigalha-nos a alma. Mas faz-nos pensar além da espuma dos dias e do desconforto de pequenas lutas. Há, sim, muito por fazer. E esta é uma boa altura para pensarmos nisso.