Deve ser meio‑dia. Mais coisa menos coisa. Eu não sei ver as horas mas ouço os crescidos falar disso e quando estou assim, com esta fome, costuma ser essa hora. Daqui a pouco, ou almoço ou choro. E depois vou comer. De uma forma ou outra, vou comer. O problema é que não vou conseguir dormir depois. Está muito barulho, muito agitado. Muitas pessoas a falar ao mesmo tempo. A minha mãe vai ter de dar uma volta comigo, deslizar o carro pela alcatifa, tentar que eu feche os olhos e adormeça. Mais umas duas horas. Até acordar novamente e começar tudo outra vez.
O que passou pela cabeça da minha mãe para se vir enfiar aqui? A minha mãe trouxe‑me à Web Summit. Sei que é assim que se chama. Andaram a falar tanto disso nos últimos dias que eu já consigo dizer as palavras. Pensar as palavras. Eu não digo nada. Só vejo E penso. Eu era para ficar com a minha avó mas ela não podia hoje. E por isso vim para aqui. A minha mãe diz que vem ver como vai ser o futuro. E que está a ajudar a prepará‑lo. Coitadinha da mãe. Sabe lá ela o que vai ser o futuro.
Nem sabe ela nem sabe esta malta toda. São muitos. São muitos e falam muito. Como é que eles são capazes de falar tanto se passam o tempo todo agarrados ao telemóvel, calados, metidos para dentro, a olhar para o ecrã? Deviam poder fazer menos barulho e deixar‑me dormir.
Das vezes que já saí daqui, direto ao colo, só vejo pessoas a olhar para ecrãs. E depois mostram‑nos uns aos outros. Vejo a minha mãe a queixar‑se muitas vezes ao meu pai do tempo que ela passa em casa a olhar para o telemóvel.
Acho que estas pessoas todas têm filhos em casa e vêm para aqui para não terem ninguém que as chateie por estarem a olhar para o aparelho. Este deve ser o sítio do mundo onde se pode olhar mais para telemóveis sem ninguém chatear.
Já percebi que isto tem que ver com tecnologia e que esta gente toda acha que descobriu a última colher de papa para lidar ainda melhor com isso. Alguns, parece, até desenvolvem tecnologia que ajuda as pessoas a deixar de lado a tecnologia. São apps que apitam se se pegar no telemóvel antes de passar um determinado período de tempo. A sério. Ouvi a minha mãe falar disso.
Eu não percebo muito destas coisas, mas acho que esta gente complica muito. E que ninguém sabe bem o que vai ser o futuro mas querem à viva força que tenha ecrãs. Se não tiver ecrãs, eles não sabem como fazer. Para onde ir. Onde procurar. A menos que perguntem, claro. Que falem com outras pessoas que sabem e os ajudem e encontrar o que quer que seja.
O meu avô fala de mapas, o meu pai fala de GPS, eu, quando crescer, vou falar de quê? A que é que eu vou agarrar-me para me orientar e descobrir caminhos? E porque é que é tão importante saber agora, já, o que vai acontecer e tentar antecipar isso? Porque é que é essencial antecipar uma necessidade para depois tentar encontrar a resposta para isso? É o que está aqui esta gente toda a fazer, não é?
Estão à procura das necessidades uns dos outros para depois inventarem coisas que os ajudem. Mas, caramba, boa parte das necessidades que inventam vêm destes ecrãs todos. É que eles já não vivem sem isto. E eu não vou conseguir também. Não me vou ver livre disto, por muito que me faça baixar a cabeça em vez de a levantar para ver outras coisas.
Está na hora de almoço e eu sei que, quando eu tiver filhos, essa refeição há de vir acompanhada de um ecrã com instruções. E eu vou achar isso tão normal que nem vou questionar. E acho que muita gente aqui está a pensar nisso mesmo: como vão criar necessidades nos outros para terem produtos que não vão questionar. É o futuro, dizem. Mas o futuro sou eu que o vou fazer. Se conseguir criar necessidades.