O meu avô Manuel era carpinteiro. Na verdade, o meu avô Manuel foi carpinteiro. A diferença no tempo verbal é importante porque, além de carpinteiro, foi também funileiro, depois teve negócios com azeitonas, mais tarde foi proprietário de uma pensão que albergava caçadores nas terras da raia de Idanha. E vendia caixões, também. Enquanto a saúde lhe permitiu, o meu avô Manuel teve ainda um café — que antes tinha sido uma taberna, mas depois chegou a caixa mágica da televisão e foi preciso adaptar o espaço, arranjar umas mesas mais catitas e umas cadeiras confortáveis.
De todas as ocupações do meu avô, a que me fascinava mais era a de carpinteiro. Eu era o neto mais novo, com uma diferença considerável para as minhas irmãs e primos, por isso já não vi o meu avô a trabalhar com plainas, serrotes, martelos, limas ou grosas. O tempo de ele dar uso às ferramentas já era o meu, o de todas as férias de verão que passei «na terra». Mas elas estavam lá, à espera, ano após ano, material de brincadeira privilegiado à disposição do miúdo que vinha da cidade para o que conseguisse fazer com tudo aquilo. Ou quase. O meu pai não me deixava mexer nos formões, e serrotes só com um adulto por perto. Na verdade, muitas daquelas coisas eu não sabia bem para que serviam, mas alguma utilidade teriam para tudo o que o avô Manuel conseguia fazer com engenho, paciência e minúcia. Das rodas de carroça às mesas, dos bancos e cadeiras às arcas.
Não sei o que é crescer sem ter ferramentas à disposição. Primeiro para brincar, depois para reparar. O meu pai ensinou-me a mexer num berbequim, explicou-me a diferença entre as várias brocas, de acordo com o material a perfurar, deu-me umas luzes sobre eletricidade, mostrou-me como se mistura água e gesso. E ainda hoje prefere buchas de madeira, que ele próprio faz, às moderninhas, de plástico.
Há dias, quando usei o berbequim em casa e precisei de espalhar o estendal de ferramentas no chão do hall, as minhas duas filhas ficaram fascinadas. Estão habituadas a ver-me mexer naquela caixa pesada, mas, naquele dia, alguma coisa as fez virar mais para aquela confusão ordenada de pregos, porcas, chaves, folhas de lixa e alicates. Ajudaram-me a escolher a broca certa, afastaram-se com segurança quando tive de fazer os furos na parede, escolheram elas os parafusos que usei para prender o bengaleiro novo (com buchas de plástico, claro, que as do meu pai são uma trabalheira).
No final, quando já estava a arrumar tudo – é um ritual que não deve ser apressado –, a Carolina, que tem 4 anos, perguntou-me: «Esta caixa é mesmo tua, pai?» Respondi que sim, que era, que a tinha há muitos anos e gostava muito dela. Que cada coisa tinha o seu sítio e que estava sempre incompleta, porque falta sempre qualquer coisa. «E onde está a caixa de ferramentas da mãe?», perguntou. A minha mulher estava perto, ouviu, e respondeu pronto, a rir-se: «A da mãe está na arrecadação. A mãe também tem uma caixa de ferramentas, claro.»
No Natal, a Carolina pediu uma bancada de ferramentas igual à que tem na escola, com a qual os meninos (eles e elas) gostam de brincar. Como cá em casa não há brinquedos de menino e brinquedos de menina — nem brinquedos nem tarefas — a minha irmã fez-lhe a vontade. Depois de a montarmos em casa, a primeira coisa que ela quis fazer com todo aquele material giro à disposição foi uma casa para… a Barbie. A estrutura equilibrava-se a custo e o telhado desmontava-se com facilidade mas, para mim, estava perfeita. Porque foi feita por ela. E eu, que não posso levar a minha filha a ver a bancada de ferramentas do avô Manuel, posso pelo menos mostrar-lhe como funcionam as minhas. E ajudá-la a escolher as dela, enquanto brinca com bonecas e com chaves sextavadas. Por vezes ao mesmo tempo. Não sei o que o meu avô Manuel diria disto, mas acho que ficaria orgulhoso. Eu fico.
[Publicado originalmente na edição de 12 de março de 2017]