Texto Ana Pago
Quem olha para Frederico Galinho – um homem pacato – e Patrícia Calçada – de riso fácil –, não os imagina capazes de arrancar tudo à dentada quando toca a futebol. «Adoro um bom encontro, mesmo que não seja o Benfica a jogar. Mas se mete o meu clube a ganhar o campeonato, ou a seleção, digo asneiras até ao fim», diz a administrativa, eufórica com o 5-0 ao Vitória de Guimarães na Luz no fim de semana passado. O marido, benfiquista ferrenho, é ainda pior. «Vejo tudo o que é jogo sem stress. A não ser quando é o Benfica», diz o técnico de cinema. «Aí tem mesmo de ganhar. Se perde, mando vir com toda a gente.» Quando as coisas correm mal, já todos sabem que o melhor é não lhe dizerem nada, porque sofre tanto quanto agora foi às nuvens ao ver o clube sagrar-se tetracampeão nacional pela primeira vez. «É como o amor, não dá para explicar. Uma pessoa sente e pronto.»
Sente e pronto. As emoções são verdadeiramente fortes, confirma Ana Cristina Martins, psicóloga social do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA). Emoção, prazer, arrebatamento se ganham. Frustração e tristeza na derrota. «Enquanto adeptos de um clube, nutrimos um sentimento de pertença a esse grupo, que passa a fazer parte integrante da nossa identidade social e do nosso autoconceito.» Um estudo da Universidade de Coimbra, recorrendo à ativação de circuitos cerebrais, concluiu que a paixão por determinado clube se assemelha, de facto, ao amor romântico – daí sobreviver às derrotas, sobrepondo os aspetos positivos aos negativos. Cientistas da Universidade de Ohio, EUA, adiantam ainda que a lealdade a uma equipa surge aos 5 anos (em plena formação da personalidade), sobretudo por influência paterna.
Nem vale a pena lembrar que são os jogadores quem ganha ou perde os milhões, porque aqui a razão não conta para nada.
Frederico entende bem isto que a psicóloga diz da paixão e do papel do progenitor – passou por ambas. «O FC Porto esteve anos seguidos a ganhar, o Benfica andou mesmo muito mal, mas nunca poderia deixar de ser do meu clube!» O pai, também benfiquista, não o pressionava: acima de tudo, adorava jogar à bola e que o filho gostasse de futebol. E ele gosta, sem dúvida: vê tudo o que é jogo de qualquer campeonato. A única diferença é que apenas o Benfica lhe faz saltar a tampa. «Deixei de ver jogos em cafés – ou vejo no estádio ou em casa – porque discutia a sério com os desconhecidos que mandavam bocas», admite. A sorte dele é ter uma mulher que o compreende, brinca Patrícia, referindo-se a si, mas também aos pais e tios com quem partilham sempre as emoções da bola. É uma segurança e um orgulho fazerem parte daquilo.
«A paixão pelo futebol é uma forma de amor tribal. Implica um forte sentimento de identidade e inclusão num grupo – o clube – e a rivalidade face aos clubes adversários», explica a psicóloga Ana Cristina Martins, para quem a tribo reflete o modo como nos vemos. «Influencia os nossos pensamentos, sentimentos e ações. Afeta-nos a autoestima, que é a avaliação positiva ou negativa que fazemos de nós mesmos.» E quanto maior a identidade clubista de uma pessoa, ou a sua identidade nacional (no caso da seleção), maior a perda de racionalidade e mais fortes as reações, sejam positivas ou negativas. «Acompanhamos as vitórias e os fracassos com uma grande intensidade afetiva porque o “eu” dá lugar ao “nós”. Não foram eles que ganharam ou perderam: fomos nós – eu também.»
Gostar de um bom encontro sem defender a glória de uma das equipas é pouco plausível. O afeto e o envolvimento emocional são parte do entendimento do próprio jogo.
Nem vale a pena lembrar que são os jogadores quem ganha ou perde os milhões, porque aqui a razão não conta para nada. «Eu chego a sentir dor física, mas o Fred é mil vezes pior. Vem do estádio e vai assistir de novo ao jogo na televisão. É capaz de ver golos antigos cinquenta vezes e vibrar como se fossem novidade», ri-se Patrícia. O filho Miguel, de 8 anos, vai pelo mesmo caminho, sempre de bola no pé. «O Fred fê-lo sócio tinha ele 2 dias de vida. Ia custar-me muito se um dia quisesse jogar no Sporting ou no Porto», diz a mãe. O pai nem quer pensar nessa hipótese: se o Miguel não gostar do Benfica, então que não goste de futebol de todo. «Não o vou pressionar, mas aceitava melhor isso do que ele não ser benfiquista por preferir outro clube.»
Se a moral anda em alta para os adeptos da Luz, no caso dos do Dragão nem por isso. «Perder o campeonato deixou-me de cabelos em pé», diz Vítor Reis, portista. «No fim contam é as vitórias dos nossos e se os rivais perderem também não se fica triste, o que não foi o caso.» O técnico superior na área do ensino faz por afastar as experiências negativas da memória, repetindo para si mesmo que isto são apenas onze rapazes de cada lado a correr atrás de uma bola. Mas gostar de um clube é apostar num dos lados e saber que no dia seguinte temos de nos cruzar com o tal colega que nos tem feito a cabeça em água, a provocar-nos. «Eu sou daqueles que veem e torcem nos jogos da seleção, considero uma honra os jogadores do FC Porto integrarem as convocatórias, mas fico doido ao vê-los arriscarem lesões em jogos amigáveis a meio da semana, antes de jogos importantes.»
Em 90 minutos libertamos tensões, afogamos mágoas e, se tivermos sorte, provamos o êxito que nos falha noutras áreas da nossa vida.
Ana Santos, professora de Sociologia do Desporto na Faculdade de Motricidade Humana, acredita que esta incerteza é justamente um dos fatores determinantes para o sucesso do futebol, em que a sorte e o azar estão sempre presentes. E, sim, acudir por um clube faz parte. «Gostar de um bom encontro sem defender a glória de uma das equipas é pouco plausível. O afeto e o envolvimento emocional são parte do entendimento do próprio jogo.» Em 90 minutos libertamos tensões, afogamos mágoas e, se tivermos sorte, provamos o êxito que nos falha noutras áreas da nossa vida. «O futebol não é religião, não promete uma vida melhor após a morte, mas tem um ritual que se parece em tudo com o religioso.» Há uma assembleia com os olhos postos no campo de futebol, tão sagrado como o altar. Jogadores a benzer-se quando lá entram, assumindo que dependem de algo divino acima das suas capacidades. Um sentimento de comunhão.
Vítor Reis reconhece dar graças, ainda hoje, por um jogo que não foi nenhuma vitória numa grande prova – só uma conquista do Porto na meia-final da Taça de Portugal em 2010-11 –, mas que representou aquilo por que é um adepto orgulhoso do seu clube: a ambição, a luta, o crer e o querer. «Depois de termos perdido no Dragão por 2-0, virámos a eliminatória no Estádio da Luz. O Benfica tinha uma bela equipa e jogava um futebol vistoso, pelo que a vitória – justíssima – foi muito celebrada lá em casa.» Gritou e saltou tanto que a vizinha de debaixo veio à janela lançar-lhe impropérios, porque o teto estava quase a cair e o candeeiro da sala dela a abanar. «Essencialmente vibro com bom futebol, por isso vejo outros jogos. Não fico feliz se o clube andar a jogar mal e a ganhar à rasquinha por muito tempo.»
«Um jogador não pode mostrar cansaço. Qualquer atleta testa constantemente os limites, e é quando os transcende que se torna o herói de todos nós», diz a socióloga Ana Santos.
Neste ponto, o portista é como a consultora sportinguista Carla Ferreira, que não deixa que a clubite lhe tolde a visão, embora já tenha mandado dois benfiquistas «àquela parte» no final de 2006, quando o Benfica foi a Alvalade vencer por 2-0. «Era um jogo desesperante, fiquei muito chateada.» Foi essa a sua primeira e última cena, prefere virar costas. O que não significa que não se arrepie a ouvir o hino ou a ver um golaço. Nem que não sofra com os lances perdidos ou grite até ficar rouca. «Lembro-me de um jogo de 2007 em que o Sporting estava a perder por 1-0 com o Nacional ao intervalo.» Era de roer as unhas e dizer todos os palavrões conhecidos e por inventar, até entrar um jogador por quem ninguém dava nada: Carlos Bueno. «A dez minutos do fim, muitos já saíam do estádio. Não viram Bueno marcar quatro golos. Fomos do desespero à euforia.»
E este é outro ponto que contribui para o futebol nos tirar do sério, explica a socióloga do desporto Ana Santos: o espírito de sacrifício em campo até ao apito final, com a sua inegável carga dramática. O corpo humano, diante de toda a tecnologia de transmissão do jogo, a aguentar o esforço que lhe é exigido numa espécie de metáfora da própria vida. «Um jogador não pode mostrar cansaço. Qualquer atleta testa constantemente os limites, e é quando os transcende que se torna o herói de todos nós», diz a professora, para quem o futebol oferece uma visão do mundo mais complexa e contraditória do que os 90 minutos de jogo. «Os estádios, grandes monumentos urbanos, tanto suscitam ligação sentimental como horror a quem não aprecia futebol. E ambos são sentimentos fortes, pelo que ninguém é indiferente ao fenómeno.»
«Acho que nesta altura o futebol português sofre de uma doença provocada por alguns comentadores, jornalistas e dirigentes, que acabam por validar o indefensável», lamenta João Ricardo Pateiro.
Cláudia Lopes, jornalista e apresentadora do programa Mais Futebol na TVI24, não é indiferente ao jogo, com toda a certeza, pelo menos no que diz respeito à seleção nacional. «Tenho um irmão que é muito benfiquista, o meu pai era muito sportinguista, de modo que sempre vimos futebol em regime de tolerância para ninguém se chatear.» A ser de algum clube, é do Barcelona. Tem zero paciência para o destilar de ódios quando a humanidade está «muito mais nas mãos de um idiota chamado Donald Trump» do que dependente do resultado de um jogo. Apenas a seleção a faz sentir-se invencível ou aterrar com estrondo, por ser o nosso país. «No ano passado criticaram-me por aparecer na Praça do Comércio com a camisola da seleção vestida, mas ao sermos campeões da Europa já toda a gente festejava. Eu não sou da seleção só quando ganha. Sou sempre.»
Por isso ficou para morrer naquelas meias-finais do Euro 2012 contra a Espanha, no Estádio do Shakhtar, na Ucrânia, em que era ela a única portuguesa presente. «Fomos perder nos penáltis por 4-2 e as lágrimas corriam-me em torrente pela cara abaixo. Senti dor, raiva, impotência. Tínhamos uma belíssima seleção e acabámos derrotados naquele desterro.» Sozinha na sua mágoa, Cláudia teve ganas de bater num espanhol que gozou com ela ao vê-la em pranto. O facto de saber que a Espanha foi melhor no prolongamento não aliviou nada. Por outro lado, também podia ter morrido de paragem cardíaca no Euro 2004, quando Portugal defrontou a Inglaterra nos quartos-de-final (apurando-se para a meia-final no desempate por penáltis, depois de o guarda-redes Ricardo defender um sem luvas e marcar o derradeiro). «Foi arrebatador. Eu gosto é de ganhar a uma equipa tão boa ou melhor do que a minha, ninguém gosta de bater em mortos.»
Porquê tornar esta loucura boa da bola numa doença patológica?
E esse é um dos problemas hoje, concorda João Ricardo Pateiro, jornalista desportivo da TSF: o facto de a rivalidade saudável se estar a transformar no tal destilar de ódios de que falava a colega de profissão. «Acho que nesta altura o futebol português sofre de uma doença provocada por alguns comentadores, jornalistas e dirigentes, que vão à televisão defender as posições oficiais dos clubes e acabam por validar o indefensável», lamenta, ele que nem a sua equipa revela para não misturar trabalho com conhaque. Fazem-se declarações feias, acusações graves que muitas vezes têm de ser resolvidas em tribunal. Então nas redes sociais vê ataques inenarráveis. «Parece que estamos numa guerra da Bósnia. As tribos tinham coisas muito agradáveis como o convívio, o espírito de entreajuda, mas parece que nós estamos a ficar só com a parte da violência.»
O pior disto tudo, lamenta João Ricardo Pateiro, é os adeptos sentirem-se legitimados nas suas reações primárias mais brutas. «Em abril, um adepto italiano da Juventude Leonina foi atropelado por rivais do Benfica. Porquê tornar esta loucura boa da bola numa doença patológica?», questiona. Se há imagem forte que guarda do futebol é precisamente a de ver carros cheios a caminho dos estádios, com gente a usar cachecóis de diferentes clubes. Também Carla Ferreira adorava assistir a jogos no café com amigos, sem receio de criticar o seu Sporting ou o adversário. Deixou-se disso para não arruinar relações. «Gosto das competições europeias, dos campeonatos de seleções. Cheguei a ficar sete horas num dia a ver futebol, no entanto não consigo ser cega.» Na dúvida, assiste aos jogos em casa. Sempre pode acabar aos saltos no fim que ninguém lhe diz nada.
À LEI DA BALA
Julho de 1969, San Salvador: o futebol provocou uma guerra armada de quatro dias entre El Salvador e Honduras, que viram os níveis de hostilidade disparar após um jogo que opôs as respetivas seleções ter descambado em expulsões, perseguições e mortes de adeptos dos dois países. Dezembro de 2016: dez adeptos do Besiktas foram hospitalizados na sequência de confrontos com adeptos do Dínamo de Kiev. Abril de 2017: o jogo do Olympique Lyon com o Besiktas, para a primeira mão dos quartos-de-final da Liga Europa, começou com 45 minutos de atraso devido a confrontos na assistência. Abril de 2017: um grupo de hinchas (torcedores) argentinos atirou Emanuel Balbo da bancada quando este reconheceu entre eles o assassino do irmão. Balco morreu. Maio de 2017: o The New York Times publica um artigo sobre o Canelas 2010, «a assustadora equipa de Vila Nova de Gaia com a qual ninguém quer jogar», depois de o jogador Marco Gonçalves dar uma joelhada no árbitro José Rodrigues e ter sido expulso – do jogo e do clube. Mas nem tudo é raiva: a 4 de maio de 1949, quando a equipa italiana do Torino regressava a casa após um jogo com o Benfica, o avião despenhou-se contra o campanário da Basílica de Superga. Morreram as 31 pessoas a bordo, quase todo o plantel dos então tricampeões italianos. Turim em peso chorou a sua perda, incluindo a rival Juventus – que refez a equipa com juvenis quando o Torino fez o mesmo, sem querer caminho aberto à custa da tragédia. Em maio deste ano, 68 anos depois, surgiram graffiti junti à Basílica de Superga, a gozar com a desgraça do Torino. Gianluigi Buffon, lenda da Juventus, veio de imediato pedir respeito nas redes sociais.
DE QUANTO FUTEBOL PRECISAMOS NA TELEVISÃO?
Todos os dias, RTP, SIC e TVI dão destaque ao futebol. E isto para não falar do Porto Canal,
Benfica TV, Sporting TV, Eurosport, Sport TV, A Bola TV, CMTV e restantes canais por cabo.
RTP
Magazine Liga dos Campeões. Sábado, 01h45, RTP1 (repete noutros canais RTP)
Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio (com Carlos Manuel Albuquerque, Rui Miguel Tovar e João Nuno Coelho). Domingo, 01h30, RTP1 (repete noutros canais)
Grande Área (com Manuel Fernandes Silva, Carlos Daniel, Bruno Prata, Manuel José e Álvaro Costa). Quinta-feira, 23h05 e 03h00, RTP3 (repete noutros canais)
Trio D’Ataque (com Hugo Gilberto, Miguel Guedes, Rui Oliveira e Costa e João Gobern). Domingo, 22h00 (repete noutros dias, horários e canais)
SIC
Ó Sr. Árbitro! (com Duarte Gomes). Domingo no Jornal da Noite, SIC
Play-Off (com João Abreu, Rodolfo Reis, João Alves, Manuel Fernandes e Rui Santos.). Domingo, 22h00, SIC Notícias.
O Dia Seguinte (com Paulo Garcia, José Guilherme Aguiar, Paulo Farinha Alves e Rui Gomes da Silva). Segunda-feira, 21h50, SIC Notícias
Tempo Extra (com João Abreu e Rui Santos). Terça. feira, 23h00, SIC Notícias
TVI
Especial Informação: A Jornada. Sábado e domingo, 19h30, TVI 24
Prolongamento (com Sousa Martins, Manuel Serrão, Pedro Guerra e José de Pina).Segunda-feira, 22h07, TVI 24 (repete noutros dias e canais)
Mais Bastidores. De segunda a sexta-feira, 18h15 e 21h00, TVI 24 (repete noutros horários)
Mais Futebol (com Cláudia Lopes, Luís Mateus, Pedro Ribeiro, Tomaz Morais, Pedro Barbosa, Luís Francisco e Nuno Madureira). Sexta-feira, 22h30 e 3h00, TVI 24 (repete noutros dias, horários e canais)
Campeonato Nacional (com Paulo Pereira, Bernardino Barros, Domingos Amaral, José Eduardo e Jorge Faustino). Domingo, 22h00 e 03h55, TVI 24