Texto Sofia Teixeira | Ilustração Sérgio Condeço/WHO
O acórdão no qual o magistrado Neto de Moura cita a Bíblia, a sharia e uma alínea do Código Penal de 1886, divulgado há 15 dias, deu muito que pensar e permite várias leituras. A primeira, e mais discutida, centrada no texto do acórdão, mostra os perigos óbvios da misoginia de quem exerce poderes públicos.
A segunda, observando as reações vindas da opinião pública, torna claro que a fundamentação machista continua a ter mais apoiantes do que seria de esperar, o que significa que a causa feminista tem muita luta pela frente.
E a terceira, centrada nos factos provados desta história – já que o ataque foi perpetrado pelo ex‑marido e pelo ex‑amante –, lembra‑nos que a violência doméstica não se esgota com o fim da relação.
É quando a mulher comunica que quer terminar a ligação, quando sai de casa ou quando não cede aos pedidos para reatar relações que as consequências mais bárbaras podem abater‑se sobre ela.
Na realidade, pode aumentar. É quando a mulher comunica que quer terminar a ligação, quando sai de casa ou quando não cede aos pedidos para reatar relações que as consequências mais bárbaras podem abater‑se sobre ela.
Foi o que aconteceu neste caso: o ex‑amante iniciou um ciclo de perseguições, «esperas», chantagem e intimidações e o ex‑marido, ao que parece, disse repetidamente à filha que lhe apetecia matar‑lhe a mãe. Não foram ameaças vãs.
Esta discussão acontece num momento em que Portugal entregou há pouco tempo no Conselho da Europa o relatório nacional sobre a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica, ao abrigo da Convenção de Istambul, e está prestes a começar a ser avaliado pelo trabalho que tem feito nesse sentido.
Esta convenção internacional, em vigor em Portugal deste 2014, tem caráter vinculativo e destina‑se precisamente a reforçar a prevenção e a ação penal para a eliminação da violência contra as mulheres. Entre outras razões, para impedir discursos como o do polémico acórdão, que apadrinha a ideia de que a culpa da agressão à mulher é da própria mulher.
Em 2015, 91 por cento das condenações por violência doméstica resultaram em penas suspensas.
O relatório oficial conta tudo o que o país tem feito para prevenir e eliminar este género de violência, mas, paralelamente, um conjunto de mais de vinte organizações da sociedade civil enviou para o Conselho da Europa um relatório‑sombra – um contraponto ao relatório oficial, que dá conta de tudo o que ainda não funciona e falta fazer.
Datado de 7 de outubro – e portanto anterior a o acórdão ter sido tornado público –, nele consta já o alerta de que o sistema judicial não é amigável na abordagem às vítimas e promove uma segunda vitimização.
Revela ainda que, em 2015, 91 por cento das condenações por violência doméstica resultaram em penas suspensas. Não só mas também porque continua a haver uma cultura de responsabilização da vítima.
«O risco de morte é bastante mais elevado na altura da separação. É o momento em que o homem sente que não tem nada a perder», diz Maria Macedo, da AMCV.
A Organização de Mulheres contra a Violência (AMCV) foi uma das organizações que coordenaram o grupo de trabalho que produziu este relatório e, talvez por isso, o episódio choca a sua diretora técnica, Maria Macedo, mas não a surpreende muito. Histórias destas são ainda, na verdade, o pão nosso de cada dia. «No terreno esbarramos frequentemente em casos nos quais, apesar de o discurso dos acórdãos não ser tão evidente, há uma clara responsabilização da vítima e a desculpabilização dos atos do agressor.»
«O risco de morte é bastante mais elevado na altura da separação. É o momento em que o homem sente que não tem nada a perder e que adota a postura “se não és minha, não és de mais ninguém”», explica Maria Macedo.
Uma saída de casa deve ser feita com muito cuidado, por essa razão, tão importante como tomar a decisão de sair da relação violenta é saber como fazê‑lo em segurança. «É aconselhável que as mulheres que queiram sair da relação abusiva recorram às organizações de apoio para que possam fazer esse processo acompanhadas, para que haja um estudo do risco, um estudo do perfil do agressor e um plano de saída e de segurança compatível com isso.»
O último relatório sobre Femicídio Consumado e Tentado, do Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR, de 2016, conclui que 40 por cento dos femícídios foram contra ex-companheiras.
Em cerca de 85 por cento dos casos de violência doméstica a vítima é a mulher. E deixar um homem que não quer ser deixado pode ser a coisa mais perigosa que a mulher já fez. E as mulheres sentem isso, tanto é que muitas vezes evitam ou adiam a saída de casa, com receio das consequências. «Sentem que, enquanto estiverem ali, há o risco de serem agredidas e insultadas, mas o risco de atentado à sua própria vida é menor», explica a responsável da AMCV.
«Há muito medo», confirma Sónia Reis, psicóloga e gestora da linha de apoio da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Desde logo, porque por vezes a ameaça é explícita. «Há ameaças de morte dirigidas à vítima, a familiares e mesmo aos filhos em comum. Quem é agredido percebe que a outra pessoa não vai admitir que exista uma separação e um possível novo relacionamento sem fazer nada.»
A ameaça é real: as estatísticas confirmam aquilo que os técnicos e as vítimas sabem. O último relatório sobre Femicídio Consumado e Tentado, do Observatório de Mulheres Assassinadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), de 2016, conclui que 40 por cento dos femícídios foram contra ex‑companheiras.
E indo atrás no tempo, os dados permitem perceber que o fenómeno não é de agora. Neste ano foram apresentadas as conclusões de um estudo que a Polícia Judiciária fez em colaboração com instituições de ensino e com o Ministério Público, em que analisou os 43 dos 45 processos‑crime por homicídios conjugais ocorridos em Lisboa, entre 2010 e 2015: mais de metade das vítimas estava em processo de separação por iniciativa própria e, destas, quase 70 por cento das mortes aconteceram até dois meses após a separação.
Pode não existir violência evidente, mas existirão outras formas de controlo. Que escalam na altura da separação. O problema é achar-se que ciúme e controlo são manifestações de amor.
«Cada caso é um caso, mas se já existe violência na relação pode não ser prudente transmitir diretamente ao agressor que se pretende abandoná‑lo», alerta Sónia Reis, da APAV. Na realidade, quando o pós‑rutura traz problemas como ameaças ou stalking há sinais no passado, mesmo que não muito óbvios.
«Pode não existir violência evidente, mas existirão outras formas de controlo. Depois há uma escalada na altura da separação.» O problema é que isso nem sempre é lido da maneira correta: há quem continue a achar que ciúme e controlo são apenas manifestações de amor.
Como Cláudia, que achava que tinha uma relação normal até decidir terminá‑la. Quando, após dois anos, a enfermeira de 30 decidiu pôr fim ao namoro, percebeu rapidamente o que não tinha percebido nos dois anos anteriores: ele não iria facilitar‑lhe a vida.
Na noite em que lhe comunicou a sua decisão recebeu doze mensagens no telemóvel, nas quais ele declarava o seu amor e lhe pedia para reconsiderar. Atendendo aos dois anos de relação «normal» que estavam para trás, não conseguiu deixá‑lo sem resposta. «Comecei por responder por delicadeza, mas fui muito clara: a decisão estava tomada e não ia voltar atrás.»
«Nunca me ameaçou verbalmente, mas o comportamento em si era ameaçador e intimidante.» O problema resolveu-se quando Cláudia arranjou trabalho fora de Portugal.
No dia seguinte, quando acordou, tinha mais cinco mensagens no telemóvel e três no chat de Facebook e, quando abriu o computador, havia um e‑mail de duas páginas enviado de madrugada, em que, entre outras coisas, ele dizia que tinha vontade de se suicidar. «Percebi logo que, ao contrário do que pensava, ia ter muitos problemas.»
Daí para a frente foi sempre a piorar. Pediu para não voltar a ser contactada, não acedeu aos vários pedidos para se encontrarem pessoalmente e explicou que se sentia assediada. E foi assediada. Durante os dois meses seguintes, recebeu várias mensagens quase todos os dias, chamadas e dezenas de e‑mails.
Chegava a casa e tinha flores à porta. O ex‑namorado aparecia no supermercado onde ela fazia compras, no café ao pé da casa dos pais dela e algumas colegas viram‑no, mais do que uma vez, à porta do sítio onde trabalhava. «Nunca me ameaçou verbalmente, mas o comportamento em si era ameaçador e intimidante.»
O problema acabou por se resolver sozinho quando Cláudia arranjou trabalho fora de Portugal, mas ela acredita que as coisas teriam sido diferentes se tivesse ficado. «No mínimo, iria fazer‑me a vida num inferno.»
«São situações que se enquadram no crime de stalking», explica Maria Macedo. «São muito frequentes nos atendimentos que fazemos e, infelizmente, às vezes são difíceis de provar.» E incompreendidos.
Como explicam os especialistas, todos os agressores têm uma estratégia e nem sempre passa por subjugar através de violência física.
A própria vítima chega a imaginar que está a inventar coisas. Sente um mal‑estar indefinido e, se partilha o que sente com os outros, arrisca‑se a ouvir dizer que o agressor não está a fazer‑lhe mal, só a ama.
Mariana, uma das muitas vítimas apoiadas pela APAV, tem hoje a sua própria casa, onde vive com o filho, de 12 anos, e considera‑se uma pessoa feliz. Mas nem sempre foi assim. Passou 14 anos num casamento com violência física e psicológica e percebeu que as ferramentas de quem agride são muitas. Como explicam os especialistas, todos os agressores têm uma estratégia e nem sempre passa por subjugar através de violência física.
O marido de Mariana percebeu o que mais a prendia à relação: Nélson, o filho em comum. «De certa altura para frente, sempre que eu falava no assunto ele respondia: “Queres ir, vais sozinha. O menino não levas”.»
Quando foi para uma casa‑abrigo, o ex‑marido manteve‑se fiel à estratégia de pressão: fez queixa por rapto de criança. O tribunal entregou a guarda a Mariana, e apesar de o pai ter direito a estar com o filho, nunca está.
A liberdade e o sossego são o que Mariana mais preza na sua nova vida. Sensações que se materializam em coisas tão banais como poder ir para a cama sabendo que não vai entrar ninguém porta adentro para a magoar.