Luciano tinha mais um exame para fazer. O terceiro em mês e meio. Primeiro tinha sido uma TAC, depois uma ressonância magnética. Agora era uma cintigrafia. Que raio é uma cintigrafia? Nem sabia que esta porra existia, disse à mulher na manhã daquela maldita quarta-feira. Chovia que Deus a mandava, uma bátega como ele não tinha memória de ver em anos. Pois tinha de ser naquele dia. Logo naquele dia, que ele tinha de estar tão cedo no hospital e já depois de levar a filha à escola, é que se havia o céu de lembrar de descarregar aquela água toda.
Luciano está doente e não sabe o que tem. Os médicos desconfiam que possa ser bicho mau, doença feroz, das que comem um homem por dentro. Ele acha que os médicos desconfiam, mas eles não lhe dizem. Ninguém lhe diz nada. Só dizem que vão ver, vão ver. Ele tem de fazer análises e tem de fazer exames. E depois tem de marcar nova consulta e mostrar os exames. E eles têm de despistar isto e aquilo, é o que lhe dizem. É a única coisa que lhe dizem, lamenta Luciano. Um homem anda para aqui a caminho do médico, já leva mais horas de hospital em cinco semanas do que na vida toda, e não há maneira de dizerem alguma coisa. Ele já se agarrou ao computador, andou na internet à procura, mas sai de lá mais baralhado. Ora encontra alguma coisa que o vai matar logo no dia seguinte, ora lê uma frase que o tranquiliza e que diz que dores fortes e tonturas também podem ser do cansaço e da alimentação desregulada. Também leu que devia deixar de comer glúten e que a carne não faz bem. E ele não percebe nada daquilo. O Dr. Google não ajuda. Diga-me lá alguma coisa, doutor, que eu aqui não me entendo e ando cheio de medo.
Luciano tem 52 anos e não se conforma com isto. Era agora. Era agora que tinha decidido finalmente mudar de vida. Não é que fosse dar um rumo novo à coisa. E também não viu a luz, não teve uma experiência de quase-morte, não mudou de emprego, não se divorciou, não vai emigrar, não chegou a uma conclusão depois de consultar um mestre africano que lança búzios, não foi a uma taróloga, não consultou um coach. Tem lá ele dinheiro para um coach, com os mil euros que leva para casa todos os meses. E também não foi o psicólogo que o ajudou a decidir. Fez quatro sessões de psicoterapia há uns anos mas percebeu que aquilo não era para ele. Não, nada disso. Luciano chegou sozinho à conclusão, um destes dias, nem ele sabe muito bem quando, de que o melhor era só ser como é. Sem merdas. Só assim.
É que o homem andou muitos anos a tentar ser outra coisa qualquer. Ele diz que foi uma vida inteira, mas talvez seja exagero. Se calhar foi desde que resolveu não emigrar e ficar por cá. Ou desde que casou. Ou desde que nasceu a filha. Ou desde que se quis divorciar mas não teve tomates para isso. Se calhar foi desde que o primo lhe pediu para aguentar as pontas lá na firma e ele aguentou um ano, dois, três… Já vai em catorze, as pontas ainda não estão bem, ele ainda ganha mal e o raio da promoção nunca chegou. Nunca vai chegar. E há dias percebeu isso. Percebeu isso, que a mulher não ia gostar mais dele do que o assim-assim que ele acha, que não vai ter dinheiro para comprar outro carro e que se não se mexer para mudar alguma coisa nunca vai mudar nada. Luciano percebeu há dias que tem de se mexer. No dia seguinte vieram as dores de cabeça.
Na semana passada, Luciano desenrolou a mágoa toda de uma vez com o estranho que estava ao lado dele no café e lhe perguntou se ele precisava de um lenço de papel porque estava a chorar. No fim perguntou-me o que é que eu fazia. «Nunca ninguém escreveu nada sobre mim. Se escrever troque-me o nome.» Depois foi-se embora. E ainda me pagou o café.
[Publicado originalmente na edição de 19 de fevereiro de 2017]