Joan Didion: esta mulher é um ícone nos EUA, mas cá ninguém a conhece. Porquê?

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Texto de Catarina Fernandes Martins | Fotografia de Getty Images e D.R.

Os leitores de Joan Didion vivem num estado de competição. Entre aqueles que cresceram a ler os seus ensaios e romances, entre os jornalistas que se tornaram jornalistas por sua causa, entre os aspirantes a escritores que querem ser como ela há disputas não oficiais que pretendem estabelecer quem é o leitor mais dedicado, quem memorizou mais frases, quem a lê há mais tempo, quem «a adora mais».

No mundo anglo-saxónico existe uma verdadeira obsessão em torno de Joan Didion, uma das maiores escritoras e jornalistas norte-americanas do século XX. Essa obsessão cresceu do facto de Didion ser simultaneamente uma escritora brilhante e um ícone de estilo cultural que privou com as grandes estrelas de Hollywood e do rock dos anos 1960 e 70 e que continua a participar em campanhas publicitárias de moda, mas também da própria natureza da sua escrita – «extraordinariamente introspetiva ou extraordinariamente narcisista, de acordo com a perspetiva do leitor», como escreveu uma vez a autora Caitlin Flanagan na revista Atlantic.

A vida de Joan Didion, que deu matéria de vários ensaios e livros, é alvo de análise por parte de fãs que querem conhecer a Joan real por detrás de uma escritora que escreve sobre a sua própria depressão e sobre a morte do marido de forma considerada demasiado cerebral, mas ao mesmo tempo cativante.

O culto a Joan Didion nunca pegou em Portugal. A estreia do documentário Joan Didion: The Centre Will Not Hold, na Netflix talvez venha a mudar isso.

Todas estas competições, discussões e análises em torno de Joan Didion terão passado despercebidas à maioria dos leitores portugueses, que por cá apenas encontram um dos seus livros traduzidos para português.

O Ano do Pensamento Mágico foi publicado em 2006 pela Gótica. Em 2009, a adaptação desta obra ao teatro chegou também aos palcos do D. Maria II, com encenação de Diogo Infante e interpretação de Eunice Muñoz.

Mas a verdade é que o culto a Joan Didion nunca pegou em Portugal. A estreia do documentário Joan Didion: The Centre Will Not Hold, na Netflix talvez venha a mudar isso. Para já, está a agitar o mercado literário nacional, que aproveitou a atenção mediática para traduzir e lançar outros títulos da autora. No dia 7 de dezembro, a editora Cultura lança a nova tradução de O Ano do Pensamento Mágico. No início de 2018 a mesma editora publica a tradução de Blue Nights, o último livro original escrito por Didion, sobre a morte da filha. A Quetzal diz ter voltado a olhar para os títulos de Didion, podendo apresentar novidades em breve.

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Quem é Joan Didion e porque tem sido invisível em Portugal?

Joan Didion é uma das vozes mais originais daquilo a que se chamou o Novo Jornalismo iniciado nos anos 1960, quando jornalistas como Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer, Truman Capote, Hunter S. Thompson, Lilian Ross revolucionaram a forma de escrever para imprensa, recorrendo a técnicas da literatura e criando o género de não-ficção, a arte de escrever sobre a realidade de forma literária ou narrativa.

Didion escreveu extensivamente sobre a contra-cultura das décadas de 1960 e 70, o movimento dos direitos civis, a guerra do Vietname, o impeachment de Nixon, a administração Reagan e a guerra civil em El Salvador, sob a forma de reportagens e ensaios jornalísticos, utilizando alguns destes temas como pano de fundo de romances.

Com o marido John Gregory Dune escreveu guiões de cinema, passando a pertencer ao glamoroso mundo de Hollywood. Warren Beatty, que frequentou a casa do casal, ter-se-á apaixonado pela escritora. E claro, Didion escreveu sobre si própria, as suas lutas com a depressão e a ansiedade, os problemas com o marido, o processo de luto pela morte deste e da filha adotiva de ambos, Quintana.

No livro O Ano do Pensamento Mágico, Joan Didion descreve a investigação jornalística que desenvolve sobre o luto durante o seu próprio processo de luto.

A obra jornalística de Didion é marcada por uma visão e uma voz absolutamente únicas sobre acontecimentos que todos os jornalistas da altura cobriam. Nos livros que se encaixam no género de memória literária, a autora recorre a ferramentas do jornalismo e da reportagem como forma de compreender a realidade que a afeta e dá-la a entender aos leitores.

No livro O Ano do Pensamento Mágico, Joan Didion descreve a investigação jornalística que desenvolve sobre o luto durante o seu próprio processo de luto, fazendo uma reflexão – comum no pensamento da autora – sobre a escrita ser o mecanismo através do qual Didion encontra Joan.

Joan Didion tem obras memoráveis. Há fotografias dela – com o marido, com a filha, fumando cigarros, pensando defronte da máquina de escrever – que são igualmente memoráveis. Mas acima de tudo, Joan Didion produziu frases memoráveis, que saltaram dos livros e ensaios e ganharam vida própria, sendo citadas por fãs que as conhecem de cor porque ali encontraram verdades absolutas sobre as suas próprias vidas. Talvez esta seja a mais conhecida:

«Nós contamos a nós próprios histórias para viver… Procuramos o sermão no suicídio, a lição social ou moral no assassinato de cinco pessoas. Interpretamos o que vemos, selecionamos a opção que resulta melhor de entre várias opções. Vivemos inteiramente, especialmente se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa sobre imagens díspares, pelas “ideias” com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria em mudança que é a nossa experiência real.»

Porque não lemos, nem vemos, nem nunca ouvimos falar?

A jornalista e escritora Susana Moreira Marques ouviu falar de Joan Didion pela primeira vez quando vivia em Londres, onde trabalhou na BBC. Nessa altura, tanto o livro O Ano do Pensamento Mágico como a adaptação para teatro gozavam de grande sucesso no Reino Unido. Susana Moreira Marques descobriu nessa altura a obra da escritora norte-americana, ficando «rendida».

Anos mais tarde, a obra e a peça de teatro chegavam a Portugal, sem terem sido recebidas com grande entusiasmo por parte do público ou editores.

«Na altura custou-me ver que o livro foi lançado em Portugal na senda da moda dos livros sobre experiências pessoais marcantes. Em vez de ser lançado como “o grande livro da grande Joan Didion” foi apresentado como uma história comovente de uma senhora que perdeu o marido sem informação de contexto sobre a obra e a autora», diz Susana Moreira Marques.

Doors, Charles Manson, os Black Panther, o movimento dos direitos civis, a guerra do Vietname, o impeachment de Nixon, a administração Reagan e a guerra civil em El Salvador foram algumas das reportagens marcantes de Joan Didion.

Na primeira viagem que fez a Nova Iorque, Susana Moreira Marques aproveitou para entrevistar Joan Didion num encontro que descreve numa crónica recente na Antena 1. Slouching Towards Bethlehem e White Album – ambos coleções de ensaios sobre a política e a cultura norte-americana, nomeadamente na região da Califórnia, durante os anos 1960 e 70, que incluem, por exemplo, reportagens sobre os Doors, Charles Manson e os Black Panther – foram particularmente marcantes para a escritora portuguesa.

«Achei que ela tinha uma voz completamente original que me fazia pensar que era possível escrever sobre a realidade de forma literária absolutamente fantástica. A voz dela é muito forte e precisa e tem uma grande liberdade. Ao ler esses dois livros pensei que queria ter aquela liberdade», diz a jornalista autora do livro Agora e na Hora da Nossa Morte (Tinta da China, 2012).

A liberdade de Joan Didion não se traduz apenas no estilo de escrita, como conclui também Susana Moreira Marques, mas também na forma como ajudou a quebrar a imagem tradicional do que constitui um jornalista ou um repórter.

«A minha única vantagem enquanto repórter é que eu sou tão fisicamente pequena, tão discreta, que as pessoas tendem a esquecer que minha presença é contrária aos seus interesses. E é sempre», Joan Didion

«A lição da Didion é que há muitas maneiras de ser uma coisa. Vivemos pressionados a corresponder a uma série de imagens sobre o que um jornalista deve ser, mas não há só uma maneira de sermos jornalistas. Não temos de ser todos pessoas muito despachadas a correr para os sítios. Há outras maneiras de investigar a realidade. A Joan Didion é muito frágil e tímida e tinha uma postura de estar nos locais e com as personagens das suas reportagens sem fazer perguntas, só ouvindo. O resultado final é muito diferente. Penso que esta ideia é absolutamente libertadora», diz.

A este propósito, mais uma frase emblemática da escritora, citada muitas vezes por mulheres aspirantes a repórter:

«A minha única vantagem enquanto repórter é que eu sou tão fisicamente pequena, tão discreta, e tão neuroticamente inarticulada que as pessoas tendem a esquecer que minha presença é contrária aos seus interesses. E é sempre. Nunca podemos esquecer isto: os escritores estão sempre a expor alguém.»

Partindo da sua experiência enquanto jornalista literária e autora de uma obra de não ficção, Susana Moreira Marques pensa que talvez o desconhecimento de Joan Didion em Portugal esteja relacionado com o fechamento dos géneros literários no país.

«Há muitos autores que deviam estar traduzidos em português e a Joan Didion é certamente um deles», diz Francisco José Viegas, da Quetzal.

«A literatura em Portugal ainda é vista como romance, poesia e pouco mais. Sei que é muito difícil vender não-ficção em Portugal. É uma coisa da qual os editores fogem, seja a Didion ou outra pessoa. Este ano foram lançadas novamente as bolsas de criação literária e apesar de terem grande abertura para géneros, sendo possível concorrer com ficção, poesia, teatro, banda desenhada, literatura infanto-juvenil, continua a não ser possível concorrer com não-ficção literária. Não existe nas livrarias, nas prateleiras, não existe na cabeça das pessoas,” diz.

Francisco José Viegas, editor da Quetzal, diz que o nome de Joan Didion está constantemente a ser discutido, acabando por ser afastado quando se discute a «oportunidade comercial».

«Há muitos autores que deviam estar traduzidos em português e a Joan Didion é certamente um deles. Pensámos publicar o White Album, as Political Fiction, mas achámos que não tinham viabilidade comercial. Já publicámos autores que fomos depois obrigados a deixar de publicar porque não tinham sucesso comercial. Por vezes não estamos dispostos a arriscar publicar um autor de que gostamos muito para depois vê-lo morrer com 200 exemplares vendidos», diz, acabando por revelar que a Quetzal está a olhar novamente para títulos de Didion.

O escritor Hugo Gonçalves, que acaba de traduzir O Ano do Pensamento Mágico para a editora Cultura, diz que Joan Didion é um ícone cultural, mas «um ícone cultural americano», o que, na sua opinião, é a principal razão para a sua invisibilidade em Portugal. Francisco José Viegas concorda.

Joan Didion parece ter agora uma oportunidade em Portugal depois de décadas a inspirar algo semelhante a um culto no mundo anglo-saxónico.

«Teríamos de publicar livros cheios de notas de tradutor para explicar determinados conceitos e mecanismos», diz o editor da Quetzal sobre determinados ensaios de Didion.

Hugo Gonçalves diz que apesar disto a editora Cultura decidiu comprar O Ano do Pensamento Mágico e Blue Nights devido a «certas tendências de mercado», mas também à estreia do documentária na Netflix.

«A publicação de livros está cada vez mais dependente de outros meios, como a televisão ou a internet. Não é por acaso que alguns dos escritores que mais vendem em Portugal estão associados à televisão ou que as editoras procuram ideias para livros em youtubers», diz.

Joan Didion parece ter agora uma oportunidade em Portugal depois de décadas a inspirar algo semelhante a um culto no mundo anglo-saxónico.

«Eu quero pensar que se as pessoas lerem acabam por render-se e gostar. A escrita dela é brilhante e genial. Não sei se os portugueses vão gostar do estilo dela ou não, mas acho que é importante publicar e deixar os leitores lerem e decidirem por eles próprios», diz Susana Moreira Marques.