Texto Sara Dias Oliveira | Fotografias Cristiana Milhão/Global Imagens
Enquanto desembrulha um grande lençol de plástico que vai usar para fotografar um editorial de moda com uma esguia manequim alemã, para a Flame Magazine, revista online da stylist portuguesa Joyce Doret, vai falando do novo Blade Runner, o filme que viu na véspera no cinema. Três horas colado ao ecrã, as imagens, a música e os sons não lhe saem da cabeça. Os cenários futuristas, os ambientes quentes dos níveis superiores da cidade ou demasiado frios dos níveis inferiores. Tanta coisa. «O filme é muito bom, vão ver, até já estou a ter umas ideias», diz num misto de conselho e de anúncio.
O cinema é uma inspiração para Frederico Martins, 39 anos, fotógrafo de moda com estúdio no Porto. O realizador norte‑americano Terrence Malick e os seus filmes impressionantemente táteis vêm à conversa. «Quando vejo filmes dele dá‑me vontade de ir fotografar para a serra ou para um cenário natural. As mãos a tocar na palha, a cortina a tocar na cara, ele é muito assim.»
É mais uma manhã de trabalho que começa no seu Lalaland Studios (Lalaland é um nome que leu numa revista há 15 anos) que fica no terceiro andar de um antigo e belo edifício com vista para os Clérigos, para o Centro Português de Fotografia, para o jardim da Cordoaria, para o rio Douro. Numa sala enorme, de tetos trabalhados, com soalho de madeira, sete janelas‑portas, fogão de sala, sofás de couro, a equipa prepara‑se para a produção do dia.
Frederico tem 11 anos como fotógrafo de moda e quase duas décadas na fotografia, a aprender por si, atento aos conselhos que lhe davam, ao que lia, ao que ouvia, ao que se passava à volta.
«Vamos fazer umas brincadeiras com plásticos», revela. A um canto da sala, com luz natural em abundância, a manequim coloca‑se no lugar combinado, com roupa branca e vermelha e plásticos no corpo. Frederico Martins dá algumas indicações em inglês, coloca‑se em posição, de pé, sentado no chão, em cima do sofá, e dispara. Analisam‑se imagens em conjunto, o resultado está bom, a equipa está satisfeita, a modelo muda de pose. O ambiente é descontraído, música de fundo, retoque aqui, retoque ali, a sessão prossegue.
Frederico tem 11 anos como fotógrafo de moda e quase duas décadas na fotografia, a aprender por si, atento aos conselhos que lhe davam, ao que lia, ao que ouvia, ao que se passava à volta. «Para o ano faço 20 anos de carreira como fotógrafo profissional… com esta cara de puto!», brinca.
Garante que é bom a trabalhar a luz, a pôr pessoas bonitas na moda, nos retratos, sem truques na manga. «Não faço nada de especial, é sem querer, é a maneira como vejo as coisas.» Não é propriamente um estilo. «Não tenho muitas regras, o meu trabalho é supereclético. Não tenho um tema definido, não abordo sempre a mesma questão, não fotografo sempre o mesmo tipo de mulher nem o mesmo tipo de cenário.» Sempre a mudar, portanto.
«A fotografia de moda deve ter algo que prenda o olhar, mas sobretudo qualquer coisa de real, de verdadeiro»
Mas, afinal de contas, o que deve ter uma boa fotografia de moda? «Para mim, deve ter algo de interessante obviamente, cativante, que prenda o olhar na imagem, mas sobretudo que tenha qualquer coisa de real, de verdadeiro», responde.
A roupa e os adereços não são o mais importante, a personagem que entra na máquina é que faz a diferença. «A cultura do Instagram influenciou imenso a fotografia de moda. Estamos aqui no meio de coisas hiperfeitas e coisas nada feitas e a ideia é criar um ponto mais intermédio, não tão amador como o Instagram – não é o que visualmente gosto –, mas também não aquela estética dos anos 1980 e 90, demasiado glamourizada.»
«A cultura do Instagram influenciou muito a fotografia de moda. a minha ideia é criar um meio-termo: nem o amadorismo do instagram nem a estética dos anos 1980 e 90, demasiado glamourizada.»
Neste momento, fotografa para várias revistas de moda: Vogue, Máxima, Elle e Cristina, em Portugal; para a Departures dos Estados Unidos do grupo da Time; para a H, uma revista internacional feita no Médio Oriente; para a francesa Slymmy; para as revistas semanais dos jornais franceses Le Figaro e Les Echos
Já fotografou a portuguesa Sara Sampaio, Olivier Rousteing diretor criativo da Balmain, o estilista Alexander Wang na altura diretor criativo da Balenciaga, a modelo italiana e ícone da indústria Mariacarla Boscono (que está a fazer 20 anos de carreira e que publicou uma foto tirada por Frederico Martins num pequeno vídeo alusivo à data), Anthony Vaccarello, atual diretor da Yves Saint Laurent, a atriz Milla Jovovich no seu estúdio no Porto. «Se me perguntassem, na minha adolescência, quem eu queria conhecer, Milla Jovovich apareceria no topo da lista», lembra. Ficou fã depois de ter visto o filme O Quinto Elemento.
Nas duas últimas semanas, esteve em Florença a fotografar para a Vanity Fair italiana – vai aliás trabalhar com a Condé Nast, um dos maiores grupos internacionais de edições de revistas, de Itália, não apenas para a Vanity Fair, mas também para GQ do país –, fez uma sessão em Lisboa para Viva Moda, uma das mais importantes revistas de moda da Polónia,
a campanha da Melanie Caxemira, e ainda a décima campanha de promoção do calçado nacional que fotografa desde o começo para a APICCAPS – Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Seus Sucedâneos. Em novembro, voltará a Nova Iorque para mais contactos, já tem lá um agente, visto de trabalho, e acredita que vai correr tudo bem.
Já fotografou atores, atrizes, empresários nos tempos do fotojornalismo. Fez as fotos do novo disco a solo de Ana Bacalhau, dos últimos álbuns de Ana Moura, dos Blind Zero. Fotografou Cristiano Ronaldo e a sua campanha de sapatos. Já deu masterclasses em várias partes do mundo: Madrid, Barcelona, Milão, Londres, Berlim, Chicago, São Paulo, Cidade do México, Seul, Tóquio.
Portugal não tem boa nem má reputação na fotografia de moda. «Só conseguiremos ter uma imagem – positiva ou negativa – se formos muitos, mas as pessoas acomodam-se.»
Gere uma equipa de seis pessoas no seu estúdio no Porto, assegura que é um fotógrafo com quem é fácil trabalhar. Consigo é outra conversa. «Sou muito ansioso e muito obstinado. Sinto‑me responsável por tudo, não ponho culpas a ninguém, e então sou muito cruel comigo mesmo, muito exigente, muito pouco tolerante e, às vezes, é muito difícil lidar comigo mesmo», confessa.
Há ali uma luta interior complicada numa caminhada solitária, num trabalho sem rede. «O nosso trabalho acontece à frente das pessoas, não é como um arquiteto que pode ir para casa e melhorar.»
Assume que quer estar entre a criatividade e a técnica e espera um dia ser recordado como um mestre que domina a técnica e o meio. E quantos mais portugueses na fotografia de moda melhor. «Isto não é uma tarefa para um gajo só», diz.
Na sua perspetiva, Portugal não tem boa nem má reputação na fotografia de moda. Simplesmente não tem. «Só vamos conseguir ter uma imagem, positiva ou negativa, se formos muitos, e isto não vai lá com um ou dois fotógrafos, vai lá com 20. É muito fácil atingir um patamar alto em Portugal, mas as pessoas acomodam‑se.»
A paixão pela fotografia manifestou‑se na adolescência, mas o caminho não foi linear. «Sempre gostei dos processos mais difíceis», confessa. Os pais conheceram‑se na Beira, em Moçambique, e regressaram a Portugal em 1977, um ano antes do seu nascimento. Viveram em Lisboa e no Porto até que chegaram a Santa Maria da Feira, a casa do avô. Frederico fez o liceu em ciências e quis estudar veterinária. Acabou por entrar em Engenharia das Ciências Agrárias na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, só que a fotografia falou sempre mais alto.
Como sempre pensou trabalhar fora de Portugal, viajou, bateu à porta de vários agentes em Londres e em Paris. «Não surtiu grande efeito, mas deu para aprender muita coisa e conhecer pessoas»
No segundo ano da universidade, já dava uso à Pentax 110 do pai, máquina que ainda hoje tem, e fazia uns trabalhos para a câmara da Feira.
Em 1998 inscreveu‑se nas finanças como fotógrafo a recibos verdes. O pai, que nasceu em Angola, teve influência nesta paixão. Gostava de fotografia e, em África, era cameraman e fazia montagens de filmes em película. Ofereceu ao filho uma OM 40 da Olympus.
Frederico montou um laboratório de fotografia na garagem de casa, imprimia à mão em papel de fibra, revelava os rolos a preto e branco. «A minha mãe dava‑me cinco contos por semana, quando estudava no Porto, e tinha de viver a semana toda com esse dinheiro. Na altura, um rolo de slide custava mil escudos e a revelação custava outros mil escudos. Por semana, tinha direito a fotografar um rolo, 36 fotogramas, que não era muito fácil e hoje é inimaginável. Era o que podia na altura e muito rapidamente percebi que tinha de ganhar dinheiro com a fotografia», recorda o segundo filho de uma família de quatro irmãos, que percebeu a paixão do rapaz. A mãe e o avô Mário oferecem‑lhe uma F70 da Nikon. Ainda hoje fotografa com Nikon.
Com a Pentax do pai ganhou um terceiro prémio num concurso de fotografia na Feira com uma imagem do castelo da cidade e da lua. Achou piada, ganhou gosto. Começou a fotografar bodyboard, que ainda hoje pratica, e surf, algumas bandas e mais um prémio aqui, outro ali.
Nunca exerceu agronomia, mas é um defensor da agricultura e lamenta que o país não valorize esta atividade como devia e que as pessoas não a entendam como seria necessário.
Em novembro de 1998, ganhou o concurso Jovens Criadores do Concelho da Feira. Em 2001, fez uma exposição fotográfica com um trabalho na serra da Freita de Arouca, numa galeria da Feira, e o realizador António Ferreira viu a exposição, gostou e chamou‑o para fazer as fotografias de cena do seu filme Esquece Tudo o Que Te Disse.
O diretor de arte da Edimpresa viu as fotos, gostou e Frederico Martins começou a trabalhar para várias publicações do grupo, Exame, Visão, Expresso, Activa, Cosmopolitan, até à vaga de despedimentos. Em 2006, surgiu a Night and Style, que depois passou a NStyle, com discotecas, noite, miúdas giras, e Frederico começou a fotografar já com esse olhar de produções de moda.
Como sempre pensou trabalhar fora de Portugal, viajou, bateu à porta de vários agentes em Londres e em Paris. «Não surtiu grande efeito, mas deu para aprender muita coisa e conhecer pessoas», recorda.
O salto internacional aconteceu com a Dsection. A revista tinha acabado de aparecer em Portugal, apresentou um editorial de moda com o manequim Fernando Cabral feito no clube de ginástica do Boavista. A impressão da revista parou para incluir essas fotografias e o nome de Frederico Martins começa a aparecer ao lado de grandes fotógrafos internacionais. As portas abrem‑se. «Todos os saltos que dei foram com projetos que decidi fazer.» E a sorte, na sua opinião, surge «quando a oportunidade encontra a preparação».
O mar é outra paixão do fotógrafo que um dia sonhou ser veterinário. O seu caminho tem várias curvas e muitas ondas.
Apesar da máquina sempre à mão, levou o curso de Engenharia até ao fim. Aprendeu muita coisa de maquinaria agrícola, motores, tomadas de força, alfaias. «É um curso fabuloso, para quem gosta de ciências da vida é dos melhores. É um curso muito diverso, toca várias áreas do conhecimento.»
«As pessoas não entendem que a área agrária é extraordinariamente tecnológica e científica. E obviamente que, nos liceus, não somos despertados para essa área», acrescenta. Estagiou na Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, no Porto, fez um trabalho final de curso sobre Enoturismo. O mapeamento da rota dos vinhos verdes e os projetos de colocação das placas passaram pelas suas mãos.
Nunca exerceu agronomia, é um defensor da agricultura, lamenta que o país não valorize esta atividade como devia e que as pessoas não a entendam como seria necessário.
Tornou‑se fotógrafo profissional sem diploma, focou‑se na fotografia de moda, quer continuar a crescer cá dentro e lá fora. E fora do trabalho, gosta de pegar na prancha e fazer bodyboard naquilo que, na brincadeira, chama de quintal de casa, ou seja, no mar de Esmoriz, Ovar. «Entre a minha casa e o mar não há nada», explica.
O mar é outra paixão do fotógrafo que um dia sonhou ser veterinário. O seu caminho tem várias curvas e muitas ondas.
Uma máquina, 80 metros de filme
e a distinção da revista Photo
No verão de 1998, Frederico Martins, então estudante universitário, trabalhou nas portagens da Brisa em Grijó e em Albergaria‑a‑Velha. Com esse dinheiro, comprou uma máquina profissional, uma F90X da Nikon, e foi visitar o pai a Angola. Viajou com uma máquina, uma lente de 50mm e 80 metros de filme preto e branco comprado numa bobina que enrolava em casa.
Voltou com várias fotografias e a imagem de um miúdo angolano, de rosto doce e envergonhado, com a mão na vedação dos reservatórios de água, um muro de arame à volta de um bairro de famílias que fugiam da guerra, foi distinguido num concurso internacional da revista francesa Photo – que não tinha um prémio para fotojornalismo nessa edição de janeiro de 1999. A fotografia apareceu em página inteira com um texto de Milan Kundera.
Em 2005, criou um projeto pessoal «O Português Comum». Máquina sempre à mão, passeios sem destino, fotografias de gente à beira da estrada. Nessa série, uma fotografia de uma família de pescadores, com estendal de roupa ao fundo, ganhou uma menção honrosa no BES Visão Foto, quando já não estava a trabalhar em fotojornalismo. Duas distinções que lhe mostraram que valia a pena continuar a disparar a sua máquina.