Texto Ricardo J. Rodrigues | Fotografias Leonardo Negrão/Global Imagens
Tenho aqui uma história para começar esta conversa. Nos anos noventa havia no Liceu de Sintra um jornal chamado ENTÃO!?, graças ao qual eu decidi tornar-me jornalista e onde em 1993 saiu esta entrevista com o Fernando Alves. Sei que vem com um atraso de 24 anos, mas trago aqui um exemplar. Lembra-se disto?
Oh caraças, já não me lembrava de nada. Ainda devia ser magro [Ri-se e permanece em silêncio uns bons minutos, a ver o jornal]. Olha, isto foi na rádio, na TSF. Estás a ver os cartuchos nesta fotografia? Nesta altura as coisas não estavam informatizadas como hoje, cada cartucho correspondia a um spot publicitário. Estavam empilhados uns por cima dos outros e às vezes caíam todos a meio de uma emissão. Havia um camarada meu que dizia logo com a antena aberta: santinho. Sempre gostei disso, de seres espontâneo na rádio, de quando te enganas não tentares disfarçar mas assumir o erro e corrigi-lo. Mas olha lá para isto. Caramba, foi quando eu fazia o Postigo da Noite.
Foi. Essa marcou uma redação de sete ou oito miúdos que começavam a levar isto do jornalismo bastante a sério. Em boa verdade, a entrevista foi conduzida por dois amigos meus, a Rita e o Miguel, mas graças a ela tornámo-nos todos fiéis do programa. Houve uma vez em que fui para o carro do meu pai ouvir a rádio e no dia seguinte levei uma reprimenda porque o automóvel ficou sem bateria.
[Risos] Esse programa durou pouco tempo, um ano no máximo, e acabei-o abrutamente. Aquilo que ao início tinha sido fantástico estava a tornar-se repetitivo. A ideia era um programa de antena aberta, com ouvintes à conversa, e da primeira vez ligou-me logo um tipo com agorafobia, que não saía de casa há seis anos. Foi fantástico. Mas, à medida que o tempo ia passando, aquilo ganhou rotinas e eram sempre as mesmas pessoas que ligavam. Como falavam por ordem de chegada telefonavam mais cedo a marcar lugar e depois nem sequer tinham assunto. E isso rebentou com a sensação harmoniosa do início. A ideia ali nunca foi ter um tema fixo, mas havia um texto inicial que fazia uma espécie de retrato da noite. O Samuel, rececionista da TSF, ligava para uma discoteca em Tondela, perguntava quantas pessoas estavam, o que bebiam, ou para uma farmácia de serviço, a saber que urgências estavam a ser acudidas, e a partir daí eu escrevia um texto sobre essas pequenas luzinhas da noite. Depois era abrir a antena a quem quisesse falar. Mas aquilo acabou por ser tomado por um grupo e um dia disse «acabou».
Já não é a mesma pessoa dessa entrevista que uns miúdos lhe fizeram há um quarto de século?
O essencial está cá, mas não sei se isso abona muito a meu favor [risos]. Ainda tusso para a antena, como digo aqui. Dá para perceber neste texto que sou um tipo que faço bordados, não sou um contador de histórias puro. A minha vocação é ir cosendo uma manta de retalhos com a realidade. Mas, olha, aqui era um bicho da noite, coisa que já não sou. Deitava-me às sete da manhã, costumava apanhar o primeiro transporte da manhã para casa.
Aliás, o pretexto para esta entrevista é que vai começar a coordenar as manhãs na TSF.
A manhã é muito intensa na rádio, enquanto a noite convida ao intimismo, é mais propícia a programas de autor. É curioso, porque quando comecei nisto, em Angola, era tudo ao contrário: a hora de almoço e o serão eram os períodos nobres da emissão radiofónica.
«Mandar jornalistas fazer reportagens no meio das chamas é obsceno. Põe em risco a vida dos repórteres sem que isso acrescente qualquer relevância. É um jornalismo pirómano.»
Hoje é o princípio da manhã e o fim da tarde. As horas de ponta.
Antes não havia automóveis como há hoje, nem os carros tinham rádio. As pessoas iam almoçar a casa, ligavam o transístor e era aí que se informavam sobre as novidades do mundo. À noite a mesma coisa, grandes blocos informativos, programas bem pensados e bem executados.
Vamos ouvir um Fernando Alves mais acelerado do que é costume?
Este novo formato para as manhãs da TSF arranca em plena campanha eleitoral. Vamos fazer dez emissões em dez mercados municipais, na Grande Lisboa e no Grande Porto. Vou convidar os líderes nacionais dos principais partidos, mas não quero ter candidatos locais em antena. Vai ter académicos, gente de associações relevantes, para o debate ter profundidade.
Mas que profundidade se consegue ter num mercado?
O facto de ser num mercado não significa que ande a falar com toda a gente – nunca fui fã de vox populi, cais sempre na tentação da opinião pouco qualificada, que entretém mas não informa. É num mercado porque são os assuntos do dia, como a couve e o peixe do dia. Depois, a partir do início de outubro, trabalho com a equipa que fiz questão de escolher e fico eu na antena em estúdio, microfone aberto das oito às dez, a falar com os ouvintes dos assuntos do dia.
Vai querer romper com aquilo a que estávamos habituados?
Não vou inventar nada de novo, mas o jornalismo tem de ser relevante e é isso que vou tentar fazer. Aquilo que os editores estão a fazer hoje é obsceno. Fazer diretos com adeptos a opinar à saída do estádio tem algum interesse? Mandar jornalistas fazer reportagens no meio das chamas é outra coisa senão jornalismo pirómano, que cria mais incendiários e põe em risco a vida de repórteres sem que isso acrescente qualquer tipo de relevância? Entrevistar crianças fazendo delas patetas é outra coisa senão macacada?
«Andamos todos apressados a olhar para a floresta quando precisamos de tempo para contemplar as árvores. A técnica jornalística aprende-se num instante, a fome de conhecimento não.»
Há excesso de diretos?
O direto está a tornar-se o défice do diferido e vou tentar usá-los só quando for realmente necessário. Se houver uma greve de transportes não vamos ter a dona Miquelina na paragem a dizer há quanto tempo está à espera. Vamos ter com ela às cinco da manhã e acompanhar o verdadeiro impacto que a greve tem no dia de uma pessoa, e que às vezes é um impacto profundo.
É possível fazer jornalismo de profundidade numa circunstância de crise?
O jornalismo empobreceu, não há dúvidas. As redações têm menos gente e os jornalistas são cada vez mais mal pagos, às vezes veem-se obrigados a poupar tanto no dia-a-dia que ficam em situações constrangedoras. Mas também se gasta muito dinheiro em grandes operações de fachada. Agora que os mercados parecem estar a recuperar bem podemos tentar contrariar um pouco este ciclo [risos]. Uma coisa que quero fazer nas manhãs é, por exemplo, falar mais do que acontece em Trás-os-Montes ou no Alentejo, sem descurar o que acontece em Lisboa e no Porto. A profundidade da informação editorial é mais vezes uma questão que tem que ver com as opções que queremos tomar, não tanto com o dinheiro. Porque é que só falamos de Castelo Branco quando arde ou da Madeira quando cai uma árvore? Não acontece nada ali além de desgraças?
E, às vezes, a fazer diretos em frente a uma árvore caída, o que também não deixa de ser extraordinário.
Caímos no ridículo de ter jornalistas a seguir políticos para estes lugares, mas depois não fazerem uma única pergunta sobre os lugares para onde seguiram os políticos. Pergunta-se a resposta ao que um dos seus opositores disse, mas nada sobre o que está ali a ser tratado. Se o António Costa vai tratar de um assunto melindroso no interior do país, temos de ir lá perceber os contornos desse assunto, falar com as pessoas, confrontá-lo com os problemas. Não vamos lá fazer-lhe as mesmas perguntas que podíamos fazer em Lisboa. Mas temos de ter a ousadia de pensarmos pela própria cabeça, não por aquilo que os políticos querem que pensemos.
Os noticiários estão hoje cheios de histórias pequenas, curtas, rápidas – e muitas. A quantidade não é inimiga da qualidade?
O meu objetivo é esvaziar as manhãs da TSF de informação irrelevante. Se calhar isso passa por fazer só três histórias, mas fazê-las realmente bem. Não me interessam o «diz que», os recados entre políticos, a conversa mole. Não quero gastar tempo a dizer que vai haver um Benfica-Porto logo à noite, porque isso já toda a gente sabe. Se o Eliseu se lesionou, então sim, tenho alguma coisa a acrescentar aos ouvintes. Vou ter uma equipa pequena, mas extraordinária, de repórteres comigo. Isso ajuda bastante. A perspetiva tem de ser sempre a da relevância. Não vou fazer nada de extraordinário, vou apenas capinar o mato daninho da floresta. No internacional, por exemplo, é urgente ter dossiês que leiam o mundo. Nos temas globais só se fala hoje de desgraças – descarrilamentos, catástrofes naturais – e é preciso dar voz aos intérpretes do mundo, olhar para além do que é fantástico. O mesmo na cultura e na economia. A ideia é recuperar o espírito inicial da TSF, de um olhar mais sobre o novo do que sobre a novidade. E com uma equipa mais interessada na substância do que no show-off. Que tratem o pastor com a mesma dignidade de um ministro, que não falem com uma criancinha como se ela fosse uma atrasada mental. Isso é cinismo e, como dizia o Kapuscinski, «os cínicos não servem para este ofício».
Esta passagem para as manhãs é também o fim de uma crónica que marcou décadas da rádio portuguesa: Sinais, de Fernando Alves.
Seria impossível estar na posição de escrever à tarde com ironia sobre as mesmas personagens que tratei de forma isenta de manhã. O que vou fazer é ter durante cada espaço da manhã o meu bordado de pequenas notas, sinais que a manhã vai deixando. Os Sinais têm muitas décadas, mas eu sempre os interrompi quando fui editor das manhãs. Aconteceu três vezes ao longo de todo este tempo, e nunca durou mais de um ano. Ao fim de um tempo corro o risco de rotina e isso mata-me. O que me deixa realmente feliz é andar na estrada. Não preciso de muito, uma pensão limpinha, comida e uns copos de vinho. Se ficas em estúdio demasiado tempo perdes a capacidade de criar projetos numa toalha de mesa, de criar algo de novo.
O último desses projetos há de ter sido os Serões Inquietos, com o jornalista Pedro Pinheiro, em que mensalmente convocavam as mais improváveis das figuras para uma espécie de conversa de lareira sobre temas distantes da agenda mediática. Também nasceu numa toalha de mesa?
Nasceu numa toalha nesta mesma mesa onde estamos sentados. O último programa aconteceu por isso aqui, neste restaurante [A Courense, na Estrada da Luz]. Já trabalhei com tipos estupendos na minha vida, como o Pedro Pinheiro. Pessoas que entendem aquela preguiça que não é só preguiça, que percebem que, para haver a vertigem da criação e da curiosidade não se pode ter uma redação feita de gente que come de pé sandes com alface. Bem sei que muitos não têm dinheiro para vir sempre espreguiçar-se nos escritórios improváveis que são as mesas os restaurantes, mas devia haver um fundo de grandes almoços e jantares de preguiça nas redações. Andamos todos apressados a olhar para a floresta quando precisamos de tempo para contemplar as árvores. Só isso nos dá fome para reparar nos pormenores. A técnica jornalística aprende-se num instante, a fome de conhecimento não existe em quem não percebe o valor da preguiça de uma mesa.
«Assisti no estúdio ao nascimento da Guerra Civil em Angola. Passei seis meses sem ir a casa, a relatar, relatar, relatar. Tomava banho na rádio, comia no bar. Acabei por apanhar escorbuto.»
Já voltamos à fome, agora vamos ao início da história, aos primeiros dias de jornalismo.
Também comecei num jornal de escola. No meu caso foi um jornal de parede que fazíamos no Liceu de Benguela. Tinha um grafismo incrível, ousadias plásticas muito adolescentes, mas que permitiu descobrirmos algum talento que tínhamos escondido. Começou na parede, depois passou a fotocópias e no fim já era impresso. Chamava-se Vento Novo. Às tantas ganhámos meia hora na Rádio Clube de Benguela. Um dia vou ao estúdio para gravar um texto e fico completamente fascinado com aquilo. Repara que eu era um miúdo de 15 anos, ainda andava de calções, e aquele mundo da sonoplastia foi algo que me deixou de olhos esbugalhados. Havia um técnico, o Acácio Vieira, que fazia montagens em direto, dois gira-discos e punha uma emissão inteira a dançar ao ritmo dele. A minha paixão pela rádio começou assim, com os técnicos, e eu passava dias inteiros a vê-los trabalhar. Como tinha um vozeirão grave e não dava erros de português acabaram por convidar-me a trabalhar lá. Comecei poucos dias antes de fazer 16 anos, a 1 de julho de 1970.
Começou logo a fazer jornalismo?
Primeiro fiz locução, tudo num tom muito coloquial. Fui substituir uma colega que tinha ido morar para outra cidade. Passado um ano já tinha o meu programa, mas cedo me revelei um tipo problemático. Os diretores diziam-me que tinha jeito para a rádio, mas era um rebelde. Não é que eu fosse um tipo politizado, mas tinha a rebeldia natural da adolescência. Lia textos incómodos, fazia perguntas estranhas, passava músicas do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira. Nessa altura, o António Macedo tinha chegado a Luanda e transfigurado por completo o Café da Noite, que era o programa nobre da rádio angolana. Ele abandonou o tom solene e transformou a rádio numa fala desplastificada, intimista, próxima dos ouvintes. Eu, a quinhentos quilómetros, ouvia-o e maravilhava-me. E comecei também a tentar criar conversas com quem me escutava, a passar-lhes a minha humanidade, a minha inquietação.
Desistiu da escola?
Logo. Recebia bem para a altura na rádio, mas casei-me com 18 anos, precisava de um emprego melhor. Por isso, em 1973, mudei-me para o Lubango. Deixei a rádio e arranjei posto de colocador no centro de emprego. Era ofício de burocrata – se tu precisasses de dez pedreiros na tua empresa de construção civil eu arranjava as pessoas para isso. E se as coisas seguissem o rumo traçado, eu hoje seria oficial de contas ou bancário. Só que, no dia em que chego ao Lubango, encontro o Emídio Rangel no aeroporto. Ele perguntou-me o que estava ali a fazer e convidou-me para ir trabalhar logo nessa noite no programa de rádio dele. Ao fim de dois meses, demiti-me do Serviço de Emprego de Angola e fiquei exclusivamente com o Rangel.
Nunca deixo de me espantar com a quantidade de gente, na rádio e na televisão, que ficou marcada pelo Emídio Rangel.
Eu tinha com ele uma relação de irmão, para o bem e para o mal. Discutíamos muito, porque ambos éramos apaixonadíssimos pela rádio. Repara: tinha-o conhecido apenas uma vez, em Benguela, quando ele já era uma figura da rádio e eu não era mais do que um miúdo guedelhudo que fazia umas coisas. Mas, nesse dia, ele viu-me no aeroporto do Lubango e não hesitou: largou-me às feras na antena. Eu, claro, agarrei num disco de Zeca Afonso. Assustei-o, avisou-me logo: «Tu tem lá calma, não me arranjes problemas.» O Rangel não era diretor da rádio nem nada que se pareça. Ele tinha um estúdio e alugava três horas de tempo de antena na Rádio Comercial de Huíla. Fazia o programa dele, com os conteúdos dele e angariava a sua própria publicidade. Pagava a sete pessoas para fazerem essa rádio dentro da rádio. No dia em que encontrei o Rangel no aeroporto, aliás, ele tinha ido levar os Quarteto 1111, que na altura estavam no auge e aceitaram tocar no Sul de Angola. O Rangel conseguiu convencê-los a vir ao Lubango e o estádio encheu para os ouvir. Era extraordinário, só ele conseguia fazer isto.
Esteve quanto tempo no Lubango?
Um ano e meio. Com o Rangel fiquei um ano, depois do 25 de Abril fiquei com mais um grupo de académicos a tomar conta da Rádio Comercial da Huíla. Mas éramos perigosamente revolucionários e acabámos por ser afastados pelo dono, um fazendeiro rico da região. Ainda arranjei trabalho num jornal sindical, mas, em janeiro de 1975, fui para Luanda. Estive uns meses na Emissora Nacional de Angola, e ali, naqueles estúdios, assisti ao nascimento da Guerra Civil Angolana. A tensão, as manifestações, o posicionamento de preparação para os combates, tudo foi anunciado e marcado pela rádio. Vivi ali seis meses, naqueles estúdios, sem quase nunca ir a casa. A relatar, relatar, relatar. Tinha a mala da roupa debaixo da secretária, tomava lá banho, comia no bar. Acabei por apanhar escorbuto graças a essa brincadeira.
Vem para Portugal quando rebenta a Guerra Civil em Angola?
Eu não vou para Portugal pela guerra, mas porque a minha mulher estava grávida da minha primeira filha [a jornalista Miriam Alves, da SIC]. Queríamos que ela nascesse em Lisboa, mas a minha ideia era voltar, eu era um tipo de esquerda e o MPLA era a princípio um lugar com diversidade de opiniões. Mas então começo a ver chegar as pessoas que me eram mais próximas, tristes com o extremar de posições em Luanda, e percebo que as coisas tinham virado. Por outro lado, fascinou-me ficar e assistir à tremenda revolução cultural que estava a acontecer em Portugal, com a chegada de milhares de retornados de África. Por um lado, houve aqui um pequeno país a conseguir receber esta multidão enorme de gente, por outro houve a chegada de uma dinâmica e de uma ousadia novas a um lugar que a ditadura tinha tornado cinzento. Foi um momento extraordinário da vida portuguesa.
E é nesse turbilhão que passa de locutor a jornalista?
Em Angola não havia jornalistas propriamente ditos, havia gente da rádio. Quando cheguei a Lisboa passei uns meses desempregado, mas um dia disseram-se que a RDP andava a meter gente. Tinham feito uma purga dos jornalistas mais revolucionários a seguir ao 25 de Novembro, mas o que acabou por acontecer é que entrei eu e uma série de gente de esquerda que se conhecia de Angola. O Rangel, o David Borges, o Sena Santos. Saiu-lhes o tiro pela culatra [risos]. Fiquei primeiro na Onda Curta, a antecessora da RDP Internacional. Havia emissões para várias partes do mundo e eu fiquei na redação de África. Depois na Antena 1. Fiquei 13 anos e fiz tudo o que havia para fazer na informação, menos relatos de futebol.
«Hoje temos rádios cheias de fórmulas, muito arrumadinhas. É preciso procurar usar argolas no nariz, deitar a língua de fora, é preciso sentir no jornalismo uma paixão indomável.»
A TSF nasce exatamente precisamente com esse grupo, em 1988, certo?
Nessa altura havia uma série de rádios piratas em Portugal, muitas delas feitas por gente que também vinha de África. Nós também fomos piratas à nossa maneira. A TSF tinha o mesmo espírito de carolice e uma vontade grande de ir contra o que estava estabelecido. Hoje temos rádios que se sentaram em cima de si mesmas, cheias de fórmulas, muito arrumadinhas, se calhar a TSF em alguns momentos também.
Como é que se inverte tudo isso?
É preciso procurar usar argolas no nariz, deitar a língua de fora, perceber que o chão a tremer nem sempre é um terramoto. Costumo dizer que foi muito importante para a nossa sociedade ter conquistas como direitos de trabalho, horários certos, fins de semana. Mas não podemos constranger a paixão de quem se quer borrifar para os horários e os fins de semana porque sente na rádio, ou sente no jornalismo, uma paixão que é indomável. Não se pode levar isto à letra, como é óbvio, mas a TSF nasceu assim, com essa paixão desregrada, e é um pouco dessa loucura de que sinto saudades. De um tempo em que o que importava era ir, ir fosse de que maneira fosse, sem teres os tipos que fazem mapas e escalas a dizer que tens de produzir segundo determinada fórmula de arrumação. A TSF é um filho do cansaço da rádio oficial. É muito importante ficarmos cansados das coisas oficiais.
O jornalismo tornou-se demasiado prudente?
Tornou-se. Todas as redações têm a mesma agenda, e toda a gente repete as mesmas histórias, e o que é importante hoje é cumprir a coisa certinha e direitinha. Nos últimos anos criou-se um ambiente de repartição pública nas redações.
E os efeitos dessa contenção estão à vista – a rádio tem menos ouvintes, a televisão tem menos espetadores, a imprensa tem menos leitores. Se não tivermos o entusiasmo da rutura, se não arriscarmos falhar a entrada da porta da frente e preferirmos a dos fundos, não vamos ser relevantes para ninguém.