A culpa foi da minha mãe. No momento de escolher entre uma Kodak caixote e uma Kodak de fole, mais sofisticada, escolheu esta. O meu pai tinha desencantado um marinheiro de passagem pelo porto de Luanda e trouxe-o a casa, mais a maleta dos contrabandos. Como sempre, ele deixou a decisão para o luzir dos olhos da minha mãe, dinheiro não era argumento. Esticando os meus 5 anos para olhar as máquinas fotográficas espalhadas sobre o napperon da sala de jantar, não percebi logo quanto eu ia perder por não termos ficado com o caixote, cubo sólido, cujo folheto de publicidade dizia o que marinheiro traduziu: «Carregue no botão e nós fazemos o resto.» A máquina simples, ideal para o tosco de tecnologia que eu já era e continuaria a ser pela vida fora, regressou à maleta e voltou ao barco.
A outra Kodak, mais bonita, foi colocada ao lado de um pequeno binóculo de teatro, no fundo do guarda-vestidos do quarto dos meus pais, de onde passou a sair só nos dias de festa. O encolher e distender da objetiva assustou a minha falta de jeito para toda a mecânica. O contraste entre o tom baço do fole e o aço inoxidável, pontuado por letras gravadas a negro, emoldurando a lente, fez do conjunto um objeto sagrado, intocável. Emperrado, nunca ousei pedir à minha mãe: «Posso…» Nunca fotografei a corça que tive nem o jacaré, e ainda hoje não sei como era alta a mulembeira do meu quintal.
Sobretudo não tenho como provar que todas as quarta-feiras, ao fim da tarde, passava na minha rua um tropel de gado a caminho do matadouro. Teria sido tão fácil, eu subia para o vaso gigante, um barril de vinho cortado a metade, com beijos-de-mulata ou as cristas-de-galo que não iam importar-se, eu levitaria. Levava a Kodak à barriga, entre os meus suspensórios alpinos, apontava para os bois magros e perdidos, conduzidos pelos varapaus de dois pastores cuanhamas, e carregava no botão. O resto chegaria a hoje, em papel fotográfico amarelecido. Os bois eram magros mas bois, talvez a foto ficasse tremida. Mas eu tê-la-ia, junto a mim – o meu trenó, o meu Rosebud, eu, garoto.
Essa foto, ou outra, das que nunca tirei por causa da escolha da minha mãe. Sei exatamente como seria qualquer delas, mesmo não sabendo quantas elas são. Erradas de luz, mal enquadradas, nervosas, diria o meu amigo Rui Ochoa, fotógrafo dos nascidos para isso. Mas ele perceberia o valor de cada uma delas. «Esta», diria de um vago volante de camião invadido por uma explosão de luz que ensombra o meu pai a conduzir. «Esta», de uma pinha de casuarina desfocada entre os dedos da minha mãe, na ilha do Cabo. Vejo tantas vezes esses flashes.
Mas talvez tenha sido a escolha certa, e essas fotos não existirem. Quero eu dizer, talvez tenha sido melhor em minha casa não se ter escolhido a Kodak Target Brownie Six-20, a boa máquina fotográfica para se começar. Talvez eu tenha ganho não ter começado. É avisado uma pessoa não enveredar pelo que não sabe. Não se trata só de poder ficar com a dúvida que a muitos é negada – muitos dos meus amigos julgam- se bons fotógrafos, que eu sei não serem. Já de mim eles não conhecem essa insuficiência, por falta completa de provas.
Mais apreciável ainda é outra vantagem. Além das más fotos que, fotógrafo de mãos nos bolsos, poupei ao mundo, a falta de jeito notória e cedo detetada ensinou-me a dar tempo ao olhar. As mãos nos bolsos não é só importante por impedir um clicar demasiado rápido, são muitas vezes a posição correta para tudo o que se passa. Tenho pensado tanto nisto nos últimos tempos… Não perguntar, escutar. Olhar para ver. Duvidar que se percebeu. Dar tempo para revelar… Mas, julgo, só funciona nos modelos que vêm de fábrica com uma câmara escura.